João Tiago Lima e Eduardo Lourenço
(Universidade de Évora, Dezembro de 2011, foto de João Barnabé)
Os Muitos Amigos de Eduardo Lourenço gostam de falar da sua curiosidade e generosidade quase infinitas. Com a reduzida legitimidade de quem apenas o conheceu pessoalmente já em pleno século XXI, julgo ser possível acrescentar a essas duas pelo menos uma terceira característica. Trata-se da inversão quase permanente da velha máxima latina que Hobbes terá mais tarde feito sua: primum vivere, deinde philosophare. Se acredito que esse traço da sua riquíssima personalidade nem sempre facilita a sua vida de todos os dias, a verdade é que tal qualidade faz com que as suas conversas muitas vezes se transformem em inesperadas e magníficas lições de filosofia.
Um entre tantos outros exemplos possíveis e com a ressalva prévia de que possa estar a contaminar recordações de vários encontros: após uma conferência na Universidade Nova de Lisboa sobre o existencialismo, partilhámos um, para mim, não
menos memorável lanche. Consulto os meus arquivos e registo a data: dezoito de
Janeiro de 2002. Enquanto bebe qualquer coisa que substitua a Coca Cola desaconselhada pelos médicos, o
Professor conversa comigo no seu jeito de pensar jazzísticamente, um pouco como se estivesse ainda a responder a perguntas vindas do
público presente na palestra. Fá-lo
abrindo o seu velhinho exemplar da tradução francesa da Carta sobre o Humanismo de Heidegger. E, com uma divertida perplexidade
que não deixa de exibir alguma impaciência, insurge-se contra aqueles que
acusam de excessiva opacidade o discurso heideggeriano. Traduz algumas passagens em
voz alta e declara: «Mas é um texto claríssimo!». Pergunto-lhe se alguma vez
viu ao vivo o filósofo da Floresta Negra e o Professor evoca uma conferência a
que assistiu no sul de França (quando trabalhava em Montpellier, ou seja, em 1952-53), bem como a fortíssima impressão aí causada pelo
autor de Ser e Tempo. «Era como se
viajássemos no tempo e estivéssemos a ouvir alguém da dimensão de um Aristóteles, por exemplo».
A conversa flui por entre personagens como Foucault ou Mourinho, Amália ou Joaquim de Carvalho e, no momento em que pagamos a conta, o empregado
do café refere-se às novas moedas que o euro tinha então posto a circular. Perante o olhar incrédulo mas atento do novo
participante na conversa, Eduardo Lourenço desenvolve um breve e acutilante ensaio sobre a essencial distracção que temos acerca de nós mesmos. Cito de cor: «Como é
possível que um país, tão obsessivamente preocupado com a imagem que, lá fora, os outros têm de nós, possa
escolher para a face do euro que nos
distingue dos outros Estados da União Europeia as imagens mais anódinas e
anónimas que se poderiam conceber? Admitindo que alguém tenha decidido esta
questão (o que não é certo), deve ter achado que era um assunto que dizia respeito
apenas a banqueiros e por isso…».
* João Tiago Lima, Professor e Investigador da Universidade de Évora.
Membro da Comissão Científica da edição das Obras Completas de Eduardo Lourenço.
Coordenador do blog Ler Eduardo Lourenço.
Membro da Comissão Científica da edição das Obras Completas de Eduardo Lourenço.
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