terça-feira, 30 de abril de 2013

Apresentação de Pensar Nove Décadas de Amizade

 Eduardo Lourenço na Guarda no seu 85º aniversário (2008)

Eduardo Lourenço completa no próximo dia 23 de Maio Noventa Anos. Ler Eduardo Lourenço não pode passar à margem deste singular acontecimento que enche de Alegria todos os Amigos de Eduardo Lourenço e do seu Pensamento. Assim, durante o próximo mês, Ler Eduardo Lourenço irá publicar noventa (90!) depoimentos, testemunhos ou reflexões acerca do ensaísta e/ou da sua obra. Ler Eduardo Lourenço agradece reconhecidamente a todas as pessoas que aceitaram participar nesta simples mas emocionante homenagem e, em especial, a Gilda Santos, Maria Graciete Besse, Margarida Almeida Amoedo, António Pedro Pita, Carlos Mendes de Sousa e Antonio Saez Delgado que, através das suas sugestões, muito contribuíram para a execução deste projecto.
Às várias dezenas de pessoas escolhidas para participar em Pensar Nove Décadas de Amizade com um depoimento expressamente elaborado para esta iniciativa, Ler Eduardo Lourenço irá acrescentar vários textos de Amigos de Eduardo Lourenço que, infelizmente, já não se encontram entre nós. Esses textos, todos eles anteriormente publicados, não constam, porém, em nenhum dos volumes de homenagem a Eduardo Lourenço que foram organizados nos últimos anos e dos quais destacamos os números especiais de Metamorfoses. Revista da Cátedra Jorge de Sena para Estudos Literários Luso-Afro-Brasileiros (nº 4, Rio de Janeiro, Setembro de 2003), Relâmpago. Revista de Poesia, nº 22, Lisboa, Abril de 2008 Colóquio-Letras (nºs 170 e 171), Correntes d'Escritas. Revista de cultura literária da Póvoa de Varzim (nº 11, Fevereiro de 2012), bem como os três livros organizados por Maria Manuel Baptista, a saber: Eduardo Lourenço. Uma Cartografia Imaginária, (2003), Estudos. Eduardo Lourenço (2006) e Cartografia Imaginária. Dos Poetas e Amigos (2008).
Ler Eduardo Lourenço tem a perfeita consciência que seria possível e igualmente valioso escolher outros noventa depoimentos de outros Amigos de Eduardo Lourenço e da sua Obra. No entanto, sublinha que  Pensar Nove Décadas de Amizade articula-se intimamente com o trabalho que, desde há largos meses (e nem sempre com a continuidade desejada), este blog tem vindo a realizar, no âmbito do projecto da edição das Obras Completas de Eduardo Lourenço: divulgar aspectos menos conhecidos da figura e do pensamento daquele que, para muitos, é o maior ensaísta português do nosso tempo.
Amanhã, dia 1 de Maio, serão publicados os primeiros textos, de autoria de José Saramago, Jorge de Sena e Vergílio Ferreira, todos eles Leitores e, acima de tudo, Amigos de Eduardo Lourenço.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Reinventar a Revolução (1978)*


Imagem a partir da pintura de Nikias Skapinakis: Delacroix no 25 de Abril em Atenas, 1975


Assistimos à arrogância impúdica das forças
 da direita e dos saudosistas do passado.
Manuel Alegre, 9/4/78

Daí que se tenha andado na maior parte do tempo à deriva, nos quatro
anos de Democracia que já tivemos, não só por falta de orientações concretas
para a acção, como também à míngua de dirigentes de qualidade,
em número suficiente e com a determinação de as concretizar com êxito.
Rémy Freire, O Jornal de 7/4/78

