sexta-feira, 10 de maio de 2013

Pensar Nove Décadas de Amizade (nº 26): Ettore Finazzi-Agrò*


Ettore Finazzi-Agrò


Havia um aspecto curioso da personalidade de Eduardo Lourenço que, nos longos anos da minha frequentação e da minha convivência intervalar com ele, eu não conseguia me explicar. O mistério era a razão pela qual ele escrevia os seus textos com aquela letra miudinha que, às vezes, nem ele conseguia enxergar e/ou decifrar por completo. Uma questão talvez irrisória mas que exercia sobre mim um estranho fascínio, entrando a fazer parte das características próprias e incontornáveis da sua figura de intelectual. Consegui talvez entender o porque desse uso parcimonioso do papel e desse horror vacui tentando encobrir por completo o branco da página, quando, anos atrás, fui visitar, no Museu de Arte e Cultura Judaica em Paris, uma mostra de manuscritos de Walter Benjamin: encontrei no grande filósofo alemão a mesma atitude, o mesmo obcecado terror do vazio que tinha notado no intelectual português, levado, no seu caso, até ao extremo de uma espécie de criptografia. Para Benjamin a razão dessa escrita microscópica, dessa ortografia minúscula podia ser também a necessidade de poupar o papel, dada a extrema pobreza em que ele vivia e dada a precariedade da sua existência ameaçada, mas, desde aquele dia, fiquei com a convicção de que, mais que isso, a miniaturização da escrita podia ser, tanto para ele quanto para Lourenço, o sinal concreto de uma densidade de pensamento. E é, de facto, esta a ideia que eu tenho, como leitor, das obras do grande intelectual e crítico português: textos densos nos quais relampeja, provindo desse coágulo de letras diminutas e às vezes ilegíveis, uma inteligência compacta e, ao mesmo tempo, ágil, quase aérea, capaz de fazer ligações inesperadas.

Existem, com efeito, pessoas (poucas) neste (vasto) mundo que entram na vida dos outros como um dom. E é exatamente o que aconteceu comigo em relação a Eduardo Lourenço: o facto de o ter conhecido e frequentado, embora de forma esporádica e erradia, durante os últimos trinta e cinco anos, considero-o um presente inesperado e imerecido. A sua (auto)ironia e a sua capacidade, não só de pensar, mas de mostrar a si mesmo pensando, de dar a ver os mecanismos que produzem as suas reflexões, ficam como marcas indeléveis de uma generosidade que nenhum agradecimento poderá realmente compensar.



*Ettore Finazzi-Agrò
Professor Catedrático de Literaturas Portuguesa e Brasileira na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade de Roma «La Sapienza».
Texto inédito gentilmente enviado pelo Autor para Ler Eduardo Lourenço.