quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Socialismos & Convergências

«Os textos políticos de Eduardo Lourenço não resolvem o problema político: fazem parte dele. É este o seu interesse e é este o seu limite». O autor destas palavras foi o analista político Joaquim Aguiar que, de resto, continua ainda hoje a fazer comentários sobre a actualidade portuguesa. O leitor pode encontrar a totalidade deste ensaio, intitulado “A esquizofrenia sublime”, no número especial que a revista Prelo dedicou em Maio de 1984 ao autor de O Labirinto da Saudade. Vale a pena relê-lo sobretudo para se perceber a falta que fazem os textos políticos de Eduardo Lourenço, mormente num tempo em que, infelizmente, o ensaísta pouco tem escrito (ou, pelo menos, publicado) sobre os acontecimentos que marcam a nossa cena política. Ler Eduardo Lourenço não tenciona interpretar silêncios, tarefa sempre bastante arriscada, aliás. Muito menos deseja revelar o teor de conversas privadas. No entanto, Ler Eduardo Lourenço pode garantir que o ensaísta mantém bem viva a sua paixão pela política e a atenção do seu olhar sobre a realidade portuguesa não perdeu nenhuma das suas bem conhecidas qualidades.
Eduardo Lourenço num almoço de apoio a António Costa. Na foto vê-se também, à esquerda do ensaísta, o cantor Camané

De resto, Eduardo Lourenço continua a intervir na vida política. Mas, se é verdade que é bastante procurado pelos jornalistas para curtos comentários acerca da actualidade, Ler Eduardo Lourenço lastima que, nos últimos anos, não apareçam nos jornais textos do ensaísta que, mais tarde, poderiam corresponder a capítulos de novos livros que seriam, por assim dizer, os descendentes de títulos como O Complexo de Marx (1979) ou O Fascismo Nunca Existiu (1976). Talvez assim fosse possível ver o que hoje se passa em Portugal não com um olhar bacteriologicamente puro (haverá ainda quem acredite em tal ficção?), mas com a ajuda de uma perspectiva que, não sendo a-ideológica, sempre acrescentava alguma lucidez ao debate público. Como escrevia também Joaquim Aguiar, no já citado artigo, os textos de Eduardo Lourenço são, entre outras coisas, «a manifestação de uma vontade de diálogo ético com os responsáveis políticos e, em especial, com os dirigentes socialistas [leia-se: do PS]». Num momento em que, mais do que nunca, a esquerda (melhor dito: as esquerdas) vive(m) numa decisiva encruzilhada, essa vontade talvez seja mais necessária do que nunca.
Eduardo Lourenço e Melo Antunes num Congresso da UEDS em 1976.
À falta de texto sobre os dias que correm, Ler Eduardo Lourenço recupera um artigo do ensaísta, intitulado “Do socialismo como convergência" e que veio a público na revista Opção em 23 de Junho de 1977, tendo sido dois anos volvidos integrado em O Complexo de Marx. Ou seja, o texto foi redigido em pleno período de crise política, uma vez que o I Governo Constitucional, apoiado pelo PS, liderado por Mário Soares e com Medina Carreira como Ministro das Finanças, se via forçado a negociar com os outros partidos parlamentarmente representados, pois não dispunha de maioria na Assembleia da República. A hesitação do PS foi, de resto, habilmente aproveitada pelos partidos à sua direita que, de imediato, acusaram Mário Soares de se voltar para a esquerda comunista em busca de apoio para o seu Governo. Meses mais tarde, o PS escolherá o CDS para formar o II Governo Constitucional que, como se sabe, durará pouco mais do que seis meses. Mesmo sem ousar estabelecer paralelismos entre dois tempos e duas circunstâncias tão diferentes, é forçoso relembrar que a expressão convergência democrática designava o propósito político de PSD e CDS formarem um Governo que, apesar de constituído por dois partidos que não tinham sido os mais votados, garantiria, ainda assim, um suporte maioritário na Assembleia.