Audácia, mais audácia.
Diário de Lisboa, Política de A a Z,
10/4/78



A atmosfera nacional não permite celebrar na euforia o quarto aniversário da Revolução. Os povos não apreciam, aliás, as festas que eles próprios não concebem como expressão da sua alegria, força, vitalidade e autocelebração. Não há festejos de encomenda, nem celebrações ritmadas pelo acaso do calendário. Nas vésperas deste quarto aniversário, a Esquerda portuguesa não tem o direito de se enganar, nem de inimigo nem de alegria. A sua obrigação é a de encarar com lucidez e coragem o itinerário dramático que a conduziu, da esperança e do dinamismo históricos de 74, à morna planície do desencanto onde é hoje obrigada, sob o fogo quotidiano dos nostálgicos do antigo sistema, a organizar o que já, sem rasto de pessimismo, começamos a chamar “Resistência”. Quer dizer, a Esquerda tem de se encarar consigo mesma, reinventar o seu próprio projecto, reinventando com ele uma Revolução que se esboroa, não apenas nem sobretudo, sob os golpes da orgânica Direita portuguesa, mas sob a pulsão suicida da sua própria incoerência interna e a mortal complacência, senão conivência, daqueles que lhe deviam ter dado forma e mais não fizeram do que desfigurá-la.
Não é com prazer que se escrevem estas linhas numa hora que devia ser apenas a da exaltação e reconhecimento por uma data histórica que pôs fim (?) a décadas de conformismo político, ideológico e mental sob as quais floriu sem entraves o silêncio, a censura obrigatória, o terror seráfico, a tortura selectiva, a impunidade garantida da opressão como meio de existência cívica, moral e intelectual. Infelizmente, a realidade e verdade deste diagnóstico não foi durante essas décadas ressentida e vivida pela generalidade dos portugueses nos termos e nos moldes em que só uma activa minoria a sofreu, e deste engano de alma «ledo e cego» derivaram para os destinos da Revolução as mais desastrosas, mas previsíveis consequências. O povo que, sem consciência política da miséria de que era vítima, a não pôde fisicamente suportar, emigrou. E, emigrado, criou as condições de sobrevivência do regime que o condenava à emigração. O outro, o que ficou, adaptou-se a um sistema que a ele soube adaptar-se, cultivando o pendor burocratizante herdado do liberalismo do século XIX e glorificando, noite e dia, uma “ordem” que tem fundas raízes na pacata e nada aventurosa tradição caseira que nos é própria. Sem a guerra africana, sem a crise ocidental de 1973, o Sistema, odioso e odiado pela generalidade dos portugueses politizados (mas, não o esqueçamos, naturalmente minoritários), teria, sem dúvida, sobrevivido, embora com cedências de superfície. Tudo isso a Revolução de Abril abalou, mas com uma subitaneidade propícia à gestação de um novo sonambulismo de dupla face. A Direita, ferida politicamente de morte aparente, hibernou (ou emigrou) sob o choque. A Esquerda instalou-se, sem outra forma de processo, sem um mínimo de esforço para teorizar a sua própria situação e a do País, onde o “milagre” de Abril lhe abria, de repente, todas as portas, num espaço baptizado de democrático, como se o peso sociológico do maciço conformismo de quarenta anos se tivesse evaporado do horizonte pátrio. Hoje sabemos, ou sabem todos (como cedo alguns o souberam inutilmente), que a Revolução de Abril foi, desde o início, normalizada, vivida como um parêntesis necessário e incómodo por aqueles mesmos que ela trouxe à luz da ribalta, à parte o seu momento revolucionário, cujo núcleo resiste ainda, mas como um intolerável desafio, um obstáculo que cada dia as forças reorganizadas do eterno conservantismo nacional atacam, com feroz determinação e apático desinteresse dos seus naturais defensores.
Atacando uma Revolução que lhe destruía a impunidade cívica, o gozo económico desenfreado, a superioridade de condição e de estado, as diversas correntes da, no fundo, unitarista Direita portuguesa, cumprem o seu dever. As indignações, os protestos, o tardios alarmes, os reflexos escandalizados de muitos tenores da Esquerda inconsciente (e também sonambúlica e impune) contra as provocações, o gáudio revisteiro do triunfalismo direitista e extremo-direitista, não são a resposta da Esquerda ao processo suicidário que tem minado e continua a minar, aberta ou secretamente, a Revolução de Abril. Sem dúvida que, na boca dos coveiros da Revolução, esses clamores teatrais têm, ao menos, a vantagem de consolar (triste consolação) os que, há muito, assumiram, sem alegria nenhuma, o dever óbvio de Cassandras por conta própria. Sem dúvida, também, que não é este o momento de instaurar o processo político e moral desses coveiros da esperança socialista, despertada pela Revolução que comemoramos e inscrita numa Constituição em que esses mesmos coveiros colaboraram. A Esquerda portuguesa, no seu conjunto, é apenas suficiente para resistir à vaga contra-revolucionária que se espraia, com júbilo, numa Imprensa de sucesso garantido pela sua própria grosseria e