quinta-feira, 16 de maio de 2013

Pensar Nove Décadas de Amizade (nº 46): Cleonice Berardinelli*


Cleonice Berardinelli de visita a Vence.
Na foto, de autoria de Gilda Santos, estão também Emmanoel Santos, Annie de Faria e Eduardo Lourenço.

Para resumir o que penso de Eduardo Lourenço intelectual, filósofo, homem de letras, só encontro uma palavra: scholar – considero-o o mais completo scholar em língua portuguesa.

Com estas palavras, começo as várias lembranças que dele tenho, sem preocupação de organizá-las cronologicamente; a primeira que me vem à memória – primeira a comparecer por uma seleção afetiva – é a de minha ida, em companhia de um casal de professores nossos amigos – à casa de Vence, um lugar encantador, no alto de uma colina suavemente inclinada e coberta de vegetação, em que o verde predominava, sadio e vibrante. Era lá, numa casa que parecia menor do que realmente era, que moravam os Lourenços, Eduardo e Annie, um lugar quase encantado, “nosso cantinho da Provence”, na própria definição de Annie, escrita num cartão que me enviou dias depois de minha partida, cantinho mágico onde eles primavam pelo afeto com que nos recebiam, o que, no meu caso, se acresceu de uma generosidade quase escandalosa, pois chegaram a dar-me o próprio dormitório, – o que só percebi depois que nos dissemos “boas noites” – ao olhar mais demoradamente as paredes e ver que os pequenos quadros nelas pendurados eram todos de retratos de família, sobretudo do neto do casal. Generosidade excessiva que o fez oferecer-me um livro com uma dedicatória em que me chama “Mestra e Madrinha”. Madrinha, sim, com muito orgulho, pois fui eu quem o recebeu na cerimônia do grau de Doutor honoris causa da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestra, não. Pela nossa diferença de idades, poderia tê-lo sido, mas que teria eu a ensinar-lhe, a esse excepcional leitor e escritor de assuntos ligados às Letras, à História, à Filosofia?

Falar de Eduardo Lourenço é, necessariamente, falar de Annie. Ele, o criador, ela, a organizadora. Ela a guardar, a ordenar os papéis, ele, a enchê-los com sua letrinha pequena, ordenada, bonita, quase hieroglífica... Muitas vezes pedi ajuda para decifrar-lhe alguma palavra misteriosa que, afinal, não o era tanto... 

*Cleonice Berardinelli
Professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Texto inédito gentilmente enviado pela Autora para Ler Eduardo Lourenço.