quinta-feira, 16 de maio de 2013

Pensar Nove Décadas de Amizade (nº 41): David Mourão-Ferreira*

 David Mourão-Ferreira


(...) Eduardo Lourenço, escolhendo arbitrariamente um tema que lhe parece (sic: pág. 29, linha 15) presente na poesia de alguns autores portugueses contemporâneos, mais não faz que habilidosamente especular sobre a natureza desse tema, retirando de tal especulação as conclusões que mais lhe agradam.
A análise dos temas (ligada, evidentemente, à análise das técnicas) constitui um dos objectivos mais importantes de toda a crítica literária verdadeiramente responsável. E tão importante é ele que exige e abrange métodos próprios, devidamente classificados, que vão desde a simples averiguação estatística até ao estudo comparativo das literaturas. Não se escolhe um tema por «parecer evidente» a sua presença em determinada obra ou determinado autor; essa presença, averigua-se. Por outro lado, os temas estão sujeitos à condição verbal da literatura; urge, por consequência, estudá-los dentro desse condicionamento. Nada disso fez Eduardo Lourenço. Sem ter procedido à averiguação sistemática do tema, cuja presença lhe «parecia evidente», negligenciando ainda o seu condicionamento verbal, caiu na pura arbitrariedade (...).
No entanto, Eduardo Lourenço é mais feliz quando, com entusiástica adesão, alude ao papel do desespero na poesia de Miguel Torga e, particularmente, no seu último livro, Penas do Purgatório. E chegam a ser, sem dúvida, inteligentes, interessantes, as teorias que improvisa ao redor dos trechos que transcreve. Merecerão, sobretudo, as considerações sobre o «desespero de raiz religiosa» ser retidas por quem se proponha realizar aquele estudo que a obra do grande poeta das Odes está a exigir. Já, muito pelo contrário, sempre que se refere a José Régio (e constantemente se lhe refere), as observações de Eduardo Lourenço se nos afiguram no geral inadequadas e superficiais. A excepcional grandeza de Régio ou lhe é inteiramente alheia ou lhe passou despercebida - a menos que seja quanto afirma o produto de leituras incompletas ou apressadamente feitas. E nem sequer aventaríamos esta suposição se outros trechos do opúsculo nos não permitissem tal suspeita: quando por exemplo Eduardo Lourenço cita os nomes de J. Dantas, Lopes Vieira e Guerra Junqueiro, para caracterizar «um lirismo alheado de todo o sentimento da transcendência» (pág. 22), somos forçados a concluir que, pelo menos, não leu Guerra Junqueiro.



*David Mourão-Ferreira (Lisboa, 1927-1996), Escritor, Crítico Literário e Professor Universitário.
O texto que aqui se reproduz é um excerto da recensão crítica a O Desespero Humanista de Miguel Torga e o das novas gerações de Eduardo Lourenço e foi publicado originalmente no suplemento Artes de Diário Popular, 13/IV/1955, pp. 7 e 15.