agressividade, mas ambas só possíveis porque das profundezas de um povo que a Esquerda não soube convencer quando era tempo e, em particular, o poder que a representa, recebe o aval extasiado da sua permanente e insolente provocação. Reinventar a Revolução – retornando a sério e mesmo desde o começo as suas promessas vitais dinamizadoras – só é possível pela reinvenção dessa mesma Esquerda, pela sua reestruturação, o que supõe autocrítica em todos os quadrantes e, em especial, no da Esquerda ainda no Poder de braço dado mortal com uma Direita cujos jovens e incorruptíveis representantes proclamaram, com coerência louvável, que nem por sombra se pode contar com eles para se aliar com a juventude socialista. Quer dizer: aquela mesma cujos dirigentes conduzem o País a meias com os patrões de tão decididos opositores ao espírito da Revolução e à sua letra.
O inimigo da Revolução está dentro dos seus muros. Diz-se que está “civilizadamente”, como se isso fosse uma atenuante, quando é uma agravante. Diz-se também que essa presença, mais “formal” que efectiva, permite às forças de Esquerda actualmente no Poder um espaço de manobra e uma eficácia “socialistas” muito superiores às do Governo precedente. A observação tem alguma verdade, como é visível através da actuação e da vontade dinamizadoras de certos sectores, entre eles o da Saúde e da Cultura. Mas nenhum activismo sectorial, nenhum sucesso particular, poderá equilibrar, jamais, o autêntico cancro político que representa a fórmula subtil, mas mortífera para os destinos da Revolução que agora celebramos, da aliança PS-CDS. O que a classe política interina, obrigada ou cega pelo seu gosto do “combinismo” politiquista, produz, o simples cidadão, por instinto e reflexo ético, rejeita-o. É absolutamente inútil e mesmo contraproducente para a Esquerda portuguesa instituir Sá Carneiro como o papão da Revolução de Abril. Se acaso o é ou será, a outrem o deve. As revoluções só sucumbem às mãos dos revolucionários que as traem ou não sabem defender. É absurdo e completamente idiota querer apresentar ao País um Sá Carneiro e o seu PPD como mais reaccionários que Freitas do Amaral e o seu CDS, partido no Poder. A tragédia da nossa Revolução é a de estar já na defensiva, quer dizer, a de ter evoluído de tal forma que se tornou atacável, vulnerável. Nada há de anormal, nem de anticonstitucional, que um dirigente da Oposição (ou um simples cidadão) ataque – em Democracia, e em termos que não sejam de “prática subversiva” caracterizada aos olhos da Constituição – os órgãos de Soberania, quaisquer que eles sejam. A fragilidade da Revolução revela-se antes na incapacidade dos seus defensores autênticos em levar o ataque ao campo inimigo. A Revolução não pode viver de mitos nem da defesa escandalizada e oportunista dos seus oficiosos ou oficiais guarda-costas constitucionais. A Revolução defende-se marchando, impondo as suas exigências, os seus princípios, assumindo-os positivamente e não por procuração. Uma parte da Esquerda readquiriu os antigos reflexos oposicionistas. Bate-se vencida de antemão, de costas contra a parede, esperando que o socorro lhe venha do alto, como se não fosse ela mesma a Revolução em marcha, a sua autêntica face. Em vez de se perder em escaramuças estéreis por conta de quem tem meios para se defender bem e sozinho, a Esquerda deve instituir-se a si mesma como trincheira e conduzir, a partir dela, a sua guerra, quer dizer, o seu projecto social, político e económico, de molde a que um dia memorável não venha a ser no futuro, como já o é hoje, para muitos, em letra de forma, uma data que se glosa ironicamente ou se conspurca e nela e com ela os homens que à face da História por ela se responsabilizaram.
A reinvenção de Abril é ainda possível? O refluxo revolucionário é tão profundo que as dúvidas são legítimas. Mas não a pontos de fornecer mais um argumento à Direita triunfalista, que já não resiste à tentação de glosar, sob todos os tons, o “fim da Revolução”. O destino da Revolução repousa, ainda, na vontade, na decisão, na capacidade de resposta activa, na mobilização do País em torno de um projecto democrático de vocação socialista. Em termos de eficácia imediata política repousa, apesar de tanta decepção, na capacidade interna de o PS se reestruturar em volta do seu próprio e, até hoje, ainda não oficialmente renegado Programa. São muitos se... De qualquer modo, com este quarto aniversário chegou a hora da verdade. Se a Esquerda não se remobiliza em termos adequados, se o Poder não soluciona as suas mais graves contradições a nível político, social e ideológico, se as condições de vida não se agravarem em termos de caçarolismo chileno, é lícito esperar que se possa celebrar o próximo aniversário da Revolução com menos reservas e apreensões que o hoje. A Direita fará tudo para o relegar para o rol dos pesadelos passados. Que a Esquerda faça o seu dever, pondo na lapela da Revolução um cravo de irreversível esperança. Como há anos...

