quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Jornal de Letras, revisitado

Eduardo Lourenço numa foto publicada no JL em Maio de 2008

Há trinta anos, mais concretamente a 3 de Março de 1981, a Imprensa portuguesa viu surgir do seio das Publicações Projornal (empresa responsável pelos saudosos semanários O Jornal, de algum modo o antecessor da revista Visão, e Se7e, entre muitas outras edições, entre as quais a primeira versão de A Europa Desencantada de Eduardo Lourenço) um projecto que tudo indicaria estar votado ao fracasso ou pelo menos a uma existência efémera. Tratava-se do JL jornal de letras, artes e ideias, um quinzenário (publicava-se então às terças) que, no seu primeiro número, era vendido ao público pela módica quantia de vinte e cinco ... escudos! Felizmente o JL sobreviveu às diversas crises que o país entretanto atravessou e continua hoje a desempenhar um papel muito útil não só em Portugal, como em todo o mundo lusófono, gozando por exemplo de um prestígio surpreendente no Brasil.

foto Ler Eduardo Lourenço

Nessa edição de estreia em Março de 1981, o JL oferecia ao leitor, para além de uma magnífica entrevista a José Cardoso Pires realizada pelo director José Carlos de Vasconcelos (que ainda hoje dirige a publicação), extensos artigos de, entre outros, Agustina Bessa Luís, Eduardo Prado Coelho, Augusto Abelaira, Urbano Tavares Rodrigues, Fernando Belo, Alexandre Pinheiro Torres, Nuno Bragança, Manuel Maria Carrilho, Paula Morão e João Mário Grilo.
Eduardo Lourenço, então habitual cronista de O Jornal, também participa neste número inaugural do JL com o ensaio “Encontro com Jorge de Sena”, fazendo desde logo juz ao estatuto de colaborador permanente que mantém até hoje. De facto, muitos dos ensaios de Eduardo Lourenço tiveram a sua primeira vinda a público nas páginas do JL. Seria fastidioso dar aqui conta de todos eles. Ler Eduardo Lourenço destaca, ainda assim, três edições muito especiais: o nº 231de 6 de Dezembro de 1986, o nº 667 de 8 de Mario de 1996 e o nº 851 de 14 de Maio de 2003. Em cada uma dessas edições o leitor pôde encontar um extenso e rico dossier com testemunhos e artigos sobre a obra de Eduardo Lourenço e até inéditos ou entrevistas com o próprio ensaísta.
A edição de hoje do JL, o nº 1074 mais precisamente, apresenta em pré-publicação excertos de “Joaquim de Carvalho e a Ideia de uma Filosofia Portuguesa”, um dos capítulos de Heterodoxias, o primeiro volume das Obras Completas (cujo lançamento ocorre na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, depois de amanhã, pelas 18h30m). É uma forma feliz de assinalar o que o JL considera ser «sem dúvida, um dos grandes acontecimentos editoriais do ano». A ler, portanto.

foto Ler Eduardo Lourenço

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Heterodoxias: lançamento em Lisboa e sessão de apresentação em Évora

Ler Eduardo Lourenço tem o enorme gosto de convidar todos os visitantes do blog para o lançamento oficial de Heterodoxias, a realizar no próximo dia 2 de Dezembro (sexta-feira), pelas 18h30m, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.
Três dias depois, no Auditório do Colégio do Espírito Santo na Universidade de Évora, Eduardo Lourenço estará também presente pelas 18h numa sessão de apresentação daquele que é o primeiro volume das suas Obras Completas.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

A Filosofia e o Tempo

Ler Eduardo Lourenço não quer deixar de recordar o Dia Mundial da Filosofia que se assinalou na passada semana. Como tal, oferece aos seus leitores um escrito de 1952, publicado muitos anos depois na Revista Metamorfoses (num dossier especial,  com o título Os trabalhos e os dias, dedicado ao ensaísta em que,  para além de inéditos, recolhe um excelente conjunto de testemunhos sobre Eduardo Lourenço). Trata-se de uma brevíssima mas profunda reflexão acerca do que se intitulou aqui a Filosofia e o Tempo. Como se depreende das palavras do Autor escritas há mais de meio século  não é este tempo favorável à Filosofia, ou aos verdadeiros filósofos. Pressionados pela ideia de novidade, o tempo presente não se deixa reflectir. É o tempo do jornal diário, mais do que o livro da minha vida. Mas que se dê passagem ao que interessa, ao texto.


