Astronomic Picture Atlas-by Ludwig Preyßinger (Germany, 1851) |
Numa cantiga de Estevão Coelho, vendo-se descoberta “de amor coitada”, exclama a donzela com irreverência: “− Avuitor comestes, que adevinhades!”. Acreditava-se então na adivinhação do futuro pelo exame ou ingestão das entranhas das aves. Assim quero ver hoje Eduardo Lourenço: como aquele que desentranha o significado do mundo – e o mundo insignificado – das aves literárias, com a calma de quem cai com elas, e lhes aprende o voo para ensiná-lo aos neófitos. Todas as épocas e todas as culturas precisam de um arúspice assim, que ensine a pensar os mitos, os símbolos, os labirintos, os paradoxos fundadores, pois que na origem de tudo está, talvez até mais que o caos, o paradoxo (porquê o universo em vez de nada?). Se sua é a escola da sombra – da noite anteriana – não é menos verdade que Eduardo Lourenço nunca deixou de enunciar para nós a carência de luz: de luz para romper as trevas (assim escrevia em 1959 no seu ensaio “A Europa e a morte”) do “novo Hades” para o qual, então como hoje, os criadores europeus desterraram a existência sublunar, representando o ser humano como um ser acabrunhado, descendente não de Ulisses, mas da sombra da mãe deste quando aparece ao filho no submundo. Se outrora o homem europeu enfrentava a certeza da morte “exaltando o poder do seu lado luminoso sobre o tenebroso”, assiste-se hoje a “um verdadeiro triunfo da Morte sobre a Vida”. Aí continuamos. Sei que enquanto tivermos Eduardo Lourenço temos a quem confiar a complexidade do humano modalizado em língua portuguesa. Muitas vezes, diante de textos que me recusavam, ou cuja costa perdia de vista por navegar sem tino, foi na sua sabedoria que procurei dar-me uma rota: uma passagem sua foi amiúde quanto bastou para me tirar de apuros. Num ensaio publicado no Jornal de Letras em 2007, “A morte: de Schopenhauer a Unamuno”, escrevia Eduardo Lourenço que a “brevidade da vida” é “fonte da comum melancolia humana e tema único da poesia elegíaca”. Foi quanto bastou para que soubesse no caminho certo a minha tese de doutoramento, dedicada à elegia na poesia portuguesa. “Exaltando o poder do seu lado luminoso”, e porque não somos apenas uma dívida ao nada, saúdo carinhosamente Eduardo Lourenço nos seus noventa anos.
*Rui
Lage. Poeta
e Ensaísta.
Texto inédito enviado gentilmente pelo Autor para Ler Eduardo Lourenço.
O ensaio “A morte: de Schopenhauer a Unamuno” a que o Autor se refere foi reimpresso em Heterodoxias, I Volume das Obras Completas (Gulbenkian, 2011, pp. 509-519).
O ensaio “A morte: de Schopenhauer a Unamuno” a que o Autor se refere foi reimpresso em Heterodoxias, I Volume das Obras Completas (Gulbenkian, 2011, pp. 509-519).