quinta-feira, 16 de maio de 2013

Pensar Nove Décadas de Amizade (nº 48): Rodrigues da Silva*

Rodrigues da Silva

«A heterodoxia arrisca-se a ser hoje uma ortodoxia». A afrimação, que aqui vai já a abrir, foi feita ontem por João Bénard da Costa, no Centro Nacional de Cultura. Diga-se, em abono da verdade, que foi a única que esteve minimamente à altura, senão da letra, pelo menos do espírito do livro em debate: as Heterodoxias de Eduardo Lourenço.
A única afirmação à altura do livro em debate - corrija-se - por parte dos que rodearam o autor para discutir a sua obra. Porque, quanto a ele (que disse, de início, estar ali para ouvir), acabaria por falar e bem... pelo menos da forma mais heterodoxa do que a maior parte dos intervenientes.
Um debate, pois, ortodoxo, eis o que ocorreu promovido pelo Centro Nacional de Cultura e pela editora Assírio & Alvim. Mas desejar-se-ia outra coisa? Fica a dúvida. E esta interrogação já agora: um debate à altura das Heterodoxias que abalaram sucessivas gerações de intelectuais e estudantes portugueses - um debate destes, hoje, deveria ser centrado no presente ou no passado?
Centrado no passado, o debate seria, inevitavelmente, como veio a ser, um debate cómodo... e ortodoxo. Um debate centrado no presente, talvez o não fosse assim tanto. (...)
(...) Eduardo Lourenço confessou que na sua luta [contra as ortodoxias] teve um aliado: Fernando Pessoa. Fernando Pessoa já estava morto, mas para Lourenço ele era «o grande desconstrutor e o mestre da desconstrução, o exemplo vivo contra todos os discursos que se queriam assumir como poder. Os poetas serviram-me de escudo contra os filósofos ... contra mim mesmo». E foram estas as suas últimas palavras, a encerrar o debate.


* José Manuel Rodrigues da Silva (Lisboa, 1939-2009), Jornalista.
O texto que aqui se reproduz é um excerto da reportagem “Um debate muito ortodoxo”, Diário Popular, Lisboa, 25/II/1988, p. 29.