Guilherme d’ Oliveira Martins com Eduardo Lourenço |
Se há pensador português contemporâneo que pratica o sentido crítico plenamente, ele é Eduardo Lourenço, empenhado (neste belo tempo de aniversário) em libertar-se da consideração de «mito cultural», que, relativamente a uma geração anterior, entendeu criticamente ter sido assumida por António Sérgio. Ao interrogar permanentemente a identidade portuguesa, fê-lo como genial criador da língua e da literatura, articulando a intuição poética e a manipulação experimentada e hábil dos mitos, que o ensaísta usou como reveladores dos grandes enigmas de uma nação antiga que teima em persistir e em lutar, contra todas as lógicas e evidências. E assim seguiu as pisadas de Joaquim de Carvalho e de Sílvio Lima por sendas diferentes.
«Na aparência, o país que (…) podia justificar um livro como O Labirinto já não existe» – disse-o o ensaísta na reedição do ano 2000 da sua mais falada obra. E afirmava ainda, que no tempo decorrido, «não mudámos apenas de estatuto histórico-político, de civilização e de ritos sociais que julgávamos, lamentando-o, característicos de uma sociedade quase marginal em relação aos padrões europeus. Mudámos literalmente falando, e sem quase nos darmos conta disso, de mundo. Mudámos porque o mundo conheceu uma metamorfose sem precedentes, não apenas exterior, mas de fundo». Passámos a viver noutro planeta, caiu o muro de Berlim, deixámos de ser «potencial ou imaginariamente» senhores dos nossos destinos, houve uma «avassaladora dissolução das entidades clássicas a que chamávamos nações», sobrevieram «microidentidades virulentas ou superidentidades simbólicas». Mas onde estamos? Quem somos? «Como todo o Ocidente, tornámo-nos “todo o mundo e ninguém”. A nossa visceral “hiperidentidade” nada tem de irónica, tal como era descrito no Labirinto. Somos, sim, quem sempre quisemos ser.
Em vários momentos, Eduardo Lourenço explicou-nos que o ensaísmo que praticou e pratica nunca foi feito por ele próprio para recuperar o país, que verdadeiramente nunca perdeu (sendo ele, afinal, um ausente presente), mas para o «pensar», com paixão e sangue-frio intelectual, lembrando o tempo antigo da «felicidade melancólica» do tempo em que era um «prisioneiro de alma».
Assim se entende a sua visão dos mitos, na linhagem de Antero e de Oliveira Martins – não como mitos da pura alienação, mas como mitos enquanto ideias projetadas no devir por um povo que toma consciência de si.
Os mitos e os contra-mitos são vistos como auto-representações críticas, irónicas, motivadoras, ilusórias, entusiastas ou redutoras – mas sempre como pistas para explicação ou para o conhecimento. E o ensaísta sabe, e di-lo com clareza meridiana, que não há uma mitologia nacional, mas mitos na história, que circulam e são sinais de permanência e de metamorfose. Daí que o escritor recorra aos poetas do seu santuário – Camões, Antero e Pessoa – para melhor avaliar o sentido das mitologias, compreendendo, pela reflexão e pelo pensamento, quais projetam esperança no futuro (no sentido da «maravilhosa imperfeição») e quais são provas póstumas e sinais de decaimento, como no sebastianismo. Nesse ponto, Vieira é um companheiro também presente nessa apaixonante busca de palavra e utopia…
*Guilherme d’ Oliveira Martins.
Presidente do Tribunal de Contas e do Centro Nacional de Cultura.
Excerto do texto publicado com o título “Que saudade no labirinto?” em Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 1112, 15/V/2013, p. 12, gentilmente enviado pelo Autor para Ler Eduardo Lourenço.