Metamorfoses. Revista da Cátedra Jorge de Sena para Estudos Literários Luso-Afro-Brasileiros, nº 4, Rio de Janeiro, Setembro de 2003.

«Coimbra, 8 de Setembro de 1952.

Se as Investigações Lógicas ou as Ideias de Husserl tivessem sido publicadas há dois ou três séculos, os homens cultivados desse tempo, os universitários, as academias, teriam sido obrigados a consagrar-lhes comentários idênticos aos que durante mil anos de escolástica florescente teceram em torno da Metafísica de Aristóteles desde Alexandre de Afrodisia até Francisco Suarez. Publicado neste bendito século em que o mito da originaldiade conforta todo o aprendiz de filosofia na ideia de que é mais interessante ou inteligente que todos os Husserl (ou Bergson ou Russell) do mundo, verá sucederem-se e passarem sobre elas gerações e teorias que a sua simples leitura teria evitado. Terá sido esse o preço do que chamamos a Modernidade?
O nosso mundo é de tal sorte que o mais incapaz dos candidatos a doutor de Filosofia teria vergonha de si mesmo se se considerasse um discípulo. A verdade não interessa a ninguém. O que importa é ser diferente e como para ser diferente é preciso dizer outra coisa dir-se-á outra coisa sem precisar de examinar o que foi escrito antes. Comentários a Husserl não falta. Teve, terá a sua hora. Como uma moda, não como uma fonte de perplexidade renovada como os clássicos de outrora, como se o mais antigo fosse o mais venerável. Era um defeito sem dúvida mas fecundo. Agora os originais não chegam a ser lidos e ainda menos estudados. Só algum poeta célebre goza hoje daquele privilégio quase miraculoso de ser fonte e alimento do espírito como o foram Homero, Virgílio, Horácio. O melhor romance tem hoje o mesmo destino que o jornal. Ninguém o lerá duas vezes.»




Ler Eduardo Lourenço aproveita para lembrar, e saudar, o excelente trabalho desenvolvido pelo
Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, na tradução e edição das obras de Edmund Husserl.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Vasco Graça Moura



Foto publicada em Prelo.Revista da Imprensa Nacional/Casa da Moeda, Maio de 1984.


Ler Eduardo Lourenço não pode deixar de assinalar a primeira reacção pública à edição do primeiro volume das Obras Completas do ensaísta. De facto, Vasco Graça Moura escreve hoje, no Diário de Notícias, o artigo “Heterodoxia e liberdade” (p. 54)* onde se refere à publicação de Heterodoxias. O destino neste caso terá sido especialmente sábio, pois Vasco Graça Moura, para além de poeta, ensaísta e tradutor de méritos amplamente reconhecidos, é também um amigo de longa data de Eduardo Lourenço, tendo chegado a ser, na década de Oitenta do século passado, o seu editor, na Imprensa Nacional – Casa da Moeda, em títulos como O Espelho Imaginário, Fernando Rei da Nossa Baviera e Nós e a Europa ou as duas razões. É, de resto, interessante que, em Setembro de 1988, na sequência do Prémio de Ensaio-Charles Veillon atribuído a Eduardo Lourenço, Vasco Graça Moura tenha publicado no Jornal de Letras, Artes e Ideias um curioso artigo onde dá conta das suas dificuldades como editor:
«Observo que Eduardo Lourenço, excessivamente modesto e desprendido, por vezes cede os originais sem guardar cópias e sem registar para onde os enviou para publicação avulsa..., o que torna dificílimo não só o trabalho de recolha dos textos, organização e produção de um livro como este [Nós e a Europa ou as duas razões], mas também o de forçar o próprio autor a convencer-me finalmente de que não se prescinde de publicá-lo dentro de um determinado calendário» (“A Europa está de parabéns”, Jornal de Letras, Artes e Ideias, 13/IX/1988, p. 8).












Para além de editor, Vasco Graça Moura foi também co-autor da edição francesa de Camões 1525-1580 (Bordeaux, L’Escampette, 1994), cuja capa acima se reproduz. Por seu turno Eduardo Lourenço dedicou ao seu amigo um ensaio chamado “Vasco Graça Moura – Um ensaísmo em arquipélago”, [AAVV (Org. de José da Cruz Santos), Modo Mudando. Sete ensaios sobre Vasco Graça Moura, Porto, Campo das Letras, 2000, Col. Campo da Literatura-Ensaio, nº 44, pp. 29-42]. Menos conhecidas serão talvez as afinidades de militância política entre os dois homens que se, por vezes, parecem em campos ideológicos bastante afastados, noutras ocasiões intervieram e intervêm política e culturalmente nas mesmas fileiras (cf. foto com que se inicia este texto). É o caso hoje, por exemplo, do Acordo Ortográfico de que ambos são ferozes opositores.