* Texto de Eduardo Lourenço redigido em Vence a 17 de Abril de 1978 e publicado no Diário Popular de 24 desse mesmo mês. O texto será depois reimpresso no livro O Complexo de Marx (Lisboa, Dom Quixote, 1979, pp. 180-184)

terça-feira, 16 de abril de 2013

Em Paris, entre o humor e a emoção

por Maria Graciete Besse*

Nos dias 9 e 10 de Abril de 2013 realizou-se em Paris o lançamento do livro Eduardo Lourenço et la passion de l’humain (ed.Convivium Lusophone), fruto de um importante colóquio organizado em outubro de 2011, por ocasião da inauguração das novas instalações da Fundação Gulbenkian na capital francesa, que reuniu alguns dos especialistas do obra do grande pensador português. 
Fraterno e generoso, tal como todos o conhecemos, Eduardo Lourenço esteve presente, primeiro numa sessão que se desenrolou na Casa de Portugal – residência André de Gouveia, que contou com a presença de mais de uma centena de membros da comunidade portuguesa, e, no dia seguinte, no encontro que teve lugar no magnífico espaço da Gulbenkian em Paris.  Diante de um público atento que o acolheu carinhosamente, o ensaísta falou do seu percurso que começou na  aldeia “encalhada na meseta ibérica”  onde nasceu, São Pedro de Rio Seco, e o levou até às largas estradas do mundo, não deixando de evocar, com o seu humor habitual, algumas peripécias que mais marcaram a sua vida de intelectual nómada, afirmando que não se considerava propriamente um emigrante por ter muito respeito por aquilo que os verdadeiros emigrantes sofreram. Sublinhando a sua condição de exilado, analisou as marcas do destino português e mostrou-se deveras preocupado com a crise  actual, deixando no ar uma sugestão de solidariedade colectiva.

O público bebia-lhe as palavras, comovido, certo de estar diante de uma  figura tutelar da cultura portuguesa, que não pertence apenas às elites mas é capaz de falar ao coração de todos. No fim, o Professor juntou-se à voz dos compatriotas que  entoaram em coro  a “Trova do vento que passa”, tocada por dois jovens músicos diplomados em Paris, e recebeu das mãos de um escultor português, com barbas à Guerra Junqueiro, um cravo de pedra branca que selava um pacto com a beleza e o sentimento de liberdade inerente à verdadeira inteligência.  A emoção  prolongou-se na sessão do dia seguinte, tornando-se intensa quando, depois de comentar alguns dos seus títulos mais conseguidos como “o esplendor do caos”, Eduardo Lourenço discorreu sobre o tempo, a condição humana e o sentido da vida, num misto de lucidez e melancolia, deixando escorrer pela face uma lágrima furtiva que muitos captaram dolorosamente como uma espécie de adeus. Mas logo um traço de humor quebrava o estremecimento geral, porque a presença do grande intelectual português conduzia todos aqueles que tiveram o privilégio de o escutar para um espaço de intensidade  luminosa onde, apesar das incertezas, o futuro se impunha como uma palavra de utopia ainda possível.


