quarta-feira, 23 de julho de 2014

Tonel das Danaides?*

The Danaïdes, reprodução de óleo de J.W. Waterhouse (1903)
O espaço da comunidade dos povos de língua oficial portuguesa define-se mais em termos de cultura do que em termos de soberania ou soberanismo mesmo virtual. Constituem-no nações politicamente independentes, situadas em três continentes, com laços históricos seculares com a pequena nação europeia que chamamos Portugal. Apesar desses laços, de leitura diversa segundo os casos, o único que pode legitimar a utopia histórico-­geográfica que designamos por CPLP é a partilha, também ela complexa e diversificada, do português como língua oficial dos países dessa comunidade, assumida como tal, e enquanto o for. Fora dessa partilha o conceito, algo voluntarista, da CPLP, não teria ou não pode ter sentido algum, nem histórico nem cultural.
Parece que uma nação africana próxima da nossa antiga colónia da Guiné-Bissau manifestou o seu interesse em participar também nessa comunidade de inscrição cultural lusófona. Se a CPLP fosse uma mera associação de nações com interesses económicos mais ou menos convergentes, o desejo da Guiné Equatorial de querer participar nela seria apenas uma questão de ordem política empírica a ser resolvida entre os membros da CPLP e a nova postulante. Não é o caso. O estatuto da CPLP é apenas o da ordem cultural, quer dizer, o vínculo linguístico. Pela natureza das coisas a Guiné Equatorial por enquanto está fora do critério que justifica e onde se inscreve a sigla CPLP. Questão não posta está resolvida por si. De outro modo a CPLP seria apenas a versão africana do tonel das Danaides: preciosa água escorrendo em vão para lado nenhum.






* Texto de Eduardo Lourenço que apareceu há exactamente quatro anos na imprensa (“A CPLP não é o tonel das Danaides”, Público, 23/VII/2010, p. 2) e que aqui se reproduz, sem quaisquer outros comentários, no dia em que a Guiné Equatorial se torna oficialmente membro da CPLP.

segunda-feira, 14 de julho de 2014

14 juillet 1789*



A burguesia tinha plena consciência de que todas as armas 
que forjara contra o feudalismo se voltavam agora contra ela, 
que todos os meios de instrução que instituíra se rebelavam 
contra a sua própria cultura, 
que todos os deuses que havia criado a abandonavam.  
Karl Marx, O 18 de Brumário
Não voltarão atrás sem conhecer o extremo desastre. 
Hölderlin, Poesias