* O texto está disponível em http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=2125905&seccao=Vasco

Sobre Jorge, junto ao Sena

Com a devida vénia a Ler Jorge de Sena, site da responsabilidade da Professora Gilda Santos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, aqui se reproduz um testemunho de Eduardo Lourenço acerca do seu amigo e poeta Jorge de Sena. Para além da importância intrínseca do depoimento, colhido no passado mês em Paris, Ler Eduardo Lourenço assinala o facto de, segundo o ensaísta, a publicação do primeiro volume de Heterodoxia, em 1949, ter estado também  na génese de um intenso diálogo intelectual entre estas duas figuras cimeiras da cultura portuguesa do nosso tempo.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Militares & Democracia

Entrevista recente de um dos mais destacados protagonistas da vida militar e política portuguesa das últimas décadas veio, provavelmente não da forma mais feliz, reacender o tema das relações entre a democracia e as Forças Armadas. Não pretende Ler Eduardo Lourenço discutir o teor das afirmações mais polémicas de tal intervenção pública, mas, sim, aproveitar o pretexto para sublinhar, uma vez mais, que o assunto representa uma parte não despicienda na obra do ensaísta. Para além dos textos incluídos no livro Os Militares e o Poder, já aqui mencionado em Abril último, Eduardo Lourenço escreveu noutras circunstâncias sobre o tema. Por exemplo, em Maio de 1976, num colóquio organizado pela Intervenção Socialista, Eduardo Lourenço afirmou o seguinte: «Temos a sorte de possuir, neste momento, um “statu” militar que é inegavelmente democrático e que faz a admiração e o espanto da Europa democrática e do Mundo. Mas a realidade portuguesa é uma realidade movente e dessa movência as Forcas Armadas e os seus dirigentes democráticos recebem os ecos e naturalmente as convulsões possíveis. Na medida em que as Forças Armadas constituem ainda, o fulcro essencial da vida política portuguesa e apesar delas próprias nós não estamos ainda numa sociedade consolidada democraticamente e, portanto, seria uma ilusão trágica pensar que já estamos».
Será que, tantos anos depois, a sociedade portuguesa está por fim democraticamente consolidada? A avaliar por algumas dessas afirmações, seria talvez uma ilusão trágica pensar que já está.


Jorge Sampaio

Esse colóquio internacional reuniu pessoas tão diferentes da vida política portuguesa, como Jorge Sampaio (que era então o Presidente da Comissão Directiva da I.S.), João Cravinho, Urbano Tavares Rodrigues, Nuno Bragança, João Martins Pereira, Maria Velho da Costa, Manuel Braga da Cruz, Maria Alzira Seixo, Carlos Aboim Inglês, Luís Salgado de Matos. Entre os intervenientes estrangeiros previstos, destaque para  Andreas Papandreau (sim, o Pai do até há muito pouco primeiro-ministro George Papandreau e que, tal como o seu progenitor, Georgios, também chefiou o Governo grego) que enviou uma mensagem ao Colóquio, justificando a sua ausência («Lastimo profundamente que razões políticas na Grécia impeçam absolutamente a minha presença aí como a presença dos meus camaradas»...). Ler Eduardo Lourenço não acredita que a História se repete, mas...
Não veio Papandreau, mas vieram Maurice Ronal, Luciano Gruppi, K.S. Karol, Stuart Holland, M. Achilli, entre outros. As actas do Colóquio foram publicadas nesse mesmo ano pela editora Diabril e o livro ainda se consegue encontrar nalguns bons alfarrabistas: foi pelo menos aí que Ler Eduardo Lourenço o encontrou.