* Maria Graciete Besse, Professora Universitária de Língua, Literatura e História portuguesa na Sorbonne, Paris IV, organizou, com o dinamismo e a sabedoria habituais, o Colloque Eduardo Lourenço et la passion de l’humain, realizado em Outubro de 2011 na então recém-inaugurada nova sede da Fundação Gubenkian da capital francesa. A esse colóquio Ler Eduardo Lourenço dedicou à época vários textos que o visitante deste blog pode encontrar no respectivo arquivo. Ler Eduardo Lourenço agradece a Maria Graciete Besse esta magnífica crónica sobre a jornada do passado dia 9, realizada a pretexto do lançamento do volume das Actas do referido Colóquio, bem com as fotos que agora se dão a conhecer.
 


quinta-feira, 11 de abril de 2013

Geração Fraterna

O desaparecimento de Óscar Lopes, no passado dia 22, suscitou inúmeras manifestações de pesar e de reconhecimento pela personalidade e pelo trabalho daquele que foi, sem dúvida, um dos protagonistas culturais do último século português. Nascido a 20 de Outubro de 1917, em Leça da Palmeira (Matosinhos), e com formação incial em Filologia Clássica e Ciências Histórico-Filosóficas, Óscar Lopes não foi apenas o co-autor da emblemática História da Literatura Portuguesa, preciosíssimo instrumento usado pelos estudantes de literatura ao longo de gerações e gerações, mas ainda um eminente académico da área da Linguística, um notável crítico de ficção e poesia, para além de um grande apaixonado por música e chá...
 Uma das pessoas solicitadas a dar o seu testemunho acerca da riquíssima personalidade foi, como é natural, Eduardo Lourenço que, em breve depoimento telefónico, declarou ao Público (Lisboa, 23/III/2013, p. 28) o seguinte: «Se a da Presença foi a geração dos nossos pais, a de Óscar Lopes e de Jorge Sena [casado com Mécia, irmã de Óscar] foi a dos nossos irmãos (...) Fizeram uma opção ideológica que marcou a cultura portuguesa de uma maneira dominante». Críticos, na medida do possível, do Estado Novo, Lopes e Sena «não recuaram», mesmo quando não recuar implicava sacrifícios pessoais.
E Eduardo Lourenço vai mais longe no perfil que traça de Óscar Lopes, dizendo que este «foi um dos maiores representantes, se não mesmo o maior, dessa galáxia marxista ou marxizante que veio a triunfar no 25 de Abril». Por outro lado, Óscar Lopes, segundo Eduardo Lourenço, «era um mestre. O que lhe interessava era saber como funcionava a língua, o que era absolutamente inovador e o deixava sozinho a investigar, já que ninguém em Portugal tinha conhecimentos para o acompanhar». O mesmo não se passava em literatura pois, neste campo, Óscar Lopes tinha António José Saraiva como «cúmplice».
Ao Diário de Notícias (Lisboa, 23/III/2013, p. 41), Eduardo Lourenço descreve Óscar Lopes como uma «das vozes mais autorizadas e representativas da cultura nacional».
No entanto, manda a verdade dizer que, apesar da fraternidade geracional, as relações entre os dois homens nem sempre primaram pela concórdia. Em 1967, por ocasião da saída do volume II de Heterodoxia, aconteceu uma espécie de polémica na sequência de uma recensão crítica de Óscar Lopes. Esse curto, mas algo crispado, diálogo, publicado nas páginas do Suplemento Literário de O Comércio do Porto, pode hoje ser revisitado em Heterodoxias, o primeiro volume das Obras Completas de Eduardo Lourenço (Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, 1ª ed, pp. 357-358 e 546-547).
Dois anos volvidos, mais precisamente em 2 de Setembro de 1969, em carta enviada ao seu cúmplice António José Saraiva, Óscar Lopes pronuncia-se num tom duríssimo (mesmo se atendermos que a mensagem era de natureza pessoal, o que ajuda a compreender certo vocabulário utilizado...) acerca do famoso ensaio sobre António Sérgio que Eduardo Lourenço publicara na revista O Tempo e o Modo. Dado que a carta foi tornada pública, numa (incompleta e algo desastrada) recolha da correspondência entre Lopes e Saraiva, Ler Eduardo Lourenço recupera o excerto duro e contundente dedicado ao ensaísta e à sua crítica a Sérgio.