Em sentido moderno, o fenómeno revolucionário, quer seja de ordem religiosa, social ou política, só existe como resultado de uma prévia desconstrução, teoricamente bem elaborada, dos princípios e dos valores sobre que assenta a sociedade que se deseja reformar ou radicalmente subverter. 
É por isso que só por anacronismo ou analogia prospectiva chamamos revoluções a processos de convulsão cívica ou de mudança dos quadros dirigentes de uma sociedade a que falta, por desnecessário ou ainda impossível, o lastro de uma vasta e prévia contestação, conscientemente formulada, do funcionamento e das regras do jogo que a regem. É o caso, no que respeita ao nosso próprio passado, das bem mal chamadas “revoluções de 1383” ou da “revolução de 1640”. Mais conforme com o estatuto revolucionário, pela osmose entre “ideia” e “acontecimento”, seria a nossa revolução liberal de 1820, embora o seja mais pelo destino diferido, que será o seu, do que pela sua imediata manifestação, apesar da ruptura institucional que inaugurou. 
De todas as nossas “revoluções”, a única que merece esse nome pela longa, embora intermitente incubação e elaboração mítica que a precedeu, tanto pela forma radicalizante que tomou, uma vez vitoriosa, foi a que institucionalizou a República. Na óptica de lógicas futuras que lhe não convém, foi moda considerar “formais” os traços de ruptura com a antiga ordem monárquica. Foram mais do que isso. Se o não tivessem sido não se teriam convertido num dado adquirido da nossa simbólica política, a tal ponto que nem o lado “contra-revolução” próprio do que a si mesmo se chamou Estado Novo, os pode rasurar. De análoga vontade de ruptura e radicalidade – até mais extremadas – se revestiu por assim dizer, a posteriori, a recente e já tão longínqua “revolução das flores”. Mas nem fora preparada para o que, em certo momento, pareceu ser, nem a sociedade portuguesa estava disposta a aceitar, com cinquenta anos de atraso, o que, visivelmente, estava já em fase de recessão sob o plano utópico, ideológico e histórico. 
As revoluções são raras. Embora se empregue essa categoria histórico-política ou ideológica, para as grandes comoções de ordem económica e social que, num lapso de tempo geralmente curto, espasmódicas, subvertem as relações do poder e as situações de privilégio de uma sociedade artificial e anacronicamente anquilosada nas suas práticas e modos de funcionamento, acaso os únicos fenómenos que merecem este nome são os que alteram em profundidade a maneira de ser, de pensar e ver de uma sociedade inteira ou de uma época. Nesse sentido só os grandes movimentos religiosos, de que a Reforma foi o arquétipo para a Idade Moderna, são revoluções duráveis. Justamente, as revoluções políticas e sociais que exerceram ainda uma influência indiscutível sobre o destino dos homens, qualquer que seja a leitura que se faça de tal influência, são fenómenos dessa ordem, se não no conteúdo pelo menos na forma, tanto a Revolução Francesa como a Revolução de Outubro para além da subversão das relações de poder e dos laços sociais que engendraram, pretenderam ser uma espécie de “revelação” sem transcendência, uma encarnação de uma nova maneira de ser sociedade ou ser “humanidade”. Os famosos “desvios” de que são exemplo o Terror e o Arquipélago do Gulag, não são excrescências ou acidentes num projecto que não devia comportá-los, mas a bem fatal consequência da transgressão sobre o plano da prática histórica de uma “religiosidade” inerente a projectos de reforma de carácter messiânico. A fórmula célebre de S. Paulo da metamorfose do “velho homem” (o homem do pecado, da alienação), em “homem novo” foi proposta em termos teóricos pelas duas grandes tentativas revolucionárias do Ocidente. O resultado não foi encorajador, sobretudo para a segunda grande revolução que abalou o mundo sem verdadeiramente o transformar. 
Porventura a razão profunda do fracasso clamoroso da Revolução Soviética, à primeira vista incompreensível, resulta do facto de que contrariamente à Revolução Francesa, desejou encarnar uma ideia em si complexa e profunda, numa sociedade que não lhe dera nascimento. Só na consciência de uma minoria, a “ideia” precedera a passagem ao acto. O voluntarismo paga-se caro. 
O que não entrou naturalmente pela porta sai agora pelas janelas, pelos telhados, através de muros que pareciam intransponíveis. Milhões de vidas pagaram a desfasagem entre a ideia e a realidade que ela devia transfigurar. O famoso comboio da história sem bilhete de regresso está agora parado em pleno deserto. Aparentemente não ia para nenhum futuro que de longe ou de perto encarnasse as promessas, à primeira vista plausíveis, e humaníssimas da utopia. Falência humana ainda susceptível de remissão, ou definitivo naufrágio da própria utopia? A questão é saber se a humanidade não é intrinsecamente utopista. Pelo menos a nossa de ocidentais. Que espécie de “utopia” nascerá da utopia marxista defunta? 


* No ducentésimo vigésimo quinto aniversário da Revolução Francesa, Ler Eduardo Lourenço recupera um ensaio escrito por Eduardo Lourenço há vinte cinco anos e publicado na revista Finisterra com o título “A Revolução e a sua ideia”. Nesse mesmo ano, Eduardo Lourenço redigiu “O tempo da revolução” (Revista de Expresso , Lisboa, 1/VII/1989, pp. 18-19). Como se pode ver, as considerações do autor sobre o conceito de revolução não perderam actualidade.

domingo, 6 de julho de 2014

Aquela a que chamam apenas Sophia*

Sophia de Mello Breyner Andresen



Voam no firmamento os seus cabelos 
Nas suas mãos a voz do mar ecoa 
Usa as estrelas como uma coroa 
E atravessa sorrindo os pesadelos. 
Dia Do Mar 


