terça-feira, 22 de outubro de 2013

Sobre "Lumen Fidei"*

 
* Filme disponível no you tube da sessão A Luz da Fé e os desafios das periferias que, com a organização do Centro de Reflexão Cristã, se realizou no passado dia 17 de Setembro em Lisboa e no qual participaram José Tolentino Mendonça e Eduardo Lourenço. 
A Luz da Fé é uma carta encíclica do Papa Francisco que pode ser consultada em http://www.vatican.va/holy_father/francesco/encyclicals/documents/papa-francesco_20130629_enciclica-lumen-fidei_po.html


terça-feira, 15 de outubro de 2013

Meter a foice em Seara alheia?

Para além da importância, mais ou menos relativa, mais ou menos indiscutível, do papel que todos desempenham na configuração da cultura portuguesa do século XX, o que há de comum a nomes tão variados como António Sérgio, Jorge de Sena, Raul Brandão, Sílvio Lima, José Marinho, Raul Proença, José Rodrigues Miguéis, Jaime Cortesão, Vergílio Ferreira, Augusto Abelaira, Joel Serrão, Eduardo Lourenço, José Saramago, Aquilino Ribeiro, Teixeira de Pascoaes, Eduardo Prado Coelho, José Bacelar, Adolfo Casaes Monteiro, Mário Sacramento, Mário Dionísio ou João Martins Pereira, por exemplo? Todos eles (e a lista está muito longe de ser exaustiva) estiveram ligados e/ou assinaram textos nas páginas da revista Seara Nova, fundada precisamente há noventa e dois anos, ou seja, no dia 15 de Outubro de ... 1921.
Torna-se, também por isso, impossível compreender a vida intelectual e literária do Portugal Contemporâneo, para usar o nome de uma obra emblemática de Oliveira Martins, sem dúvida uma das figuras tutelares da Seara, sem revisitar as páginas de uma publicação que, importa não o esquecer, ainda hoje se publica, mesmo que nem sempre pareça fazer juz ao espírito e à exigência estética dos seus fundadores, entre os quais se destacaram Raul Proença, Jaime Cortesão e Aquilino Ribeiro. Recorde-se que António Sérgio, nome que que é habitual (e inteiramente justo, como é óbvio!) ver associado à revista, ingressará apenas em 1923 nas fileiras da Seara Nova.


Em primeiro plano, da esquerda para a direita, vemos Jaime Cortesão, Aquilino Ribeiro e Raul Brandão.Atrás, Raul Proença é o terceiro a contar da esquerda. (Foto: Arquivo da Família de Aquilino Ribeiro Machado)

Ora, a verdade é que também se tornou costumeiro associar Eduardo Lourenço a um certo anti-sergismo e, por via disso, a um certo anti-searísmo. Há alguns motivos para tal e o famoso ensaio que dedicou a António Sérgio nos finais dos anos Sessenta nas páginas de O Tempo e o Modo não é, decerto, um dos menos relevantes. Mas a verdade é que, em muitos aspectos, o ensaísmo de Eduardo Lourenço não é antagonista do ideário da Seara. Tanto mais que, entre 1947 e 1952, Eduardo Lourenço escreveu para a revista. Primeiro com dois textos que aparecem assinados por Eduardo... Coimbra!


Depois, já como Eduardo Lourenço lui-même. Claro que esta participação escassa e pontual não faz de Eduardo Lourenço um seareiro ortodoxo, desde logo porque este adjectivo não casa bem com o seu percurso e a sua atitude intelectual. Contudo, talvez seja igualmente excessivo considerar que, quando escreveu os seis artigos que adiante se indicam, o ensaísta estava a meter a foice em Seara alheia.

1) [Com o pseudónimo Eduardo Coimbra], “Nota sobre a pretendida genialidade da Confissão de Lúcio”, Seara Nova, nº 1018, Lisboa, 1/II/1947, pp. 62-63.
2) [Com o pseudónimo Eduardo Coimbra], “Sobre Jangada de António de Sousa”, Seara Nova, nº 1025, Lisboa, Março de 1947, pp. 199-200.
3) “Literatura e simplicidade de espírito”, Seara Nova, nº 1078, Lisboa, 27/III/1948, pp. 1-3.
4) “NADA – um invulgar romance espanhol ou a metafísica que um romance suporta”, Seara Nova, Ano XXVII, Lisboa, 12/VI/1948, pp. 97-99.
5) Humanismo e Terror ou a Denúncia do Pacifismo Hipócrita” [Sobre Maurice Merleau-Ponty, Humanisme et Terreur], Seara Nova, nº 1248-49, Lisboa, 1-29/III/1951, pp. 42-43 (Texto reimpresso em Ocasionais).
6) “Alexandria Ano Zero ou a 26ª Hora”, Seara Nova, nº 1262-63, Lisboa, 4-25/X/1952, pp. 150-151 (Texto reimpresso em Ocasionais).