«Li o artigo do E. L. sobre o Sérgio. É incrível que gostasses daquilo. O E. L. escreve com uma elegância toda feita de es­quecimento do essencial: a crítica pertinente não adianta nada sobre a minha própria crítica de há muitos anos, reunida em Ler e Depois, com a diferença de se ficar em generalidades equi­valentes a uma caricatura. Repara na diferença entre a minha crítica à gnoseologia e à estética do Sérgio (maniqueísmo inteligível-sensível, racionalismo pseudo-matemático, etc.), e a do E. L. É injusto sublinhar a filosofia sergiana em comparação com o seu ensaísmo de temática histórica portuguesa (incluindo histórico-literária) concreta. A ideia do «Reino Cadaveroso» seiscentista é frágil. Mas a tese sobre Ceuta e 1385 renovou toda a problemática da história portuguesa. Cortesão, no seu melhor, foi discípulo de Sérgio. Magalhães Godinho, Virgínia Rau, Borges de Macedo, Joel, tu e eu aprendemos com ele a pensar em português. O E. L. é um facundo divulgador de Kierkegaard e Heidegger. Não tem a centésima parte da originalidade do Sérgio. E, pior que tudo, ignora-o. Fala dele sem o ter lido, tal como o S. minimizou o Aquilino de que só leu dois ou três livros a correr, e tarde demais. A crítica sergiana às duas políticas nacionais num artigo de 1925 é a primeira coisa seria­mente anticolonialista desde 1885 (a segunda foi o teu trabalho lido em Viana, que acarretou, talvez mais do que tudo o mais, a tua demissão). A polémica sebástica antecipou-se à guerra que no fundo visava. A crítica a Junqueiro fez data mesmo na história das ideias literárias em Portugal. David Mourão Ferreira e eu, tão avessos em tantas coisas (e eu, ao tempo, ferido por um ataque injusto do Sérgio, feito quando estive preso na sequência da polémica que ele teve contigo), coincidimos, independentemente um do outro, que Sérgio interessa muito como crítico literário, apesar de todos os seus defeitos. Tem um magnífico ensaio (entre outros) sobre o Eça, num dos últimos volumes, e outro sobre Camilo. Valorizou Tolentino contra o Fidelino, que o apoucava. Baniu o biografismo histórico-literário. Inaugurou a consciência das contradições internas a um escritor, a propósito de Antero e Oliveira Martins. Foi o grande animador do cooperativismo. Foi o primeiro pensador português a reagir eficazmente contra a historiografia rácica, e a impor a sociológica. Estou a dizer tudo isto à toa, conforme me ocorre. E sei muito bem aonde o E. L. quer chegar: é ao catolicismo, ao fideísmo irracionalista que não tem a coragem de confessar a máscara de palavreado existencialista de empréstimo. É por causa dos E. L.s, em grande parte, que os A. da C. D. e os M. V. têm tanta aceitação. Aquela verborreia como a do C. D. destina-se a perpetuar um ou... ou... que não nos deixa sair da cepa torta. E tu bates palmas a esta merda. Tu, que saltas de um ou para o outro ou.
Desculpa o que nesta carta improvisada haja de amargo ou furioso. Franqueza é amizade e confiança. Dize-me também o que tiveres a dizer com toda a brutalidade. Há três dias que trabalho umas 14 horas por dia, como é de resto frequente, e vejo hoje pelos jornais que a campanha eleitoral começou, para o que tenho de arranjar, não sei como, muitas mais horas. É tão fácil ser E. L.!» (António José SARAIVA; Óscar LOPES, Correspondência, Lisboa, Gradiva, 2004, pp. 222-223).
As coisas mudaram, mais tarde. E Pessoa Revisitado e Tempo e Poesia conhecerão as suas originais edições na casa portuense Inova, mais precisamente na sua excelente colecção Civilização Portuguesa, dirigida por... Óscar Lopes. Sinal que a geração encontrou por fim a almejada fraternidade? Ler Eduardo Lourenço julga que sim e apresenta aquela que cronologicamente foi a primeira recensão crítica de Pessoa Revisitado, escrita, como se poderá verificar em baixo, escrita por Óscar Lopes e impressa na badana do número dezassete da colecção que este dirigia. Ora, apesar de raramente citado ou até referido, este ensaio de Óscar Lopes sobre a poética de Eduardo Lourenço continua a ser, quatro décadas passadas, um dos melhores e mais fecundos que alguma vez se escreveu sobre Pessoa Revisitado. Também dessa vez (e ao contrário do que talvez se deva dizer da carta de 1969 a António José Saraiva, escrita num tom menos cuidado, mas isso seria um debate mais longo...) Óscar Lopes foi Mestre.