Da música escreveu Hoffman que era «a essência misteriosa da natureza». Digamos, a canção de embalar do nosso inconsciente ou o nosso inconsciente como canção de embalar. Tudo isto se pode aplicar à poesia que nasceu da música, ou com ela, e conservou sempre essa umbilical referência à sua origem. Mas a poesia enquanto palavra-canto e palavra encantatória não é apenas como a música esse abandono ao mistério da natureza em nós, mas o mistério – ao mesmo tempo o do poeta e do universo que através dele é nomeado – em plena luz, ou naquilo que mais perto dela se aproxima. Poesia, mistério repassado de claridade, a poucos poetas contemporâneos se aplica tão óbvia e viva evidência, como a Sophia de Mello Breyner Andresen, aquela que nós todos, seus amigos e leitores subjugados há muito, chamam apenas Sophia
Há nomes predestinados. Ou talvez nomes que foram para os seus ocasionais suportes uma luz íntima que os guiou com presciência para o lugar e a posse do que no nome mágico já se anunciava. Sophia – sabedoria mais funda do que o simples “saber”, conhecimento íntimo, ao mesmo tempo atónico e luminoso do essencial, comunhão silenciosa e sem cessar reverberante com tudo aquilo que, por original, a reflexão e seus intérminos labirintos deixarão intacto. Sibila, maga, desde a sua precoce aparição no nosso mundo de masculinos e altos combates poéticos, que Sophia encarnou essa vocação da simplicidade original recusada aos que se debruçam sem fim sobre o poço íntimo, onde se a verdade se esconde nunca volve à superfície senão envolta na túnica mortal de Narciso. 
Poesia de precoce e hoje de matura sabedoria, a de Sophia foi desde o início a de uma busca no espelho do mundo e num mundo de evidências aurorais, embora por isso mesmo ocultas, a evidência elementar do vento, da bruma, do mar, do jardim exposto e secreto, com a sua divina e opaca linguagem à espera que o poeta a descubra para aceder do seu próprio silêncio à revelação da sua íntima e indevassável evidência. 
Identificada como uma sílfide com a vida silenciosa e as metamorfoses dos elementos mais fluidos do universo, a poesia da Sophia ainda quase adolescente pôde parecer irreal, etérea, aristocrática, vaga tardia de um simbolismo tão fundo que nem de símbolos precisava, espécie de voo sem matéria através de experiências, evocações, presságios, de tão musical ressonância que bem audacioso seria quem descobrisse nela, para lá de rilkeanos acertos ao imponderável sentimento de si perante o universo e seu perfil indeciso, a amorosa das coisas e dos gestos que o nome justo e a visão clara subtraem à perpétua evanescência para que fiquem na nossa memória como anjos em perpétua e fulgurante vigília. Mas desde o início que a exigente nomeadora das aparências do mundo visível ou de ordem-desordem humana, que o Livro Sexto, Dual e Nome das Coisas consagrarão como uma espécie de voz anónima do ser que em cada ser se revela por uma plenitude à medida da ausência que dele nos separa, a si mesma se anunciava. Há poucos itinerários poéticos em língua portuguesa tão impregnados de positividade, original, tão de raiz canto ao rés de uma realidade aceite como esplendor efémero e eterno e por isso tão isentos de polemismo e intrínseca negatividade, como o de Sophia Mello Breyner. E simultaneamente, por esse mesmo autónomo florir, tão fiel inspiração adolescente que, à parte o natural êxtase ou terrífica anunciação com que recebe a revelação do original esplendor do mundo ou a sua súbita ocultação, jamais deixará de trilhar um caminho de serenidade e irradiante presença, confundindo, com felicidade sem exemplo, na trama da sua visão, o olhar equânime de Apolo Muságeta, deus do “primeiro dia inteiro e puro” e o olhar de fogo do Anjo, mensageiro da transcendência que a não divide mas a liberta:

Ele que indiferente olha e me escuta 
Sofrer, ou que feroz comigo luta, 
Ele que me entregara à solidão, 
Poisava a sua mão na minha mão. 
E, foi como se tudo se extinguisse, 
Como se o mundo inteiro se calasse, 
E o meu ser liberto enfim florisse, 
E um perfeito silêncio me embalasse.

Com uma simplicidade que Caeiro só em irónica visão pôde antever, Sophia harmonizou, como quem dança ou canta para si mesma no meio do mundo, aquela conciliação que desde Pascoaes sonhava unir Apolo e Cristo e depois se transfigurou em dispersão absoluta por obra e graça de Pessoa e em tormento e drama ou escolha candente de um dos pólos da nossa aventura espiritual em Régio e Torga e cujos ecos repercutem ainda no primeiro Jorge de Sena e no próprio Eugénio de Andrade. Deste combate ficaram nos poemas da jovem Sophia esparsas referências, mas recobertas pelo sentimento pânico, inocente e vibrante de uma identificação imemorial com o coração do mundo de que o seu será para sempre o iluminado centro e a incircunscrita circunferência:

As ondas quebravam uma a uma, 
Eu estava só com a areia e com a espuma 
Do mar que cantava só para mim.

