segunda-feira, 27 de maio de 2013

Pensar Nove Décadas de Amizade (nº 78): E.M. de Melo e Castro*


Quando em 1949 Eduardo Lourenço publicou o livro Heterodoxia, eu tinha 17 anos e tinha descoberto a Filosofia no 6º ano do Liceu, dois anos antes. Tinha também começado a ler poesia e a escrever penosamente porque me parecia que assim supria a falta de informação que a minha cabeça em fervilhante estado exigia... Na área da Filosofia em português, por essa altura, fiz duas descobertas, os ensaios de António Sérgio e o livro Heterodoxia de Eduardo Lourenço, que logo me seduziu pelo que eu imaginei que seria o seu conteúdo, tão diferente de tudo o que se publicava tão ortodoxamente em Portugal. E não me enganei! Mas também é certo que nesse tempo não entendi metade do texto... por falta de preparação teórica. Mas persisti na leitura e procurei descobrir o que não entendia e ... porque não entendia. Assim o meu cérebro começou a funcionar autonomamente! O livro Heterodoxia foi o meu guia na minha pesquisa nada ortodoxa do pensar filosófico, que nunca mais me abandonou. Foi também então que subitamente recomecei a escrever poesia ... O livro de poemas que em 1956 publiquei, resultado de muitas e estremadas tentativas, tinha o título talvez intrigante de Ignorância da alma ... E foi recebido com alguma apreensão quer pelos surrealistas como pelos neorrealistas portugueses. Houve mesmo uma nota jornalística, vinda do lado neorrealista, dizendo que “eu entrava na poesia como um rinoceronte num jardim” o que me agradou muitíssimo! Afinal a minha invenção poética funcionava ! Os dados estavam lançados ... e não mais deixei de jogar... o jogo sem fim das palavras escritas. Entretanto também nunca mais deixei de pensar heterodoxamente!

Alguns anos depois conheci pessoalmente Eduardo Lourenço. Lembro-me que passeando numa rua de Madrid, durante um congresso de críticos literários a que assistíamos, lhe manifestei todo o meu apreço e reconhecimento pelo que aprendi com as leituras que, durante anos, fiz do seu livro Heterodoxia. É que esta obra teve uma importâcia fundamental na formação de um pensamento teórico que me levaria à formulação dos fundamentos da Poesia Experimental Portuguesa e à sua prática transgressiva da invenção poética, a partir do início dos anos 60, enfrentando o clima monodirecional e totalitário que em Portugal se vivia ... e desconstruindo o seu anquilosado discurso.

Logo no início da primeira versão do Segundo Prólogo sobre o Espírito de Heterodoxia, Eduardo Lourenço diz:

«No primeiro volume desta obra, publicado já lá vão mais de dez anos, assimilava-se o espírito de heterodoxia ao espírito de liberdade. Esta facilidade, pois é uma, grangeou, possivelmente os poucos aplausos que a obra mereceu, mormente, entre alguns jovens leitores. Na verdade, embora Heterodoxia I tenha sido um livro imaturo, de título bizarro e autor desconhecido, despertou, aqui e ali, alguma curiosidade. Porventura, um ou outro leitor reencontrou nessas incipientes páginas um eco das suas preocupações. Mais do que tudo lhe terá sido grata essa assimilação apaixonada e sem fendas, da liberdade e da heterodoxia, num tempo de obrigado silêncio e espesso triunfo de tiranias espirituais de toda a ordem.»
 
Neste texto de 1960 Eduardo Lourenço usa uma necessária cautela que o regime de censura e repressão então exigia. Mas eu recordo-me muito bem de várias conversas com o poeta António Ramos Rosa, em Faro, nesse mesmo ano de 1960, sobre a importância da obra de Eduardo Lourenço na formulação de uma teoria sobre uma possível posição filosófica que superasse o realismo socialista que, para nós, não dava conta da criação poética como a concebíamos, inovadora e livre! Outros mestres foram Stephane Lupasco com a lógica contraditória, Edmund Husserl com a redução fenomenológica e Abraham Molles com a estética da comunicação.

Assim o pendor lírico individualista e subjectivo da Presença também não nos poderia servir, pois sabíamos já que o mundo estava em transformação acelerada, e que só uma concepção aberta e plural, isto é, heterodoxa, quer da percepção quer da criatividade, era uma válida fundamentação teórica. Por isso Eduardo Lourenço foi e é um dos nossos mestres, já que o interesse por uma atitude amplamente experimental dos jovens deste século XXI, se deve a uma concepção heterodoxa da invenção poética e da sua intervenção na sociedade contemporânea. 
Agora , nos seus 90 anos, grata e cordialmente o saúdo !
São Paulo, Maio de 2013



*E.M. de Melo e Castro.
Escritor, crítico e artista plástico.
Texto inédito gentilmente enviado pelo Autor para Ler Eduardo Lourenço.