quinta-feira, 9 de maio de 2013

Pensar Nove Décadas de Amizade (nº 20): Luís Sobreira*


Luís Sobreira

 Como ensina Eduardo Lourenço, para lá da «realidade efetiva de um povo» – «aquela que ele é como actor do que chamamos “história”» (Portugal como destino seguido de mitologia da saudade, 1999, p. 10.) existe uma outra correspondente à imagem que esse povo forjou de si mesmo. A essa representação imagética, feita de projectos, sonhos, injunções, memórias, em suma de mitos partilhados, chamaram os românticos alemães a “alma dos povos”. É pois a alma ou se se preferir a consciência portuguesa, materializada sob a forma de imaginário cultural, aquilo que interessa Lourenço e que ele perscruta numa tentativa sempre renovada de esboçar os seus contornos, de definir o seu conteúdo, mas igualmente de captar o sentido do seu devir histórico. Todavia, se este labor de autognose de Portugal pressupõe uma concepção de nação assente numa identidade cultural singular e transhistórica, tal não significa que Lourenço a considere de maneira essencialista, qual estrutura monádica, isolada e unívoca. Muito pelo contrário. Longe de glosar a mitologia nacional ou de encorajar qualquer espécie de misticismo patriótico egocêntrico e nostálgico, Lourenço examina o modo como a literatura, a crítica literária e o pensamento histórico-filosófico resimbolizam os acontecimentos do passado para construírem e veicularem uma determinada narrativa da nação sucessivamente adaptada em função da época e das suas motivações. Eduardo Lourenço debruça-se sobre essas encenações do imaginário cultual português, sobre os diversos discursos identitários de Portugal, a fim de esclarecer as suas origens, princípios axiológicos e incidências sobre a vida nacional. Graças a este processo autognósico, a essa análise extremamente lúcida, arguta e exigente da consciência global portuguesa, podemos hoje compreender melhor os nossos conflitos interiores e encarar de frente os nossos fantasmas colectivos. Mas se para Lourenço, os mitos e contra-mitos ligados ao nosso passado histórico explicam em grande parte a nossa maneira de estar no mundo, eles não devem ser tomados como condicionalismos determinantes de uma fatalidade que nunca conseguiríamos superar. Não obstante, Eduardo Lourenço defende a necessidade do mito, devido à sua função unificadora e ao papel que desempenha na perenização dos feitos humanos e salienta as virtudes da utopia - criadora de sentido e mobilizadora da acção. No retrato-diagnóstico psico-cultural de Portugal que vem traçando desde há décadas, Lourenço analisa, pois, as leituras que fazemos do nosso percurso histórico e as representações que temos de nós mesmos enquanto comunidade nacional, mas sobretudo interpela-nos para que demos ao passado um sentido actuante, extraindo dele novas propostas relevantes para a construção do futuro que desejamos para nós e para a Europa de que somos parte integrante.



*Luís Sobreira  
Leitor de Português – Universidade Paris Sorbonne 
Texto inédito gentilmente enviado pelo Autor para Ler Eduardo Lourenço.