Manuel Ferreira Patrício |
Portugal, cuja
grandeza frustrada é uma das nossas dores mais dificilmente suportáveis, como
se árvore anémica fosse, dá-nos de quando em vez um fruto de grande dimensão e envergadura,
imponente aspecto, qualidade suma e delicioso sabor, que atenua a nossa insatisfação
histórica. Eduardo Lourenço é um desses frutos, em que até a modéstia da sua
compleição física redunda em benefício do seu esplendor espiritual. Ele é, sem dúvida,
um gigante cultural do século XX português, mantendo intactas as suas qualidades
na segunda década em que já vamos do século XXI. Pode olhar para trás e sorrir
contente pelo que fez. Pode o sorriso persistir pelo que continua fazendo, com
toda a lucidez e sabedoria. Nós também sorrimos, do mesmo contentamento, onde
assoma a consciente gratidão do muito que nos deu ao longo das décadas em que
pudemos beneficiar do seu companheirismo humano e da sua infatigável
operosidade intelectual, de que ia brotando o ouro que escorria para as nossas
consciências e a nossa alma, enriquecendo dia a dia o nosso património
espiritual, aliás crítico de si mesmo.
Nós os de
Évora, consideramo-lo também nosso. Pela sua amizade e camaradagem com Vergílio
Ferreira, nosso evidentemente, pela nossa própria ligação de amizade e cumplicidade
cívica e cultural com os seus irmãos António e Adriano, que aqui viveram e trabalharam
uns anos, pela ligação à Universidade que estabelecemos com ele, pelo facto de
sermos seus leitores e admiradores desde a longínqua década de 60, época em que
na Livraria Nazareth – em 67 – pudemos adquirir (o Fernando Martinho e eu
próprio, professores no Liceu) o livro Heterodoxia-II,
que representou um marco de reforço no nosso itinerário intelectual e cívico.
Mais tarde, nos anos 70 e 80, trabalhando na Universidade, na Divisão (hoje
Departamento) de Pedagogia e Educação, investindo apaixonadamente na formação
de professores para o Portugal democrático, que ansiávamos viesse a ser
lidimamente livre e culto, intentámos apoiar-nos na sua bússola vital prestando
a devida atenção à sua obra Labirinto da
Saudade – Psicanálise mítica do destino
português – destino que continua a fazer-nos figas, empurrando-nos, na hora
que corre, mais para o psiquiatra que
para o psicanalista. Hoje, a Universidade de Évora trabalha directamente na
preparação da edição das Obras Completas de Eduardo Lourenço, o que é honra para
todos nós.
Li há poucos
dias a extraordinária entrevista que Eduardo Lourenço concedeu à Revista Letras com(n)Vida, conduzida por José Eduardo Franco,
impressionando-me a atenção minuciosa e de
quente inteligência fria ( de sabedoria..) prestada ao momento presente da Europa,
do Ocidente, do Oriente, do Mundo, todos nós com o pé no fio da espada na tentativa de
nos mantermos erectos e vivos, de escaparmos. A hora de A Tentação do Ocidente, de André Malraux, já passou, a hora de A Decadência do Ocidente, de Oswaldo Spengler,
também, a decadência da Europa é um facto, a decadência dos Estados Unidos da
América anuncia-se por si mesma e na ascensão da antiquíssima China, que julgaríamos
ter morrido e renasce. Um novo mundo vem aí. Com o olhar estóico que me parece
ser o seu, Eduardo Lourenço diz serenamente o que vê, anuncia o que vai vir.
Não diz, como o imperador Septímio Severo, que foi tudo e nada vale a pena. O
seu olhar escatológico é outro e a mim serena-me. É talvez o olhar do seu
cristianismo suave e tingido da liberdade de pensar e ser desde a casca ao
cerne. Não somos nós quem vai para o futuro, é o futuro que vem para um novo
presente.
Eduardo
Lourenço, querido irmão humano da família de François Villon, esteja connosco para
festejarmos juntos essa chegada
*Manuel Ferreira Patrício
Antigo Reitor da Universidade de Évora
Texto inédito enviado gentilmente pelo Autor para Ler Eduardo Lourenço.
Texto inédito enviado gentilmente pelo Autor para Ler Eduardo Lourenço.