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Mário Botas ou os sonhos de um estrangeiro na própria casa

Como se sabe, há afirmações que podem ter mais do que uma leitura. Quando se diz que Eduardo Prado Coelho é um dos primeiros leitores de Eduardo Lourenço, a frase pode pelo menos querer significar duas teses. Pode traduzir um juízo factual ou objectivo: Eduardo Prado Coelho é uma das pessoas que mais cedo começou a ler o autor de O Espelho Imaginário  e dessas leituras deu quase imediato testemunho nítido através das recensões críticas dedicadas a livros como Sentido e Forma da Poesia Neo-realista ou Heterodoxia II e publicadas logo nos finais dos anos Sessenta. Mas a frase pode também expressar um juízo valorativo, se visar conferir à expressão um dos primeiros o sentido seguinte: um dos principais, mais importantes ou até melhores leitores de Eduardo Lourenço. Neste segundo caso, a tese é evidentemente discutível, embora haja fortes motivos para a tomarmos como válida.
Ora, num dos muitos textos que dedica à especificidade do ensaísmo de Eduardo Lourenço, Eduardo Prado Coelho fala no que chama um princípio de amizade, que, do seu ponto de vista, caracteriza a escrita do autor de Pessoa Revisitado. E explica melhor o que significa esse princípio:  «não pretendo dizer que ele elogia os seus amigos (o que certa­mente lhe acontece, e ainda bem), mas precisamente outra coisa: que ele se aproxima sempre de uma obra literária, seja ela de quem for, como se a amizade fosse a forma privilegiada do conhecimento». Talvez não haja exemplo tão claro da ilustração desse princípio de amizade praticado por Eduardo Lourenço como quando escreve sobre o pintor Mário Botas (Nazaré, 1952 – Lisboa, 1983). A leitura do extraordinário ensaio “Mário Botas ou a pintura como poesia”, inserido na segunda edição de O Espelho Imaginário, bastará decerto para confirmar esta hipótese. Por exemplo, é aí que encontramos a fabulosa expressão que serve de título a estas linhas:  os sonhos de um estrangeiro na própria casa. Nela ecoa a inapagável marca pessoana, referência decisiva quer em Eduardo Lourenço, quer em Mário Botas.

A capa de Fernando Rei da Nossa Baviera foi feita a partir de uma pintura de Mário Botas, a quem é dedicado o ensaio que abre o livro e que tem o mesmo título. A paixão pela obra de Fernando Pessoa é um dos elementos que desde sempre aproximou Eduardo Lourenço e Mário Botas.
De Mário Botas, figura injustamente caída num certo esquecimento, acaba de chegar às  livrarias (embora com a data de 2012), numa corajosa edição da Averno, o volume  Aventuras de um crâneo e outros textos. Trata-se de um excelente documento não apenas pela sua beleza gráfica, como pelo valioso conjunto de textos e informações sobre a vida e a obra de Mário Botas, trágica e prematuramente interrompidas com a sua morte. Nesse conjunto de escritos destacam-se três cartas dirigidas a Eduardo Lourenço e que se encontram no espólio do ensaísta. Duas delas, datadas de 18 de Setembro de 1979 e de 4 de Outubro de 1979, tinham sido já publicadas em Colóquio-Letras (nº 171, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Maio de 2009, pp. 415-418), mas a terceira que, neste caso, se trata em rigor da primeira (foi escrita com a data de 1 de Maio de 1977) permanecera até agora inédita. É uma carta belíssima e mostra como a amizade entre Eduardo Lourenço e Mário Botas não se pode dissociar da recíproca admiração das respectivas obras. Mas Aventuras de um crâneo tem muitos outros motivos de interesse e por isso a sua leitura afigura-se imprescindível.
 

Mário Botas fotografando Eduardo Lourenço em Vence (imagem retirada de Tempos de Eduardo Lourenço. Fotobiografia, Campo das Letras, 2003)
Ler Eduardo Lourenço teve o privilégio de ser recebido pelo ensaísta há algumas semanas em Vence. Foi uma tarde inesquecível na qual, uma vez mais, Eduardo Lourenço deu provas da sua generosidade e simpatia infatigáveis. Assim, para além da visita à famosa Chapelle du Rosaire, uma criação esplendorosa de Henri Matisse, e da ida a uma impressionante exposição de Marc Chagall no Museu de Vence (e que prazer insubstituível é ouvir os comentários de Eduardo Lourenço que, sempre em passo apressado, percorreu as várias salas do museu), houve lugar a uma emocionada evocação de … Mário Botas, pintor que, tal como Matisse e Chagall, também passou por esta cité des artistes. À passagem pela célebre fonte que recebe quem se prepara para entrar na zona amuralhada de Vence, Eduardo Lourenço exclamou: «O meu Amigo Mário Botas tirou-me uma vez uma fotografia junto a esta fonte!» 
E, assim, de uma certa forma, se revisitou a hospitalidade de alguém que, muitas vezes, também se parece sentir um estrangeiro na sua própria casa.
Eduardo Lourenço em foto de Mário Botas (imagem retirada de Tempos de Eduardo Lourenço. Fotobiografia, Campo das Letras, 2003)
Eduardo Lourenço em Vence no passado dia 29 de Agosto. Foto de Ler Eduardo Lourenço