Adolfo Casais Monteiro |
O ensaio de Eduardo Lourenço tem uma densidade e uma riqueza de perspectivas que receio trair, ao ocupar-me dele sem o desenvolvimento que seria necessário, pelo que para ele remeto o leitor possivelmente interessado. O essencial é, porém, aí serem pela primeira vez postas em dúvida posições até então tidas como coisa entendida, isto é: a continuidade Orpheu-Presença. Haveria que argumentar contra Lourenço, em primeiro lugar, a inevitável simplificação à qual o obriga o seu exclusivo interesse pela expressão poética, com exclusão de uma filiação literária, e mesmo de uma posição crítica (ter sido a Presença que pela primeira vez colocou Pessoa e Sá-Carneiro na sua real perspectiva histórica), que têm sido precisamente as razões de se admitir aquela filiação. Isso não lhe tira, todavia, a validade no outro plano – somente nos alerta para novas dificuldades, quando se trata de ver de que maneira se pode conjugar a continuidade e a contradição – a admitir que a posição de Lourenço seja válida.
Pelo que se vê pelo que de mim mesmo transcrevi, pode o leitor supor motivadamente a minha concordância com Eduardo Lourenço. Dou, contudo, extrema importância aos factores que ele desdenhou, e não penso que seja lícito deixar de os ter em conta, numa avaliação da Presença em função do Orpheu. Mas a minha posição é difícil, precisamente por pensar que de facto os poetas da Presença de algum modo voltaram atrás. Mas entre o avanço e o regresso, entre a revolução e a contra-revolução, tecem-se fios tão subtis que talvez não haja discurso coerente capaz de os tornar visíveis.
Por um lado, o próprio Lourenço nos indica uma possível justificação de a revolução ter abortado. Com efeito, escreve ele que não se trata, com o Orpheu, de uma poesia cujo ser é feito de ‘drama de consciência’, ou de drama de poeta. O ser deste poetar é consciência do drama da realidade mesma e, como tal, agonia da poesia como lugar de combate por essa realidade. A agonia do poeta é secundária em relação a essa de que é filha. Não se trata de uma banal ou sublime aventura psicológica. Trata-se, literalmente falando, de uma «autêntica aventura ontológica, como outra não se conhece no mundo da língua portuguesa». Mas, diz mais adiante, «Invocá-lo» (ao «desastre obscuro» que é o ser dessa poesia) «sob o nome de experiência ontológica é ainda falhá-lo, pois o seu vazio centro é menos a presença do Ser que a sua ausência: ausência de essência humana em Sá-Carneiro, ausência de Tudo em Pessoa. Talvez o nome de aventura ontológica negativa – no sentido em que dizemos teologia negativa – seja o mais conveniente para traduzir o núcleo da revolução poética do Orpheu, com a condição de não perder de vista que essa ardente experiência do Nada, uma das mais profundas e extremas da poesia universal, é o anverso de um apelo igualmente inominado de Divindade».
A sedução que sobre mim exerce o ponto de vista do autor nem por isso me oculta as razões que é legítimo opor-lhe, e no primeiro plano das quais creio estar a seguinte: que depois do Fim não pode haver nada. Como poderia a poesia prosseguir para além do fim da essência humana e do fim de Tudo? Isto é: para continuar, a poesia teria de encontrar outro caminho. Sem dúvida foi o que aconteceu, e, nos casos de Régio e Torga da maneira que era possível às suas consciências de raiz cristã; se isto significa contra-revolução ou outra coisa é o problema que seria fecundo discutir. Talvez Eduardo Lourenço tenha «dramatizado» a questão, simplificando-a na eloquente antítese revolução-contra-revolução. E na verdade estou em crer que o recurso a este último termo tem o perigo de supor um contraste, ou uma oposição, onde talvez fosse mais fecundo procurar matizes que, evitando a exclusão total, levassem a uma hipótese menos absolutista.
Por um lado, o próprio Lourenço nos indica uma possível justificação de a revolução ter abortado. Com efeito, escreve ele que não se trata, com o Orpheu, de uma poesia cujo ser é feito de ‘drama de consciência’, ou de drama de poeta. O ser deste poetar é consciência do drama da realidade mesma e, como tal, agonia da poesia como lugar de combate por essa realidade. A agonia do poeta é secundária em relação a essa de que é filha. Não se trata de uma banal ou sublime aventura psicológica. Trata-se, literalmente falando, de uma «autêntica aventura ontológica, como outra não se conhece no mundo da língua portuguesa». Mas, diz mais adiante, «Invocá-lo» (ao «desastre obscuro» que é o ser dessa poesia) «sob o nome de experiência ontológica é ainda falhá-lo, pois o seu vazio centro é menos a presença do Ser que a sua ausência: ausência de essência humana em Sá-Carneiro, ausência de Tudo em Pessoa. Talvez o nome de aventura ontológica negativa – no sentido em que dizemos teologia negativa – seja o mais conveniente para traduzir o núcleo da revolução poética do Orpheu, com a condição de não perder de vista que essa ardente experiência do Nada, uma das mais profundas e extremas da poesia universal, é o anverso de um apelo igualmente inominado de Divindade».
A sedução que sobre mim exerce o ponto de vista do autor nem por isso me oculta as razões que é legítimo opor-lhe, e no primeiro plano das quais creio estar a seguinte: que depois do Fim não pode haver nada. Como poderia a poesia prosseguir para além do fim da essência humana e do fim de Tudo? Isto é: para continuar, a poesia teria de encontrar outro caminho. Sem dúvida foi o que aconteceu, e, nos casos de Régio e Torga da maneira que era possível às suas consciências de raiz cristã; se isto significa contra-revolução ou outra coisa é o problema que seria fecundo discutir. Talvez Eduardo Lourenço tenha «dramatizado» a questão, simplificando-a na eloquente antítese revolução-contra-revolução. E na verdade estou em crer que o recurso a este último termo tem o perigo de supor um contraste, ou uma oposição, onde talvez fosse mais fecundo procurar matizes que, evitando a exclusão total, levassem a uma hipótese menos absolutista.
*Adolfo Casais Monteiro (Porto, 4 de Julho de 1908 – São Paulo, 23 de Julho /24 de Julho de 1972). Escritor
O excerto que aqui se reproduz foi inicialmente publicado no Brasil em 1960 e foi reimpresso em O que foi e o que não foi o movimento da presença, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1995, pp. 76-78. O texto de Eduardo Lourenço a que o Autor se refere é o famoso ensaio “Presença ou a contra-revolução do modernismo”, Suplemento Cultura e Arte de O Comércio do Porto, Porto, 14/VI/1960, p. 6 e 28/VI/1960, p. 6. O ensaio foi publicado com
grave mutilação, tendo a censura suprimido todas as referências a Adolfo
Casais Monteiro. No ano seguinte, é publicado, já completo, em Revista do Livro. Órgão do Instituto Nacional do Livro, nº 23-24, Rio de Janeiro, Julho 1961, pp. 67-81.