quinta-feira, 9 de maio de 2013

Pensar Nove Décadas de Amizade (nº 23): Maria Helena Varela*



Maria Helena Varela
(foto de Susana Rodrigues, Universidade de Évora)




De Eduardo Lourenço se poderia dizer que está para Pessoa, como Heidegger para Nietzsche. Ao mesmo tempo que «denunciam» os mestres como pensadores do fim da meta-física, eles próprios se sentem enclausurados nela, posto que, no caso do ensaísta português, entendendo-a como uma metafísica da interrogação, irremediavelmente trágica, à qual a recordação saudosa, paradoxalmente, parece ainda escapar. Por ser nosso primeiro ensaísta trágico, apercebe-se da rasura desta categoria na existência portuguesa, vivida entre o desas­sossego moderno e a saudade imemorial. É como se, em sua messianidade branca, a saudade fosse o sal que nos restou dos mares, espécie de testemunho do testemunho, indício e rasto que poderá talvez abrir-nos ao futuro do passado no inactual da memória. Reinventar o trágico e mergulhar numa para­doxia sem Aufhebung, ou, o que é pior ainda, sem conjunctio oppositorum, podendo dizer-se que a saudade, em Eduardo Lourenço, parece espreitar como uma força ontológica subterrânea, simultaneamente, implosiva e explosiva, centrífuga e centrípeta que a todo o momento rasga e rasura sua tragici­dade, apelando em surdina para inconcretas esperanças.
(...) Eduardo Lourenço é ainda, na sequência de Sampaio Bruno e José Marinho, nosso ensaísta da temporalidade. Um saudosista da história no fechamento de uma certa historici­dade, sendo sua pós-modernidade a de um pós-romântico a braços com o mal-estar da pós-história, no sentido referido por Alain Badiou. Segundo este autor, o pós do romantismo, seu resíduo contemporâneo, seria, precisamente, o tema da finitude.], desdenhoso desse pós que estilhaça a categoria da temporalidade essencial ao romantismo.
(...) Ensaísmo trágico, a obra de Eduardo Lourenço é ainda, implicitamente, um ensaísmo da decisão. Decisão do indeci­dível, sua obra assume os caminhos difusos do eu, individual e pátrio, não mais como historicidade providencialista e opti­mizante, tão pouco travestida de um logocentrismo que nunca foi o seu, mas outrossim numa pluridimensionalidade aberta de sentidos. Daí sua Culturologia, Imagologia, ou Mitologia da portugalidade, leitura em double bind de nossa história, sem posição de exterioridade absoluta em relação a ela. De tal modo que, escavando a res gesta portuguesa, o ensaísta não rasura nem inventa conceitos, apenas descobre seu potencial simbólico, imagético, numa história em que o mythos, no próprio acto em que se assume como nada que é tudo, se descobre plural e transcultural, por isso mesmo capaz de renascer do magma intempestivo da língua, «esse lugar não lugar onde podemos sempre tornar comum nosso isolamento e viver em conjunto a nossa solidão» (A Nau de Ícaro, Lisboa,1998, p. 231).


*Maria Helena Varela (Porto, 1947 - São Paulo, 2004). 
Professora de Filosofia na Universidade de Évora entre 1996 e 2004. Foi também Professora Visitante na Universidade Federal Fluminense no Brasil. 
O texto que aqui se reproduz é um excerto do livro Microfilosofia (s) Atlântica (s). Confrontos e Contrastes, , Braga, Edições APPACDM 2000, pp. 42- 45.