Mais difícil de encontrar é o registo das conversas que se seguiram às intervenções dos participantes, embora alguns diálogos estejam transcritos nas actas. Um dos participantes no colóquio foi o sociólogo e professor do ISCTE José Carlos Ferreira de Almeida (1934-2009). Esta informação colheu-a Ler Eduardo Lourenço no blog de José Pacheco Pereira ephemera (http://ephemerajpp.wordpress.com/) onde o historiador dá conta de algumas das muitas preciosidades do seu monumental arquivo pessoal. Ora, um das aquisições mais recentes de Pacheco Pereira foi precisamente o espólio de Ferreira Almeida, que, para além de uma importante colecção de periódicos, tem também por exemplo notas pessoais acerca de congressos e colóquios em que esteve presente. O documento que apresentamos a seguir (com a devida vénia a ephemera) é precisamente a reprodução de um desses apontamentos em que Ferreira de Almeida se refere, pelo menos por duas vezes, à participação de Eduardo Lourenço no colóquio da Intervenção Socialista. No cimo da página, Ferreira de Almeida regista que, quando entrou na sala, o ensaísta já estava a falar. Mais abaixo, na sequência de um diálogo que, segundo parece, Eduardo Lourenço terá mantido com o seu amigo Urbano Tavares Rodrigues, é possível concluir que o assunto foram os mitos portugueses e se em Portugal houve, ou não, Lumières. A resposta de Urbano foi, a julgar pelo que se pode ver na nota de Ferreira de Almeida, algo ondulante.



quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Regresso sem fim ... já no próximo sábado à noite!


Apresentado pela primeira vez ao público no passado dia 6 de Agosto em São Pedro do Rio Seco, durante uma homenagem a que Ler Eduardo Lourenço ofereceu o devido destaque, vai ser finalmente exibido, no próximo sábado, pelas 21 horas, na RTP 2, o documentário de Anabela Saint-Maurice, co-produzido pela RTP e pelo Centro de Estudos Ibéricos, Regresso sem Fim. De acordo com a nota informativa da RTP (de cujo site foram retiradas as imagens do texto de hoje), «Regresso sem Fim é um documentário de carácter autobiográfico protagonizado por uma das maiores figuras da cultura portuguesa: Eduardo Lourenço. Aos oitenta e oito anos, o escritor e ensaísta revisita a aldeia de São Pedro do Rio Seco e a cidade da Guarda, locais onde respectivamente nasceu e viveu na infância.

Com Pedro Mexia em São Pedro do Rio Seco

Com Gonçalo M. Tavares na Guarda


Com Hélia Correia

Nessa viagem às suas memórias é acompanhado pelos escritores Pedro Mexia, Gonçalo M. Tavares e Hélia Correia. Interlocutores escolhidos pelo próprio Eduardo Lourenço para participar neste “filme homenagem” em que se regressa ao que se deixou um regresso sempre desejado mas impossível. O documentário inclui uma incursão à vizinha cidade de Salamanca, onde Eduardo Lourenço fará a evocação de um intelectual que marcou a sua geração: Miguel Unamuno. O escritor, poeta e homem público espanhol era um apaixonado por Portugal e na sua atribulada vida manteve relações de amizade com importantes escritores portugueses, como Guerra Junqueiro e Teixeira de Pascoais. Em Regresso sem Fim revela-se a personalidade vibrante de Eduardo Lourenço, o seu incisivo sentido crítico, a permanente curiosidade e a capacidade de comunicar de forma clara, e com afecto. Há um sábio em viagem e com gosto pela vida. O documentário, realizado por Anabela Saint-Maurice, é uma coprodução da RTP2 e do Centro de Estudos Ibéricos em 2011. A duração é de cinquenta e dois minutos».
Na Plaza Mayor em Salamanca, durante a rodagem de Regresso Sem Fim


Ler Eduardo Lourenço acrescenta ainda que no filme, Eduardo Lourenço conversa com dois amigos e professores da Universidade de Salamanca: Ángel Marcos de Dios e Fernando Rodriguez de la Flor, com o primeiro acerca de Unamuno e com o segundo sobre as relações entre a Ibéria e a Europa. De registar também o depoimento do Dr. Adriano Faria, irmão de Eduardo Lourenço, acerca da vida em São Pedro nos tempos da infância do ensaísta.
A não perder, portanto.

Com a realizadora Anabela Saint-Maurice e a sua equipe

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Correspondência com Delfim Santos (1954)

Delfim Santos no Congresso Internacional de Filosofia (Instituto Brasileiro de Filosofia, São Paulo,1954)

por Felipe Delfim Santos


Carta de Eduardo Lourenço a Delfim Santos :

Lille, 22 de outubro de 54

Senhor Doutor

Certamente o Senhor Doutor teve ocasião de viver muitas vezes uma experiência semelhante à minha: ser afectado em grau, talvez excessivo, por uma novidade pátria, sobretudo se ela não é precisamente do género agradável. O isolamento no estrangeiro tem essa propriedade curiosa.