quinta-feira, 4 de abril de 2013

Com a tensão de uma lâmina

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Desenho de António Ramos Rosa,
folha branca A4, caneta tombo azul, 2005 
in http://lisboeta1974.blogspot.pt


Ensaísta tatuado quase obcecadamente por Pessoa, nem por isso Eduardo Lourenço deixa de escrever páginas tão admiráveis e essenciais sobre poetas que são, como ele mesmo afirmou de Sena ou Casaes Monteiro, posteridade autêntica do autor de Ode Marítima. É o caso, sem dúvida, embora em moldes diversos (que, de resto, podem e devem merecer discussão) de António Ramos Rosa e de Herberto Hélder. Ao primeiro foi dedicado um texto que (numa prática, de resto, não  muito frequente em Eduardo Lourenço) foi conhecendo sucessivas e modificadas feituras e que terá conhecido a sua versão quase definitiva como último ensaio do livro Tempo e Poesia. Inicialmente publicado na edição de 11 de Dezembro de 1969 do Suplemento Literáriode Diário de Lisboa, com o título “António Ramos Rosa ou o excesso do real”, ao primeiro ensaio Eduardo Lourenço reuniu um segundo que foi também impresso no nº 15 da revista Colóquio-Letras, em Setembro de 1973. Juntando e corrigindo (com inúmeras alterações, supressões e acrescentos) os dois textos, Eduardo Lourenço terá pronto no ano seguinte o prefácio à antologia de Ramos Rosa Não posso adiar o coração (número terceiro da Colecção Sagitário da Plátano Editora) e, nesse mesmo ano a todos os títulos decisivo, a portuense Editorial Inova lançará também nas livrarias Tempo e Poesia. É na página duzentos e sessenta e sete desta primeira impressão de Tempo e Poesia que o leitor tropeça nesta extraordinária comparação entre os autores de Última Ciência e de Voz Inicial: «aquilo que em Herberto Hélder se processa no tumulto, em Ramos Rosa tem a nítidez e a contensão de uma lâmina». Ler Eduardo Lourenço estranhou a palavra contensão e decidiu consultar as outras edições de Tempo e Poesia. Em 1987, na colecção À volta da Literatura, aparece a segunda reimpressão da obra com a chancela da Relógio d'Água. E, na página duzentos e trinta e sete, o leitor reencontra mesmo a palavra contensão de que Sophia talvez dissesse ter qualquer coisa de dansante. A edição mais recente de Tempo e Poesia (Gradiva, 2003), sem dúvida muito mais cuidada e rigorosa do que a anterior,  corrige o termo e, na página duzentos e quinze, diz-se por fim que a poesia de Ramos Rosa «tem a nitidez e a contenção de uma lâmina».
Nada há a contestar nesta decisão editorial, desde logo, porque, no prefácio a Não posso adiar o coração, já tinha sido essa a escolha realizada, como se pode observar na respectiva página quarenta e cinco. No entanto, há qualquer coisa nesta (involuntária?) palavra contensão que não deixa de fazer sentido e mesmo de agradar. Como se a poesia de Ramos Rosa avançasse cortante de tensão como uma faca. Por exemplo, nestes versos: «Sou trespassado e vulnerado / pelo ar da luz, pela luz do ar».