DO SOCIALISMO COMO CONVERGÊNCIA (1977)

 

                                               Torna-se urgente aprofundar o debate sobre a fronteira que separa o “regresso ao capitalismo” e a “transição para o socialismo”

num contexto de crise económica como o que vivemos

A. Reis, Opção, nº 13, Julho 76


(…) é curioso ouvir Mário Soares falar de novo,
ao fim de quase um ano de um ano de omissão,
transição para o socialismo.
Expresso, ed. 5/6/76



O impulsionador da “convergência democrática”, antecipando um pouco, encontrou já a palavra de ordem sob que se travará a futura batalha política portuguesa, tanto a nível parlamentar como eleitoral: a convergência marxista. Num contexto como nosso, ao mesmo tempo favorável aos simplismos mais crus e a subtilezas que têm por elas quarenta anos de pregação não esquecida, esse futuro cavalo de batalha não é mal escolhido. É sem dúvida pouco popular, mas o óbvio, o de convergência comunista já foi usado até à corda e, mau grado toda a convicção polémica do Dr. Sá Carneiro, convém mal a um adversário político que se tem ilustrado na defesa contra o dito comunismo. Salvo na esquerda pura e dura, o marxismo não tem em Portugal uma conotação muito favorável. O que o epíteto tem de vago, misterioso, e só por isso, de pouco tranquilizador, convém para designar um perigo ao mesmo tempo eminente, impreciso e grave. Sob a cruzada antimarxista se travará, pois, o novo bom combate da velha ou nova direita portuguesa para salvaguarda o essencial daquilo que a Revolução lhe deixou e tem vindo consolidando com não desprezível habilidade.
Naturalmente que esta estratégia ideológica ao nível verbal esbarra com um obstáculo sério: não só um dos parceiros da futura convergência marxista há muito deixou de se referir ao marxismo como sua cobertura doutrinal privilegiada, como é descrito, na sua prática política pelo mesmo Dr. Sá Carneiro ou seus próximos como um partido sociodemocrata. (Ver artigo de M. R. de Sousa no Expresso de 28 de Maio de 1977). O epíteto acusador, por conseguinte, só a um dos parceiros da hipotética “convergência marxista” se pode aplicar. Porque teima então o Dr. Sá Carneiro em aplicar e englobar o Partido Socialista naquilo que para ele é uma tremenda denunciação pública de que espera, como agora se escreve, suculentos dividendos políticos ou eleitorais? Em matéria de fetichismo ideológico o PSD supera os outros partidos portugueses. A palavra deve criar a coisa, o hábito verbal vestir à força o monge pouco recomendável. Não tendo podido, apesar dos notáveis esforços tentados, não sem êxito parcial, celebrar justas e ricas núpcias com o PS, o PSD considera como fatal que não fica outra alternativa para o PS que o de cair nos braços tenebrosamente marxistas do Dr. Álvaro Cunhal. Pouco lhe importam as denegações públicas espectaculares do PS, obrigado a reafirmar de semana a semana que não cairá em tais laços. Não se cai onde se quer, pensa sem dúvida o Dr. Sá Carneiro. Tanto ele como o seu novo aliado, ou vice-versa, não ignoravam antes da famigerada cimeira cor-de-rosa as disposições neutrais do Dr. Mário Soares. Exactamente por não as ignorar é que lançaram a sua “convergência democrática”. De homens tão hábeis, uma tentativa destinada, como era previsível, a não obter êxito imediato, a produzir mesmo um efeito oposto, não deixa de espantar. Enganaram-se de porta? Cometeram a falta sem perdão possível? Como explicá-la? 
Da análise da situação portuguesa, do exame da prática governamental, os dois dirigentes do CDS e do PSD concluíram que não havia em Portugal espaço político para o que, à falta de melhor, se poderia chamar uma convergência socialista. De resto, nenhum deles atribui qualquer sentido sério à ideia de “socialismo”, salvo em sentido pejorativo ou subversivo. Fiados no que sabiam e viam, concluíram que tinha chegado a hora de desmascarar o Partido Socialista, nem que para isso fosse necessário jogar ao poker político. Ou o Partido Socialista, coerente com o sentido geral do que tem sido a sua actuação, aceita “a convergência democrática”, ou só lhe fica como saída, queira-o ou não, uma outra convergência que será fácil denunciar como incoerente e pouco democrática ao mesmo tempo, a convergência marxista. O perigo que esta hipótese podia fazer correr, se fosse autêntica, não assusta os ideólogos do CDS e do PSD, como foi o caso outrora. Demais sabem eles que é uma hipótese meramente polémica, impraticável. Porque, aparentemente, empurram então o PS para essa imaginária saída fatal? Por isso mesmo? 
A táctica da “convergência democrática” é simples: sem o apoio tácito do CDS e do PSD o Governo de Mário Soares está condenado a prazo, ou pelo isolamento cada vez maior, ou pelo compromisso “marxista” que mata. O cálculo não é mau e tem a seu favor um passado de aliança objectiva que ultrapassou em muito a mera convergência pontual entre o Governo Mário Soares e os partidos agora fustigados com o labéu de partidos de direita, futura matriz do grande partido conservador que segundo o próprio primeiro-ministro nos faz falta. Felizmente, as cúpulas não fazem o que querem. Diante da ameaça directa, não só ao seu estatuto de partido no poder, como de interna deslocação, o Partido Socialista redescobre a sua vocação própria como maneira de escapar ao destino suicida que lhe é proposto. Essa redescoberta tem duas faces que se não ajustam: a do isolamento e da convergência. A do isolamento – embora mais fictício que real, por ser sobretudo tentação de compromisso com a sua direita – já deu todos os seus frutos. A da “unidade de esquerda” tal como é formulada e faria o jogo dos homens da “convergência democrática” é inexequível ou suicidária, nas circunstâncias presentes. Só fica margem para outro tipo de convergência, aquela em que os dirigentes do CDS e do PSD, por definição, não podem apostar sem se negar, mas também aquela em que influentes sectores do PS não têm acreditado: a convergência socialista. Está implícita na letra e no espírito da Constituição, está explícita nos estatutos do Partido Socialista e está sobretudo inscrita na acção, no pensamento e na vontade de milhares e milhares de militantes que já desesperavam de ver a prática do seu partido coincidir com a vocação da sua sigla. Na fidelidade do Partido Socialista à sua doutrina está a única salvação, para si mesmo e para o País enquanto país de vocação socialista. Que os Drs. Freitas do Amaral e Sá Carneiro não acreditem nela, é natural. Cumpre agora ao PS desiludi-los de vez, acreditando.









