Com os meus parabéns e como testemunho das comemorações dos 90 anos de
vida de Eduardo Lourenço, talvez recordar uma síntese do seu melhor livro: O
Labirinto da Saudade. Psicanálise Mítica do Destino Português, publicado em
1978, exactamente há 35 anos.
É um
livro admirável, tanto pela diversidade dos temas que aborda, todos versando sobre
a cultura portuguesa, como pela desmontagem analítica a que procede relativa à
“imagem” de Portugal. É como se, neste livro, os portugueses se vissem
despidos, sem a envoltura dos ouropéis ideológicos, mirando-se frágeis, menores
e diminuídos ao espelho de si próprios e da Europa.
Segundo Eduardo
Lourenço, temos historicamente caminhado num espaço conflitual entre o modo
como somos e o modo como imaginamos ser ou que deveríamos ser. Existe,
portanto, na alma de cada português, uma desproporção, uma clivagem, melhor, um
duplo estado de espírito em que cada um sente o que ontologicamente é (pequeno
país, pobre e carenciado país, recursos limitados, baixa qualidade de vida,
forte ruralismo tradicional, incipiente indústria, frágil organização
financeira nacional, hábitos passadistas, tecnologia nacional ínfima) e o que
imageticamente lhe é dado ver através da leitura da história pátria (o mito dos
Descobrimentos, a aventura da Expansão Ultramarina, o sonho do Quinto Império,
o desejo do progresso antevisto na Europa iluminista e positivista, a quimera
de um Estado imperial uno, do Minho a Timor, e do seu contraponto
socialista-comunista, o Estado solidário e igualitário dos trabalhadores). A
esta dupla consciência que tem animado (e anima) a maioria dos portugueses,
sintetizada na diferença imaginária, em cada época histórica, entre a realidade
e a ficção, é o que E. Lourenço designa por “o irrealismo prodigioso da imagem
que os portugueses fazem de si mesmos”. Este “irrealismo”, esta “forma mentis”
de ser português, condição histórica permanente de Portugal, tanto tem
arrastado o país para o maior dos miserabilismos culturais (o espírito
decadentista entre os séculos XVII e XX) como para a crença de que somos por
condição e destino um povo eleito, por vezes adormecido, mas sempre
virtualmente preparado para lançar as “novas naus” da civilização.
E. Lourenço
designa esta “forma mentis” de tipo “traumático”, ao modo psicanalítico,
sublinhando que algo na nossa cultura nacional sofreu de fortíssimas
perturbações civilizacionais que lhe recalcaram a possibilidade de uma vivência
integrada na normalização média da existência europeia. Com efeito, ser sempre
mais ou menos, tudo ou nada, superior ou inferior, vanguarda ou proscrito, príncipe
ou gáfaro não é, sejam quais forem os padrões epocais de estandartização dos
comportamentos, um modo habitual de vida.
E. Lourenço
tenta sintetizar genealogicamente a origem e o descobrimento histórico desta
particular maneira de ser português erguendo três momentos-chave por que a
nossa consciência se feriu ou se imaginou ferida. A nossa personalidade
cultural desloca-se não especificamente em função destes três “traumatismos”,
mas mais em função das suas consequências no modo social de vivermos e,
especialmente, no modo como imaginamos as causas do nosso viver. Trata-se de
fundamentar não a realidade histórica tout court, mas de compreendê-la
na mediação imagética pela qual os protagonistas da nação interiorizaram
culturalmente o passado e as exigências do presente, isto é, se auto-conhecem;
deste auto-conhecimento que, porque vivido, é sempre ilusório (isto é,
historicamente nem verdadeiro nem falso), ressalta um conjunto de imagens
históricas epocais, registadas na historiografia portuguesa, as quais, por sua
vez, cruzadas e organizadas, constituem a “imagiologia” que define a análise
cultural propriamente dita de E. Lourenço.
O primeiro
traumatismo da história de Portugal relaciona-se directamente com o espírito de
cruzada por que o Condado Portucalense nasceu, espírito aventureiro,
simultaneamente santo e guerreiro, mártir e heróico que definiu a reconquista
do território continental: “O nosso surgimento como Estado foi do tipo
traumático e desse traumatismo nunca na verdade nos levantámos até à plena
assumpção da maturidade histórica prometida pelos céus e pelos séculos a esse
rebento incrivelmente frágil [Portugal] para ter podido aparecer, e
misteriosamente forte para ousar subsistir. (Talvez não seja por acaso que os
mitos historiográficos ligados ao nascimento de Portugal tenham um perfil tão freudiano
com sacrilégios maternos e palavra quebrada, Teresa, Egas Moniz...)”. O acto de
nascimento de Portugal “apareceu, e com razão, como da ordem do injustificável,
do incrível e do milagroso, ou num resumo de tudo isso, do providencial”.