A novidade (para mim) é como deve calcular a da celebração do 1º Congresso de Filosofia em Portugal sob a égide dos jesuítas. Não há dúvida que é um autêntico golpe de mestre jesuíta no bom e no mau sentido. Para mim é antes de mais e quase fisicamente, um golpe. Mas, fazendo esforços para conservar toda a serenidade, tenho de reconhecer que é bem feito e mesmo, embora o escreva com toda a tristeza, bem merecido. Eles fazem o que devem e fazem-no bem. É o resto das pessoas que persistem no sonho vago de acreditar que pensam, quando o seu pensamento não tem nenhuma eficácia sobre a realidade da sua pátria, que está em erro e lhe oferece a ocasião de um triunfo fácil.

Eu não me excluo desse número. A única escusa perante mim próprio reside no facto da minha nula influência. Contudo, na medida do possível, não abdico da luta por um estado de coisas mais decente e por isso aqui estou junto de alguém que tem prestígio e influência capazes de contribuir para modificar aos poucos a nossa subordinação mental.

Não sei qual será a reacção do Senhor Doutor em face desse facto consumado (ou a consumar) do famoso Congresso. Eu, pessoalmente, não sou anti-jesuíta, se se entende por isso ser contra a existência da “ordem” ou contra o direito de um jesuíta ser jesuíta. Não sou contra a sua existência em Portugal, nem contra o direito que lhes reconheço de “jesuitar” o mundo inteiro, pois no fundo cada um de nós o deseja “jesuitar” à sua maneira e como cristãos lhes incumbe cristianizar o mundo. Mas a questão muda de figura quando se passa da nuvem teórica à acção concreta. O que se está passando em Portugal é claro como água e se não o fosse, o preâmbulo do prospecto do Congresso que hoje me chegou às mãos, o esclareceria. Trata-se da contrarreforma em todo o esplendor possível em 1955, trata-se de arregimentar o pensamento nacional sob uma cor única, de lhe vincular uma directriz precisa de “bom pensamento” e a uma tal manobra não se pode ficar indiferente. Eu dou o direito a um jesuíta de o ser (mesmo se o não desse, eles o seriam…) mas como não sou jesuíta reivindico um igual direito de o não ser em toda a liberdade. Mas ao contrário de Ibsen que dizia que o homem forte é o homem só, eu creio com a Bíblia que é o homem que faz o homem e que a simples oposição individual, moralmente válida, é praticamente nula se não se congrega num esforço supra-individual. Por isso, aqui isolado, lhe envio esta espécie de S.O.S., esta alerta que sei desnecessária, mas que ao menos me dá a ilusão de não reagir só.

O que está feito está feito e o mal que isso causa já é irremediável: o 1º Congresso de Filosofia em Portugal é obra dos Jesuítas e o que é mais triste, obra da impotência dos pensadores independentes de toda a “consigne” religiosa e política. Participar nele ou não significa uma derrota igual e talvez maior se não se estiver presente. Como estou escrevendo sob o império do “prospecto” ainda não o sei bem. Mas creio que desde já há qualquer coisa a fazer e o Senhor Doutor é das pessoas mais autorizadas para pôr mãos à obra. Assim uma primeira e notável derrota seria ocasião para uma primeira semi-vitória e, mais tarde e aos poucos, a condição de permanência e existência de um pensamento realmente eficaz e livre. Livre para poder ser tudo, mesmo jesuíta, e não livre para não poder ser nada, senão jesuíta.

O Senhor Doutor já deve imaginar a que me refiro: à nado-morta Sociedade de Filosofia. Eu sei o que lhe custou já de dissabores e decepções. Sei ou prevejo os que pode custar-lhe ainda, mas nem por isso vejo neles ocasião para desistir. Agora, menos do que nunca. Muitos, todos ou poucos, é preciso que essa famigerada Sociedade nasça, exista, viva, para não apresentar ao público internacional (e o que é mais importante, a nós mesmos) a única face contrarreformista e implicitamente inquisitorial que ela lhe pode mostrar dentro em pouco. Não creio que seja uma utopia aquilo que mesmo os brasileiros conseguiram criar, segundo penso. O Senhor Doutor sabe melhor do que ninguém a cara de espanto que todos fazem quando confessamos no estrangeiro que tal Sociedade não existe.

Dificuldades? É natural que as haja, mas não podem ser insolúveis. É preciso que ela exista mesmo sem sede, sem dinheiro, sem coisa alguma, excepto a presença e a vontade das pessoas para quem ela representa algo de necessário e importante. A primeira coisa a fazer para a manter independente é renunciar a toda e qualquer espécie de ligação com o Estado, exceptuando naturalmente as estabelecidas por Lei. Enfeudá-la a qualquer Inst. de Alta Cultura é matá-la, a menos que condições claras de independência não sejam fixadas. Eu creio, e o Senhor Doutor me dirá, que a base material não seria difícil de realizar, fazendo apelo a “beneméritos de honra”, capitalistas, etc., sempre dispostos a dar algum dinheiro se se sabe manejá-los com a arma cósmica da vaidade, que neste caso seria perdoável.

