sexta-feira, 29 de julho de 2011

O tempo de subir cinco andares*

Dinard


No máximo, dezasseis anos. Vem da praia ainda orvalhada de bruma, em fato de banho, fulgurante. Sobe comigo este elevador do acaso. Não sabe que me rouba o presente, que me expulsa para o antigo espaço em forma de abismo onde a minha vida desaparecia nula e gloriosa. A visão da beleza teve sempre para mim este efeito devastador. Esta rapariga perfeita, de pé a meu lado, ignorante da força destruidora das suas longas pernas nuas, ferozes como espadas, não me acordou o que se chama os sentidos. Não se tem vontade de fazer amor com o céu estrelado ou o mar. O amor teve sempre para mim este efeito de evasão da gravidade terrestre. Não é o da pulsão sexual mas o seu oposto. Tudo se passa como se o amor sexual fosse a sombra desse outro amor, aquele que nos subtrai à fatalidade de sermos apenas nós como sobrevivência egoísta. Possuir a fórmula do amor sexual - aliás inexequível - ser possuído, a do autêntico amor, viagem deslumbrada ao centro do sol, esquecimento positivo da pulsão da morte que nas profundezas do corpo lateja silenciosa. Estranho rosto o do amor, mesmo o de um segundo fulminante, sem futuro, como o estático e ascensional por esta desconhecida, me reconduz à morte por instantes suspensa no seu olhar de jovem arcanjo. Durante alguns instantes o tempo, o meu tempo de morte, pôs-me a correr às avessas e deixou-me algures à beira da praia dos meus vinte anos em que tudo era promessa e eu esperava ainda da mulher o olhar que me arrancasse para sempre, raio ou graça, à morte dos dias. O tempo de subir cinco andares.


* Este texto, publicado pela primeira vez no número especial dedicado a Eduardo Lourenço da revista Prelo em Maio de 1984, é um fragmento do famoso diário do ensaísta. Tem a data de 17 de Julho de 1970 e foi escrito na praia de Dinard (França). Ler Eduardo Lourenço recupera o que considera ser um dos mais peculiares escritos de Eduardo Lourenço e agora, ao partír para banhos de mar, deseja a todos os seus visitantes umas óptimas férias. Até Setembro!

segunda-feira, 25 de julho de 2011

...falto de estudo profundo e demorado?



Embora a sua obra nem sempre tenha suscitado e suscite a unanimidade crítica (ao contrário do que, por vezes, se procura insinuar), a verdade é que o ensaísmo de Eduardo Lourenço colheu desde cedo públicos elogios. Foi o caso de Heterodoxia I logo em 1949, como já neste blog se referiu em texto anterior. No entanto, quatro anos depois, na Revista Portuguesa de Filosofia, publicação da Faculdade de Filosofia de Braga da Universidade Católica Portuguesa aparece uma recensão crítica, assinada por Cassiano Abranches, que em baixo se reproduz. Ler Eduardo Lourenço pode não concordar - e não concorda, de facto - com muitas das observações desta recensão, mas julga que se trata de um texto que tem, pelo menos, alguma relevância histórica. Por isso, com a devida vénia, eis aqui aquela que talvez seja uma das primeiras reacções públicas (parcialmente) negativas a um livro de Eduardo Lourenço.
ABRANCHES, C. “LOURENÇO, Eduardo Heterodoxia”, Bibliografia de Revista Portuguesa de Filosofia, nº 9, Braga, 1953, pp. 98-99.


Registe-se, entretanto, que, tanto quanto é dado a conhecer a Ler Eduardo Lourenço, a Revista Portuguesa de Filosofia não dedicou à obra e ao pensamento do ensaísta a atenção que seria de esperar, até porque se trata de uma publicação que, desde o seu início, assumiu como declarada opção editorial abrir as suas páginas aos pensadores portugueses. Como muito relativa excepção desta tendência editorial, assinale-se, para além desta recensão publicada em 1953, um estudo de Pedro Calafate com o título Figuras e ideias da Filosofia portuguesa nos últimos cinquenta anos, dado à estampa no número 51 da Revista, saído em 1995, e onde o autor tece diversas considerações, ao mesmo tempo pertinentes e elogiosas, acerca do ensaísmo de Eduardo Lourenço. Mas, pergunta-se, não será isto pouco se atendermos à magnífica longevidade da Revista Portuguesa de Filosofia? Pura distracção? Ou será que, por bandas da Faculdade de Filosofia da Universidade Católica de Braga, se continua a achar que se trata este de um pensamento falto de estudo profundo e demorado?