Uma espécie de milagre, de raro e quase incrível privilégio, deve ter preservado cedo a jovem Sophia, católica e portuguesa, daquela obsessão culpabilizante que encharca por dentro a lírica nacional. Talvez apenas a precoce e inaudita leitura de Homero em que, mais fascinada ainda que Nausica com a presença de Ulisses, terá absorvido a claridade grega que um dia arrancará à sua musa alguns dos mais altos poemas da língua portuguesa. Não haverá desde então nem «caos nem luto», nem tirania, nem treva humana, que a façam abdicar daquela «verdade e harmonia, caminho puro e absoluto» que adolescente grega do século XX visionará no rosto de Alexandre, nos passos de Dionisios, no arquipélago das Cyclades, conclusão mítica de um percurso que da ausência mesma remete para uma eterna e informulada plenitude. 
Como o dos seus mais ilustres companheiros de geração poética – Jorge de Sena, Blanc de Portugal – o espaço cultural de Sophia Mello Breyner não se recorta com aquela nitidez que tão cómoda é para arrumar os criadores nos túmulos das escolas e das correntes. Quando surge, a Presença está na sua máxima visibilidade e Pessoa um pouco na invisibilidade dela. Permeáveis aos ventos do largo ou sensíveis a formulários que lhes não convém, cada um desses poetas, de rara cultura todos eles, remarão sós entre os mais conhecidos arquipélagos, mas talvez nenhum ao mesmo tempo tão distante e tão conivente com vozes que na sua ecoam como distraída escolta, jamais como autêntica companhia. Torga, Rilke, Hölderlin, Shelley, camaradas de geração, são “atravessados” como espelhos transparentes por uma Alice que descobrira antes o seu reino claro e inacessível. E da avassaladora presença de Pessoa nos anos quarenta e cinquenta não se vislumbra na autora de Dia do Mar e de Coral, aparentemente, um sinal de conivência. Como poderia a maga do sentimento pânico e harmonioso do mundo encontrar-se com o “dividido”, a ausência feita voz, a multiplicidade sem centro, o «viajante no anverso»? Na topologia da nossa aventura poética, Sophia e Pessoa ocupam os pólos opostos e nesse sentido a poesia de Sophia, de uma maneira bem diversa e muito mais radical que a de poetas que conscientemente se quiseram outros que Pessoa, inaugura ou põe termo à longa travessia da consciência poética como consciência infeliz que começa em Antero e tem em Álvaro de Campos a sua expressão “épica”. Todavia, é sem surpresa que nas últimas obras de Sophia, a presença de Pessoa surge com uma insistência enigmática, como se Sophia sentisse a necessidade de integrar a sua sombra imersa ou a plenitude inversa que ela instalou na consciência poética contemporânea no seu mundo, exactamente à hora em que nele é mais fulgurante que nunca o sentimento da realidade, a sua fosforescência irresistível de ser que impõe ao poeta a sua exacta nomeação como dever de justiça, de justeza, de libertação e íntima transparência. Contradição? Ou nova maneira de iluminar às avessas a Ítaca imortal da realidade que jamais teve forças para a dispersar e dividir pelo seu tumulto mortal? 
É no Livro Sexto que Sophia esboça o primeiro retrato-diálogo com Pessoa, sem que a sua escrita, como sempre, deva a sua música e a sua forma ao invocado «deus de quatro rostos». Sophia louva-lhe «o canto justo que desdenha as sombras» e nesta posteridade formal se recupera nele. A esse título a poesia de Pessoa e de Sophia estão ambas inscritas no círculo de uma inegável classicidade. Só o surrealismo a quebrará de vez entre nós. Mas o grande aprofundamento surge com Dual, que em si podia ser já uma homenagem ao “dividido”, e é em Dual que Pessoa como Ricardo Reis é assumido e comungado, com uma perfeição gémea do original, pela visão de Sophia. O que não era pagão, mas o paganismo, é invocado como «irmão do que escrevi», não para lhe ensinar a estóica conformidade com a essência efémera da vida, apenas para lembrar lição de deuses ausentes e 
O seu olhar ensina o nosso olhar: 
Nossa atenção ao mundo 
É o culto que pedem

Estranha integração que no mesmo livro se prossegue, agora sob a égide evocadora de Campos, debruçada «sobre o rosto do real – mais preciso e mais novo do que imaginado», real ofuscante do mundo grego que lhe traz aos lábios o seu nome, o seu «ambíguo nome», como o de Odysseus Persona: 
O teu destino deveria ter passado neste porto 
Onde tudo se torna impessoal e livre 
Onde tudo é divino como convém ao real.