Pessoas? É o nó-górdio da questão, mas também não me parece irresolúvel. A escolha do presidente não faria talvez dificuldade de maior e para harmonizar gregos e troianos estabelecer-se-ia uma espécie de triunvirato de vice-presidentes (por exemplo) de modo a dar representação a Lisboa, Coimbra e Braga. E se isso não bastasse podia recorrer-se a um “roulement” das honras, estabelecendo prazos ou recorrendo para o “2º governo” da Sociedade a eleição dos seus corpos. Em resumo, se houvesse boa vontade, não faltariam processos para levar avante essa necessária Sociedade.

Espero que o Senhor Doutor me perdoe a extensão do arrazoado, tanto mais que sei que partilha certamente de alguns desses pontos de vista e que não veja nele impertinência mas simples reacção de quem realmente se considerou afectado com a novidade do Congresso e se apressou na busca de um remédio junto de quem está em condições de o propor.

Este ano não me foi possível ir a Portugal e naturalmente só lá para o verão terei oportunidade de conversar como Senhor Doutor. Volto à Alemanha no fim do mês onde como sabe me tem às suas ordens. Procurei-lhe por diversas vezes o [livro do] Kerschensteiner e não o encontrei. Hamburgo não é famosa em matéria filosófica mas eu tenho que voltar para lá. Pedi ao Instituto para me enviar para Freyburg mas até agora nem resposta.

Deseja-lhe um bom fim de férias e um novo ano escolar propício, com os melhores cumprimentos.

Eduardo Faria



















Resposta de Delfim Santos a Eduardo Lourenço:



19.XII.54


Meu caro Amigo:

Li e reli a sua carta e só não respondi imediatamente por não saber que lhe dizer… A situação é a que expõe na sua carta e não é possível demovê-la. A solução que propõe já foi testada e até nos pormenores que indica: triunvirato recorrente. Mas não, nada foi possível e eu já estou descrendo de que, nas circunstâncias actuais, seja possível fazer outra coisa do que nada fazer. Eu irei lá como sempre só e também nada mais desejo. Não pertenço a nenhum coro e a minha situação profissional é também a mesma: sempre só. A “coisa” não me indignou tanto a mim como a si, pois ela é consequência de outras que imensamente me têm indignado. Era o esperado. Pois não lhe parece? E julgo que outras consequências ainda surgirão… Do Brasil vim surpreendido e desde a minha chegada ainda não readquiri o equilíbrio. Surpreendeu-me realmente… Agradeço-lhe a sua prova de confiança que a sua carta testemunha, creia na muita simpatia, apreço e consideração do seu colega e amigo

Delfim Santos


P.S. Talvez esta carta lhe pareça evasiva. É-o na verdade.






Nota Explicativa de Felipe Delfim Santos:

Eduardo Lourenço escreve a Delfim Santos em 1954 por ocasião do anúncio do Primeiro Congresso Nacional de Filosofia que estava a ser organizado pelos jesuítas da Faculdade de Filosofia de Braga, em comemoração do IV Centenário da entrega do Colégio das Artes à Companhia de Jesus. O seu claro propósito é o de contar armas para uma guerra, mas não deixa de nos surpreender onde tentou buscar um seu aliado «de prestígio e influência», surpresa que, como veremos, se espelhará quer na própria reação de Delfim Santos ao receber esta carta quer nos previsíveis efeitos da resposta que lhe resolve dar.

O argumento de Eduardo Lourenço desdobra-se em dois pontos: um tal Congresso deveria ter tido diferentes promotores e fora a demora na constituição da Sociedade Portuguesa de Filosofia que deixara aos jesuítas esta iniciativa que naturalmente lhe caberia. A derrota que invoca em primeiro lugar é fruto da carência que aponta em seguida.