Pedro Calafate (foto em fl.ul.pt)












terça-feira, 19 de julho de 2011

S.Pedro do Rio Seco, no próximo dia 6

Há cerca de dois meses, Ler Eduardo Lourenço noticiou a homenagem que a Associação Rio Vivo, numa parceria com o Centro de Estudos Ibéricos da Guarda, vai promover no próximo dia 6 a Eduardo Lourenço, em S.Pedro do Rio Seco. Renova-se hoje a divulgação do evento, ao mesmo tempo que se chama a atenção para o programa do dia, disponível em http://www.facebook.com/pages/Homenagem-a-Eduardo-Lourenço/187656614624875. Esta página de onde, com a devida vénia, Ler Eduardo Lourenço retirou a imagem do cartaz da homenagem que acima se reproduz, merece sem dúvida uma visita dos amigos do pensamento de Eduardo Lourenço. Por múltiplas razões, sem dúvida. Mas que seja permitido o destaque para uma muito interessante entrevista concedida em 2003 à Radio Altitude e que, entre outras curiosidades, ajuda a conhecer um pouco melhor a infância do ensaísta e a sua aldeia. Registe-se ainda uma segunda conversa radiofónica, esta bastante mais recente (Junho de 2011), onde Eduardo Lourenço narra a sua passagem pela Guarda. Vale bem a pena ouvir.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Tempo e Poesia



O projecto de edição das Obras Completas de Eduardo Lourenço tem sido uma aventura fascinante para todas as pessoas que nele estão envolvidas desde há cerca de um ano. Desde logo, porque não se trata apenas de reunir todo o material que se encontra já publicado em livros do ensaísta, em obras colectivas ou em periódicos (consultar bibliografia activa e passiva de Eduardo Lourenço e plano editorial das Obras Completas em http://www.eduardolourenco.uevora.pt/) ou ainda todos os manuscritos que até hoje permaneceram inéditos. Só isso seria já uma experiência imensa e inesquecível. Mas há um aliciante especial neste projecto: é que as Obras estão ainda a ser escritas todos os dias. Mais: o próprio desenho deste projecto editorial está ainda em fase de esboço. Nesse sentido, quer a escolha da sequência e do título dos volumes, quer a selecção dos textos a incluir em cada um deles tem sido um processo complexo e moroso, cabendo sempre, como é evidente, a última e decisiva palavra a Eduardo Lourenço. É importante registar que há muitos volumes em fase já bastante adiantada, tendo os respectivos Coordenadores e a Equipa do Projecto procedido à transcrição de muitos inéditos e à recolha de dispersos, para além de todo o trabalho de edição dos textos (correção de gralhas através do confronto com os manuscritos, por exemplo)
Um dos primeiros volumes a editar terá o título Tempo e Poesia, sendo organizado em torno do livro homónimo de 1974, mas incluindo também dispersos e inéditos com afinidades temáticas. Tempo e Poesia reuniu alguns ensaios mais famosos de Eduardo Lourenço e, através deles, é claramente perceptível como o texto poético se converteu num interlocutor privilegiado da reflexão do ensaísta. Ler Eduardo Lourenço descobriu recentemente um exemplar da primeira edição de Tempo e Poesia que tem como característica singular uma dedicatória a Paulo Quintela, autografada pelo autor e que aqui se reproduz: «Para o ilustre germanista e velho amigo Doutor Paulo Quintela, com o melhor abraço do seu muito admirador, Eduardo Lourenço. Porto, Abril de 1975». Reproduzem-se também imagens da capa e da contracapa do livro, esta última com uma fotografia da época de Eduardo Lourenço. Ler Eduardo Lourenço aproveita ainda para recordar o texto que o ensaísta dedicou ao antigo Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e muito conceituado tradutor: “Paulo Quintela. À sombra de Rilke”, Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 918, Lisboa, 21/XII/2005, p. 15.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

De volta a Coimbra...



Do riquíssimo programa do III Festival das Artes, a decorrer de amanhã até ao fim do mês na mítica Quinta das Lágrimas, em Coimbra, e que é uma organização da Fundação Inês de Castro, Ler Eduardo Lourenço teria forçosamente de destacar a sessão a realizar no próximo sábado, pelas 21h30 no Hotel da Vila Galé. Trata-se de A Paixão segundo Eduardo Lourenço, título enigmático e que, por si só, justificaria uma deslocação ao evento.
De Coimbra, em cuja Universidade viria a estudar e onde começou a ensinar, Eduardo Lourenço ouviu falar pela primeira vez falar com apenas dez quando à sua aldeia chegavam notícias «através de dois estudantes (...) [seus] vizinhos (...) de uma cidade encantada, propícia aos amores, à boémia, às musas e à grave ciência» ("Uma tão longa ausência", Jornal de Letras, Artes e Ideias, 8/V/1996, p. 7). Uma década depois seria a sua vez de descobrir essa Coimbra propícia aos amores. Daí que se aguarde com especial interesse esta Paixão segundo Eduardo Lourenço. No entanto, todo o programa do Festival (que se pode consultar no site do Festival: http://www.festivaldasartes.com/) é no mínimo tentador ou não fosse o tema da edição deste ano precisamente ... as paixões.
Em cima reproduzimos, com a devida vénia, o cartaz da edição do Festival das Artes 2011, elaborado a partir de uma belíssima fotografia de António Sachetti.
Rigorosamente, a não perder...