 

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Hannah Arendt

Passou relativamente desapercebida na imprensa portuguesa a edição do mais recente livro de António Marques (A Filosofia e o Mal - Banalidade e Radicalidade do Mal de Hannah Arendt a Kant, Lisboa, Relógio d'Água, 2015). Facto que se lamenta, por várias razões. Desde logo, porque na bibliografia filosófica dos nossos dias é bastante raro encontrar-se uma discussão tão aberta e determinada com as teses de um autora clássica, como é o caso (quem ousará, hoje, sustentar o contrário?) de Hannah Arendt. Especialista sobretudo em Kant, Nietzsche e Wittgenstein, António Marques demarca-se audaciosamente da conhecida noção arendtiana de mal banal que a filósofa judia desenvolveu em vários momentos da sua obra e, em especial, no famoso Eichmann in Jerusalem. A metodologia de António Marques constrói-se sobretudo a partir de uma minuciosa e cuidada revisitação de um esquecido texto kantiano “Versuch den Begriff der negativen Grössen in die Weltweisheit einzuführen”, ou seja, “Tentativa de introduzir o conceito das grandezas negativas na Filosofia”. Ler Eduardo Lourenço, embora tenha de se confessar seduzido com a démarche de António Marques, abstém-se de intervir na discussão do filósofo português com a célebre autora de The Human Condition, mas convida os visitantes do blog à leitura deste livro que, entre outras, ostenta uma qualidade pouco frequente em obras téoricas contemporâneas: uma clareza expositiva assinalável.


Não menos surpreendente que o livro em si mesmo é, apesar de tudo, o final do seu capítulo 6, intitulado “Breve excurso sobre um texto de Eduardo Lourenço”*. Ler Eduardo Lourenço não o pode garantir em absoluto, mas talvez se trate da primeira vez que, num livro de filosofia contemporânea, o pensamento do autor de Heterodoxias é mobilizado para um debate que não tenha a ver directamente com a realidade portuguesa. É verdade que, nalguns casos, a reflexão de Eduardo Lourenço sobre a mitologia europeia ou sobre Fernando Pessoa colheu a atenção de autores estrangeiros. Todavia, o caso é (ou parece ser), desta vez, algo distinto. Trata-se de uma obra que discute posições de filósofos (Arendt, Kant, Heidegger) e que, embora através de um excurso, chama a atenção para um ensaio de Eduardo Lourenço que, por si só, acrescenta interesse filosófico ao debate que o livro propõe. Dir-se-á que António Marques teve acesso a esse texto, citado de O Esplendor do Caos mas que originariamente apareceu no jornal Público, apenas porque é um filósofo que vive, lê e escreve em Portugal. Decerto que sim. Mas a questão mais relevante talvez seja outra: António Marques parece recorrer a Eduardo Lourenço, não por este ser português (tal seria uma estultícia), mas porque, do seu ponto de vista, nesse «texto a todos os títulos brilhante “O Efeito Hiroxima”» (p. 77), o ensaísta trilha caminhos novos que permitem repensar, não só o terrível acontecimento ocorrido na cidade japonesa, mas até a própria ideia de holocausto.