Dois anos depois, na mesma Grécia real e mítica, Sophia completa o mais profundo retrato de Pessoa que alguma vez foi tentado e com ele abre o seu último livro, O Nome das Coisas, que se nada mais contivesse bastaria para colocar a sua autora e a inatenta obra que provisoriamente culmina entre as maiores presenças líricas nossas contemporâneas. 
Através da evocação de Pessoa é o itinerário inteiro de Sophia, a sua específica e original visão que se purifica na lâmina da mais aguda consciência poética, não para se deixar observar por ela mas a situar e situar-se como não errante na errância do nosso Ulisses que nunca regressou a Ítaca por nunca dela ter partido. Jamais se revisitou, por dentro, a aventura sem fim de Fernando Pessoa, poesia e vida confundidas, como nesse admirável poema Cíclades. Não é um texto escrito à margem de um texto. Pessoa, mas um Pessoa-texto que é a um tempo foco e claridade, espelho e imagem, leito e rio, platónica e sublime visão da ideia de Pessoa, oferecida como arquipélago imaginário e real aos nossos olhos de alma incrédulos. Cada estrofe é como uma estátua solitária e silenciosa que espera da seguinte a palavra do enigma e lha devolve, e esse povo de estátuas é a impossível e para sempre inexistente estátua daquele que foi ninguém para ser tudo em todos e todo em tudo, imparcial como a neve, disperso como o fogo. No espaço insituável das evidências perdurará para sempre de Pessoa este retrato que acaso só uma mulher e um grande poeta podiam conceber oferecendo a sua disponibilidade maternal ao que não chegou a tocar-se como existente, «nascido depois quando em verdade a verdade se gastara» e «o caminho da Índia já fora descoberto» deixando a quem viesse, e ele foi o primeiro que veio depois, o percurso «no avesso», a viagem «incessante do inverso» que Sophia invoca. Na Grécia irreal donde procede o olhar imaginariamente real de Alberto Caeiro, Sophia se reconstrói em positivo no negativo que o arquipélago submetido àquela Unidade que Pessoa nunca conheceu senão como infinita nostalgia dela revela ao poeta da presença ao mundo como presença que ela mesma é:
Porém obstinada eu invoco – ó dividido
O instante que te unisse 
E celebro a tua chegada às ilhas onde jamais vieste

“Anima” e “animus” se fundem no texto de Sophia, convertido em texto-Pessoa e texto de Pessoa convertido em texto-Sophia. Instalada na diferença que de Pessoa a separa e une, Sophia restitui a túnica dilacerada do imaginário português, a sua fragmentação sem remédio, na sua poesia unificante, fazendo dos plurais rostos de um continente disperso e inscrito em ausência em cada ilha, a Ítaca luminosa que desde sempre lhe foi barco e cais divino:
Pudesse o instante da festa romper o teu luto 
Ó viúvo de ti mesmo 
E que ser e estar coincidissem 
No um da boda.

Pessoa não viveu esta festa nem Sophia por ele a revive. Mas fazendo da claridade frontal do lugar grego, da noite nele renovada, do irreal vivido como real e do real bebido como irreal o corpo místico, a presença real de Pessoa, Sophia resumiu num só poema o seu destino de Penélope, a si mesma fiel, tecedora do mais alto dia e da mais viva esperança no meio da noite, nossa e da vida.




* Com o título  “Para um retrato de Sophia” o texto de Eduardo Lourenço que hoje aqui se republica serviu de prefácio à quarta edição aumentada de uma célebre Antologia de Sophia de Mello Breyner Andresen (Lisboa, Moraes Editores, 1975, 4ª ed. aumentada, 1978, pp. I-VII). O estudo aparece com a seguinte data: Vence, 17 de Fevereiro de 1978. Na semana em que se realizou a transladação da grande escritora portuguesa para o Panteão Nacional, Ler Eduardo Lourenço homenageia assim Sophia.