terça-feira, 5 de julho de 2011

Um blog é um acto de escrita

 
 
Quase meio ano depois do seu nascimento, Ler Eduardo Lourenço cai na tentação (pouco modesta, reconheça-se) de efectuar um pequeno balanço. O que começou por ser uma simples ferramenta de apoio ao trabalho de catalogação, digitalização e recolha de textos inéditos e dispersos de Eduardo Lourenço, realizado no âmbito do projecto da edição das Obras Completas, transformou-se progressivamente numa plataforma de divulgação de aspectos menos conhecidos (embora todos eles do domínio público) da figura e do pensamento do ensaísta. Desde o início que Ler Eduardo Lourenço afirmou que seria fundamentalmente aquilo que os seus visitantes quisessem que ele fosse e, de facto, o blog tem vivido muito da colaboração dos seus leitores, quer através dos seus comentários (que, por motivos editoriais, foi decidido manter num num plano reservado), quer através do envio de materiais inéditos, existentes no espólio de Eduardo Lourenço (cujo projecto de catalogação decorre no Centro Nacional de Cultura com a supervisão de João Nuno Alçada) ou na posse de outras pessoas, bem como de imagens, textos e comentários até hoje pouco difundidos. 
Como forma de assinalar os seus primeiros seis meses de existência, Ler Eduardo Lourenço recupera, a partir de um video de uma entrevista, concedida em 2009 durante a 10ª edição das Correntes da Escrita (http://www.rascunho.net/artigo.php?id=2400), as impressões do ensaísta acerca das relações entre escrita e os blogs. Assim, depois de elogiar o modo como o escritor espanhol Juan José Millás se referiu à circunstância de, nos dias de hoje, aos escritores ser preciso acrescentar a figura dos desescritores, Eduardo Lourenço afirma mais ou menos o que se segue: «Como toda a gente é potencialmente um escritor, isso é uma maneira de desertificar os escritores. Se toda a gente é escritor, ninguém é escritor. Os escritores até agora eram umas minorias de cada geração. Agora, com a nova civilização, as pessoas ascenderam todas a níveis culturais cada vez maiores, toda a gente se pudesse escreveria o seu blog, um blog é um acto de escrita». Depois à pergunta se gosta e se concorda com os blogs, Eduardo Lourenço, após dizer que já não é da idade da Internet, declara que os blogs, enquanto experiência de escrita, podem ser uma espécie de primeira etapa que, mais tarde, eventualmente, se converterá em livro. No entanto, confessa: «Não sou leitor de blogs, nem sou autor de blogs».

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Kafka au Portugal

Ler Eduardo Lourenço arrisca dizer que, talvez tão grande como a sua paixão pela escrita, existe no ensaísta um prazer enorme em conversar. O próprio chega muitas vezes a dizer, com algum remorso, que adora o paleio. De resto, terá sido também esse gosto pela conversa que encantou aquela que veio a ser a sua mulher, Annie Salomon de Faria, que evoca o modo como o destino «levou um jovem português a cruzar o meu caminho na Universidade de Bordéus. Ele era filósofo e falava mal francês. Mas este handicap não o impedia de intervir com veemência nos debates de vários círculos culturais da cidade. Ele era fascinante. A tal ponto que um dia atrevi-me a dizer-lhe: Vous êtes un bavard sympathique. Uma frase fatal que selou o meu destino. Casei com Eduardo Lourenço em 1954» (“Cumplicidade e identidade”, Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 997, Lisboa, 17/XII/2008, p. 42).
Essa disponibilidade para a conversa é realmente permanente e infatigável. Em colóquios, nos media ou até nas Feiras do Livro, Eduardo Lourenço é um conversador nato. Por um lado, porque escuta verdadeiramente os seus interlocutores. Por outro, porque é capaz de contar as mais incríveis histórias, muitas delas em que intervem como protagonista ou pelo menos como observador directo e perplexo.