Assim, essa “conjunção de um complexo de inferioridade e de superioridade”
cumpre “uma única função: a de
esconder de nós mesmos a nossa autêntica situação de ser histórico em estado de
intrínseca fragilidade”.
Eis o bilhete de
identidade dos portugueses: esta “intrínseca fragilidade” tem sido compensada
pelo “irrealismo prodigioso” por que nos vemos a nós próprios como seres
dotados de missão histórica providencial. E a verdade é que, historicamente,
existe uma fundamentação tanto para a existência deste duplo complexo quanto do
irrealismo imaginário por que nos sonhamos: “... se exceptuarmos talvez a
Macedónia e Roma, poucas vezes um povo partindo de tão pouco alcançou (...) um
direito tão claro a ser tido por grande”.
A verdade é que, mesmo na “hora solar da nossa afirmação histórica, essa
grandeza era, concretamente, uma ficção”: “da nossa intrínseca e gloriosa
ficção os Lusíadas são a ficção. Da nossa sonâmbula e trágica grandeza
de um dia de cinquenta anos, ferida e corroída pela morte próxima, o poema é o
eco sumptuoso e triste. Já se viu um poema ‘épico’ assim tão triste, tão
heroicamente triste ou tristemente heróico, simultaneamente sinfonia e requiem?”. “O primeiro traumatismo fora
superado por três séculos de pé no redemoinho peninsular e século e meio de
equilíbrio sobre o ‘mar português’”, mas, “antes da noite, o poema [os Lusíadas]
recolhe a nossa primeira e eterna figura que acaso, sem ele, houvesse
perdido a chave e a vontade da sua ressurreição”. Desta magnificência ilusória,
incapazes de controlar tão vasto império, enredados na política de europeia de
expansão, acordámos sentindo-nos “às avessas”, experimentando “na carne que éramos
(também) um povo naturalmente destinado à subalternidade. Esta
experiência constitui um segundo traumatismo, de consequências mais
trágicas que o primeiro”: “nesses sessenta anos o nosso ser profundo mudou de
sinal”. De povo excelso passámos a povo subalterno, inferior, desprezado
politicamente pela restante Europa: “tornou-se então claro que a consciência
nacional (...), que a nossa razão de ser, a raiz de toda a esperança, era o
termos sido. E dessa ex-vida são Os Lusíadas a prova de fogo. O
viver nacional (...) orienta-se nessa época para um futuro de antemão
utópico pela mediação primordial, obsessiva do passado” – nasce o
sebastianismo como liquidação “no imaginário e em termos magníficos (d)o
segundo traumatismo, numa barroca inversão que vale bem outras futuras”: “de
cativos, a senhores do sonho do mundo, de humilhados e ofendidos da História, a
eleitos, servidos pelos outros, paranóica mas generosa visão...”.
É justamente
esta contradição entre passado glorioso e “diminuída realidade presente” que
suporta treze anos de guerra colonial, defendendo um sonho passado sem
expressão concreta presente senão no campo do imaginário (“Portugal Uno do
Minho a Timor”), que conduzirá ao 3º “traumatismo profundo – análogo ao
da perda da independência” e a “um repensamento em profundidade da totalidade
da nossa imagem perante nós mesmos e no espelho do mundo”, isto é, à perda
do Império em 1975. Ainda sob o efeito desta amputação do corpo-uno da imagem
que sobre nós mesmos fazíamos, teria sido o projecto político de integração na
Europa comunitária, a que aderimos em 1980, compensando a ferida da
“descolonização”, que terá permitido a ultrapassagem incicatrizada desta ferida
simbólica que, “em geral provoca noutros povos dramas e tragédias implacáveis”.
Com efeito, desde 1949, em
Heterodoxia I, que Eduardo Lourenço insistia no
reatamento das relações abertas com a Europa como “O Diálogo que nos Falta” e
só agora, 30 anos depois, vê Portugal apostar politicamente, enquanto projecto
nacional, neste diálogo.
*Miguel Real
Escritor e Professor de Filosofia.
Com ligeiras modificações, este texto inédito, enviado gentilmente pelo Autor para Ler Eduardo Lourenço, foi publicado com o título “O ‘irrealismo prodigioso’” no Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 1112, Lisboa, 15/V/2013, p. 11.