Hannah Arendt

É curioso referir que as referências a Hannah Arendt na vastíssima obra de Eduardo Lourenço são episódicas, embora sempre pertinentes e reveladoras da admiração do ensaísta pela pensadora alemã. No entanto, numa entrevista concedida há mais de dez anos à jornalista Anabela Mota Ribeiro, Eduardo Lourenço evoca o episódio em que viu, pela primeira e única vez, Heidegger e, acedendo à curiosidade da entrevistadora, fala mesmo sobre os amores entre Martin e Hannah:

« – [A ocasião em que vi ao vivo Heidegger foi] um dos momentos memoráveis da minha vida.

– O que é que foi tão Impressionante?

– Eu estava naquela altura em Montpellier. Heiddeger estava um pouco na sombra, marginalizado no plano in­telectual, na penumbra da chamada opinião pública. Estávamos em 52, 53, depois da derrota nazi em 45. Havia um contraste fabuloso entre o ar banalíssimo da pessoa Heidegger – só reconheci um pouco do perfil, que fazia lembrar o de Cícero – e o que ele era como presença, co­mo texto. Falou de Hegel e dos Gregos. Nunca mais es­queço essa lição. Havia mais de mil pessoas na sala, su­ponho que eram todos professores, grandes professores, e, de repente, estávamos reduzidos, como se estivéssemos a ouvir em pessoa Aristóteles ou Platão.

– Consegue identificar esse elemento transbordante, esse algo que eu imagino que Heidegger teria para produzir essa im­pressão?

– Uma aura. Uma profundidade, uma singularidade, uma raridade na abordagem de uma questão já tratada por outros pensadores ao longo dos séculos XIX e XX. He­gel e os Gregos são o horizonte de todo o pensar filosófi­co típico europeu. Heidegger põe as perguntas cruciais de uma outra maneira. Mostra como o pensar era despensar. Era um silêncio enorme. O texto era em francês, depois em alemão, francês, alemão, francês, alemão, de maneira que pudesse terminar em alemão. Foi uma espécie de gri­to, um momento sacralizante, se se pode levar o termo pa­ra qualquer coisa que é do mais dessacralizante possível, que é a palavra filosófica. Não tenho nenhuma memória dessas coisas concretas, senão era romancista. Só guardo desse momento a emoção que tive. O que é que o Hei­degger tinha? Um físico de alemão banalíssimo, da Ba­viera.

– E a voz, como é que era a voz?

– Ele devia ter qualquer coisa para que uma senhora co­mo Hannah Arendt se tenha apaixonado por ele. E não se apaixonou senão pelo pensador, pela pessoa que tinha esse verbo e a iniciava na única coisa que ela própria procura­va e não era capaz de formular da mesma maneira: a so­lução intelectual em estado puro. De outro modo, é abso­lutamente incompreensível. Todos os amores são incompreensíveis. Mas esse da Hannah Arendt, ela própria filó­sofa, judia, conhecendo uma parte do passado controverso ou mesmo suspeito do Heidegger...

– O senhor pensou nesse elemento suspeito quando o ouviu? Fa­lamos da aproximação de Heidegger à ideologia nazi.

– Se soubesse que o Heidegger era um sujeito que aplaudia uma coisa tão pavorosa como foi o holocausto, naturalmente que não ia assistir. Toda aquela gente hitleriana, efusiva, laborou naquilo. Os documentários dessa época são tremendos, um povo inteiro esteve fascinado. Mas não estamos aqui para falar do Heidegger...» (“Eduardo Lourenço”, por Anabela Mota Ribeiro, Suplemento DNA de Diário de Notícias, Lisboa, 11/VI/2004, p. 24).




*Numa muito curiosa recensão ao livro de António Marques, Paulo Tunhas omite, estranhamente?, a existência do sub-capítulo dedicado a Eduardo Lourenço: cf. http://observador.pt/2015/09/04/o-arrependimento-e-para-as-criancinhas-uma-visita-ao-mal/