O casal Faria e o casal Santos em Oxford, 1996. |
Eduardo Lourenço é justamente reverenciado como o maior pensador vivo de Portugal. Outros já o terão dito e continuarão a dizer com talento e competência. O testemunho que eu, Emmanoel, aqui trago sublinha apenas uma virtude inerente a seu trabalho intelectual, que muito me surpreendeu num primeiro contato com o profundo analista. Como poderia alguém com as suas credenciais ser tão humilde? Ainda mais em área onde essa virtude é rara, e pode mesmo vir a depor contra quem a assume. A descoberta aconteceu num desses congressos com muitas sessões simultâneas. O Professor sentou-se a meu lado em sala onde falavam novatos e vi que ele escrevia em um caderninho. Pensei que aproveitava o tempo para avançar em suas reflexões. Mas, curioso, mobilizei minha visão periférica e constatei que anotava o que uma jovem ia dizendo. Certamente ele iria pôr em xeque alguma afirmação dela... Eis que, chegado o momento das perguntas e comentários o professor pediu apenas um esclarecimento bibliográfico. Tomou notas para seu uso próprio. Recolheu pequenos grãos de conhecimento, calhaus desprezíveis para quem tem uma montanha de saber. Mas não se tiver a humildade do sábio professor.
Não há montanhas nem montes em S. Pedro de Rio Seco, mas há pedras, muitas pedras. Quando eu, Gilda, vejo fotos do Mestre a percorrer, circunspecto, recantos de sua pedregosa aldeia, recordo sempre "O Castelo de Faria", do rigoroso Herculano. E não pela coincidência onomástica. O conto bem demonstra o quão mutante e fugaz pode ser o destino das pedras, submetidas mais à vontade dos homens do que à inexorabilidade do tempo. Os resquícios do castelo que testemunhou o exemplo ímpar do leal Nuno Gonçalves converteram-se noutra edificação, de outro uso, provando o descaso de nossos ancestrais em preservar marcos que diziam de seus feitos: “Mas esta glória, não há hoje aí uma única pedra que a ateste. As relações dos historiadores foram mais duradouras que o mármore”. Fragilizando o perdurar pétreo, o narrador alça a efêmera palavra a suprema guardiã da memória coletiva. Registro e versão repercutindo infinitamente. Assim Eduardo Lourenço, ao perscrutar como ninguém as pedras de nossos múltiplos tempos, pereniza com palavras só suas os monumentos e as ruínas de nossa controversa identidade. A cada texto funda um novo castelo de Faria, indestrutível.
*Gilda e Emmanoel Santos são Amigos de longa data de Eduardo Lourenço.
Gilda Santos foi Professora de Literatura Portuguesa na UFRJ de 1976 a 2006. Entre inúmeras outras actividades que desenvolve em prol da Literatura e Cultura Portuguesas no Rio é Coordenadora Científica do blog Ler Jorge de Sena.
Gilda Santos foi Professora de Literatura Portuguesa na UFRJ de 1976 a 2006. Entre inúmeras outras actividades que desenvolve em prol da Literatura e Cultura Portuguesas no Rio é Coordenadora Científica do blog Ler Jorge de Sena.
Texto inédito gentilmente enviado pelos Autores para Ler Eduardo Lourenço.