Delfim Santos não entende o S. O. S. de Lourenço nem sente a iniciativa jesuíta como uma derrota. É certo que teve os seus livros resenhados com hostilidade nas páginas da Revista Portuguesa de Filosofia e mais ainda nas da Brotéria, as duas revistas da Companhia, que o têm por ateu e heideggeriano, cultivador de um tipo de existencialismo oposto aos princípios do cristianismo. Talvez por essa razão nunca escreveu nem escreverá nessas duas publicações. Mas este retrato que inicialmente de si fizeram os jesuítas não está correto: nascido no ateísmo da casa paterna, convertera-se na juventude à Igreja Evangélica de que aos poucos se foi distanciando. Sem qualquer ligação institucional ou afetiva ao catolicismo, cultivou boas relações com alguns sacerdotes individualmente. Pode-se afirmar que quando estas cartas são escritas ele é um pensador nem crente nem descrente, para quem as questões religiosas não constam da agenda filosófica.

Com mais propriedade, Eduardo Lourenço escreve a Delfim Santos por reconhecer nele o filósofo independente, solitário, avesso a ortodoxias e a dogmatismos. Mas bastariam tais circunstâncias para ele se situar no campo contrário ao da organização pelos jesuítas do Congresso? Entenderia ele também a constituição da Sociedade Portuguesa de Filosofia como uma solução e uma profilaxia ao ascendente eclesiástico nos meios filosóficos?

A resposta de Delfim Santos é desconcertante.

Começa por adotar um tom um pouco frio ao não nomear o seu correspondente, contrastando com a carta que lhe escreverá quatro anos depois, em melhor momento, e que será iniciada por «Meu caro Eduardo Faria». As razões para esta reserva estão não tanto na recusa em sintonizar com o alarme soado por Eduardo Lourenço sobre a hegemonia “contrarreformista” dos seguidores de Loyola mas muito mais porque o remédio apresentado é na verdade a causa da “doença”.

Eduardo Lourenço ignorava certamente que Delfim Santos e os jesuítas se tinham aproximado por circunstâncias casuais: em 1949 o Professor da Faculdade de Letras de Lisboa coincide na viagem para Mendoza, onde se celebraria o Primeiro Congresso Nacional de Filosofia da Argentina, com o Padre Severiano Tavares – homem de espírito aberto e temperamento jovial – acabando por contrair uma grave pneumonia que o reteve em Buenos Aires. A atenção e dedicação ao doente pelo seu acidental companheiro de viagem não seriam esquecidas. A partir dessa data iniciaram relações epistolares e tanto ele como os seus companheiros da Faculdade de Filosofia de Braga foram olhando mais favoravelmente o pensador portuense. Corolário desta aproximação é que Delfim Santos será precisamente o convidado de honra que pronunciará a alocução inaugural na sessão solene de abertura do Congresso de 1955*. Encontramos assim, à partida, um desconhecimento por parte de Eduardo Lourenço da estreita ligação de Delfim Santos aos organizadores do Congresso.

Constrangido pela falta deste dado na informação do seu correspondente, Delfim Santos tarda e hesita em responder. Mas uma outra questão, mais incómoda ainda, se lhe sobrepõe: a da impaciência de Lourenço pela demora na constituição da Sociedade Portuguesa de Filosofia. É este o tema que carreia para o diálogo as profundas clivagens da comunidade filosófica nacional e que lhe reaviva «os custos em dissabores e deceções» pagos pela tentativa do seu arranque com o seu amigo Severiano Tavares e sob a inspiração do Instituto Brasileiro de Filosofia, fundado em 1949 pelo paulista Miguel Reale. O mais delicado é que se a Sociedade não nascera, tal se devia precisamente à recusa de Joaquim de Carvalho, mestre e mentor de Eduardo Lourenço e espírito pouco dado a acolher iniciativas que não partissem de si próprio, em presidir a este corpo associativo, bem como às manobras dilatórias por ele promovidas para que a Sociedade nunca visse a luz do dia. É por isso que em 1950 o Professor de Coimbra tentará chamar a si a paternidade da ideia, que afinal já estava parcialmente concretizada dado que nesse mesmo ano a Sociedade vê os seus estatutos serem aprovados pelo Ministro da Educação. Porém não passa de um «nado-morto», como diz Lourenço, devido às divisões que persistem quanto a cargos, estatuto institucional, dependência ou não de órgãos oficiais, meios de financiamento, etc. Quatro anos mais tarde Eduardo Lourenço, talvez pela distância geográfica do meio português, ainda a julgava ressuscitável, mas Delfim Santos desengana-o.

É na verdade esta a questão à qual Delfim Santos responde desde o início do seu texto até às palavras “Eu irei” e é este o motivo do seu desconforto perante a inesperada carta que o interpelava. Replica que as soluções tentativamente propostas por Eduardo Lourenço já foram exploradas sem sucesso e se encontram esgotadas. Quanto ao Congresso reafirma precisamente a sua solidão e isolamento de grupos, essa mesma independência que fora a causa do pedido de apoio que recebera, deixando contudo explícito que não encontra motivo, na sua organização pelos jesuítas, para o escândalo invocado por Eduardo Lourenço.