Eduardo Lourenço este ano na Feira do Livro em Lisboa, assinando um dos seus livros e à conversa com os seus leitores
(foto Ler Eduardo Lourenço)

É o caso de um episódio da sua biografia, ocorrido exactamente na década do seu casamento, e de que reproduzimos aqui duas versões (a espantosa vivacidade de Eduardo Lourenço não facilita a vida de quem quer reproduzir a sua oralidade...), admiravelmente escritas por dois grandes cronistas da literatura portuguesa contemporânea: o já citado neste blog Onésimo Teotónio de Almeida, num texto redigido para o Jornal de Letras, por ocasião dos 80 anos de Eduardo Lourenço, e o saudoso João Bénard da Costa, num memorável depoimento cinco anos depois, na Fundação Calouste Gulbenkian. É uma história (ou serão duas?) com contornos algo kafkianos, mas em que a sua tensão e a sua dureza (bem reais) aparecem como que atenuadas por um modo português de existir que lhe vai conferindo uma  surpreendente e irresístível comicidade.
Eis, para começar, a versão de Onésimo Teotónio de Almeida
«Um dia o autor de O Fascismo Nunca Existiu contou-me uma das mais deliciosas narrativas que conheço da cultura portuguesa. Demoraria muito reproduzi-la. Meia hora, se bem me lembro, levou ele a contar-me com todos os saborosíssimos pormenores. Ainda uma vez tentei convencê-lo a repeti-la num programa de televisão. Lourenço não cedeu. A história começa na fronteira de Vilar Formoso, à entrada em Portugal, e a data é, creio, 1954. Lourenço assinara em França um documento com outros intelectuais e artistas (tenho notas algures mas estou escrevendo em viagem). A PIDE detém-no e leva-o para um quarto. Um funcionário aparece e oferece-se para guardar qualquer documento que ele quisesse esconder. Era um familiar. As peripécias sucedem-se entre o dramático e a desconcertante estrutura de um Portugal profundo, onde as relações humanas descosem as hierarquias e reduzem tudo à dimensão da aldeia.
Um motorista leva Eduardo Lourenço num pequeno automóvel para Lisboa. A meia viagem pára. Numa sombra. Vai ao porta-bagagem e agarra de um lençol que estende na berma da estrada. Abre a cesta do farnel e partilha-o com Lourenço.
Em Lisboa (em Caxias, terá sido?), põem-no num quarto onde o deixam esquecido noite dentro à espera de um interrogatório que não chega. Deambulando de um lado para o outro do corredor, um guarda prisional vigia-o. Passa da meia-noite sem nada acontecer para além dos passos do PIDE. Que às tantas entra, hesitante, Lourenço pressentindo a timidez.
O guarda entabula conversa:
- O sr. Doutor é professor na França?
- Sou.
- E o senhor doutor não me arranjava lá um trabalhinho?»
(“A magia de uma personalidade”, Jornal de Letras, Artes e Ideias, 14/V/2003, pp. 22-23).

E, agora, a mesma narrativa segundo João Bénard Costa: «Termino com uma história que Eduardo Lourenço me contou em Paris, quando nos encontrámos, como disse, pela primeira vez pessoalmente. Eduardo Lourenço contou-me que tinha estado no ano anterior ou dois anos antes, em Portugal, numa das suas episódicas visitas ao país, e tinha sido chamado à PIDE, para ser interrogado. Enfim, tensão habitual desses momentos, o inspector e o oficial de diligências, ou como se lhe queira chamar, que com dois dedos ia escrevendo à máquina o depoimento de Eduardo Lourenço. Interrogatório tenso, querendo saber de relações de Eduardo Lourenço, de pessoas com quem se correspondia, de cartas, de contactos que mantinha, enfim, uma situação difícil, e a certa altura o inspector por qualquer razão saiu da sala. Seguiu-se um silêncio e então o dactilógrafo levantou-se, foi à porta olhar com muita atenção para verificar que o inspector não estava por ali e dirigiu-se a Eduardo Lourenço, perguntando:
- Então o senhor vive em França? - Eduardo Lourenço respondeu-lhe que sim, naturalmente, e ele retorquiu:
- Parece que em França se ganha bem…
- Bom, depende dos casos, mas enfim ganha-se melhor do que em Portugal, isso é indiscutível.
O homem voltou à porta, voltou a olhar e depois regressou para junto de Eduardo Lourenço e disse:
- O Senhor, por acaso, não me consegue arranjar em França um lugarzito, porque isto aqui ganha-se mal?
- Isto só em Portugal podia acontecer. Ser interrogado por uma polícia que não era branda nem pêra doce, numa situação difícil, e de repente um dos agentes dessa mesma polícia a meter uma cunha para um emprego em França»
(“Testemunho”, Colóquio-Letras, nº 170, Lisboa, Gulbenkian, Janeiro de 2009, p. 386).