Delfim Santos remata a carta com uma referência à sua ida ao Congresso Internacional de Filosofia que decorrera em São Paulo nesse mesmo ano de 1954, obra precisamente dos homens do Instituto Brasileiro de Filosofia, bem como ao seu deslumbramento pelo Brasil, ominosa referência a posteriores desenvolvimentos que se darão quando Eduardo Lourenço irá aceitar o convite para ensinar Filosofia nesse país e Delfim Santos o recusará – ver as cartas trocadas entre ambos em 1958 e 1959 neste blogue http://leduardolourenco.blogspot.com/2011/02/correspondencia-com-delfim-santos-1958.html e outros materiais em Filipe Delfim Santos, ed. (2011) Meu caro Delfim: Delfim Santos e o Brasil, Lisboa: Arquivo Delfim Santos.

Consciente da perturbação que as suas linhas introduzem na comunicação entre os dois, Delfim Santos acrescenta ainda uma nota metaepistolar: pois que muita coisa não foi dita e prescindiu de apontar as razões do fracasso da Sociedade (ou seja, de acusar Joaquim de Carvalho), a missiva pode parecer que foge às questões e que é evasiva. Delfim Santos simultaneamente concede essa falta e transforma-a em virtude: declara então que a carta é evasiva propositadamente.



Todos os documentos trocados entre Delfim Santos e os jesuítas da Faculdade de Filosofia de Braga sobre a organização do Primeiro Congresso Nacional de Filosofia e a tentativa de constituição pelo Padre Severiano Tavares e por Delfim Santos da Sociedade Portuguesa de Filosofia serão publicados na obra de Filipe Delfim SANTOS & José António ALVES, orgs. (2011) Escola de Braga: A Correspondência com Delfim Santos, Braga: Publicações da Faculdade de Filosofia.

* O texto será publicado no número especial da Revista Portuguesa de Filosofia onde constam as actas do Congresso: Filosofia como Ontologia Fundamental, Actas do I Congresso Nacional de Filosofia, Revista Portuguesa de Filosofia Vol. 11, 1956, pp.  10-15.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Ruy Belo: Em Louvor do Vento


«O vento vem na sua suavíssima voz e toda a gente morre de súbito para mim»



«Deve haver algures no meu corpo um lugar expressamente reservado para a voz do vento
uma cavidade qualquer assim como as salas de aeroportos destinadas às pessoas muito importantes
mas esta minha só para o vento a única pessoa muito importante agora para mim»



Esta é uma semana marcada justamente pela presença de Ruy Belo, a cuja obra poética é dedicado o Colóquio Internacional Ruy Belo Homem de Palavra(s) a realizar na Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa, nos próximos dias 3 e 4, tendo como pretexto os cinquenta anos da publicação do livro Aquele Grande Rio Eufrates. Ler Eduardo Lourenço não pode deixar de se associar à ocasião, mesmo se é necessário reconhecer que Ruy Belo não é, de facto, dos poetas sobre quem Eduardo Lourenço mais tenha escrito. Também por isso se aguarda com especial atenção a intervenção do ensaísta na sessão de encerramento do colóquio, agendada para as 18 horas da próxima sexta feira. Registe-se que estará disponível, ao longo dos dois dias do colóquio, uma transmissão ao vivo on line de todas as sessões. Cf. http://www.livestream.com/fcglive


Ler Eduardo Lourenço relembra ainda que Ruy Belo é um dos autores escolhidos por Eduardo Lourenço para a sua antologia Os Poemas da Minha Vida (Lisboa, Público, 2006), onde figura precisamente o longo e magnífico Em Louvor do Vento, de que acima se citaram dois pequenos excertos. E assinala que é a esse poema que o ensaísta dedica um texto incluído em Século de Ouro. Antologia Crítica de Poesia Portuguesa do Século XX onde se pode ler o seguinte: «O que há de singular e de maravilhoso na aventura vital e poética de Ruy Belo, talvez pelo precoce sentimento de que ela ia estatelar-se absurda e fatalmente nos baixios da fatalidade pura, é que a sua epopeia não está ao serviço de nada» (Lisboa, Cotovia e Angelus Novus, 2002, p. 216).
A não perder também o dossier dedicado esta semana a Ruy Belo pelo Jornal de Letras.