António Pedro Pita (foto de Júlio Potes) |
Escuto Eduardo Lourenço numa sessão intitulada “Novas respostas para a cultura”: uma longa reflexão crepuscular mas não melancólica.
Creio ter ouvido, a conferência aconteceu em 2009, houve entretanto tanta coisa pelo meio, creio ter ouvido isto: «Se pensamos que a cultura nos vai dar a solução, não. A cultura não é uma resposta, é a questão».
Uma espécie de sobressalto: não se trata de “novas respostas para a cultura”?
Levanta-se a hipótese, um pouco difusa, não é a primeira vez, de que a fala de Eduardo Lourenço acontece ao lado do tema, desencontrada da questão, desalinhada do propósito gerador.
No momento em que escuto Eduardo Lourenço e no momento, agora, em que tento recuperar-me a escutar Eduardo Lourenço, todas as falas que lhe ouvi estão como que concentradas na mesma ideia forte: essas falas soltam-se de um tempo que não é o do respetivo presente cronológico mas que nem por isso deixam de ser contemporâneas do que está em debate.
Explico-me: raramente é o presente imediato que constitui o ponto de partida de Eduardo Lourenço. Há um impercetível recuo, uma distanciação que, pequena que seja, é suficiente para libertar a fala dos constrangimentos de sentido a que estão subordinados todos os que ficam presos à imperativa evidência do presente.
Afirmar que a cultura não traz nem é a resposta, num debate que procurava “Novas respostas para a cultura” não é distração nem improviso. É menos responder-lhe de fora do que entrar no tema sob a forma de uma interrogação, que é distanciação e recuo: sob que condições é que a cultura pode ser/ter hoje respostas? A uma tal operação pode chamar-se pensar.
Ora, é a generalização desta atitude, deste olhar, que carateriza o ensaísta: uma libertação do imediato que paradoxalmente mergulha no imediato ou, o que é o mesmo, uma irreprimível vontade de tudo pensar.
Um pouco estranho, por isso, é o regime de largo consenso que acolhe a intervenção do ensaísta: concordância e deslumbramento. Mas nenhum sobressalto: como se fosse mais o ideólogo aceite pela ficção-de-nós que insistimos em chamar verdade do que um indisciplinador de almas incendiário e trágico.
Quando termina a sua conferência interminável, que girou integralmente em torno de um tema recorrente, para não dizer obsessivo, o de que habitamos um “apocalipse suspenso”, mais uma variação da questão-chave deste utópico (in)fiel de um convento cujo superior seria Álvaro de Campos, suponho reconhecer o Eduardo Lourenço que ouvi há muitos anos, em Coimbra, trazendo Kierkegaard a uma assembleia de filósofos como se o excesso da filosofia ainda (ou já) fosse filosofia e o que recebi, noutra oportunidade, sempre generoso, sempre presente, chegado equivocadamente de véspera, desacertado do calendário exato, para falar de cinema ou da invenção da América.
Mas é mais forte o sentimento de que é um cartógrafo de labirintos seculares. Um “emissário de nenhum rei conhecido”, que traz noite e luz.
Creio ter ouvido, a conferência aconteceu em 2009, houve entretanto tanta coisa pelo meio, creio ter ouvido isto: «Se pensamos que a cultura nos vai dar a solução, não. A cultura não é uma resposta, é a questão».
Uma espécie de sobressalto: não se trata de “novas respostas para a cultura”?
Levanta-se a hipótese, um pouco difusa, não é a primeira vez, de que a fala de Eduardo Lourenço acontece ao lado do tema, desencontrada da questão, desalinhada do propósito gerador.
No momento em que escuto Eduardo Lourenço e no momento, agora, em que tento recuperar-me a escutar Eduardo Lourenço, todas as falas que lhe ouvi estão como que concentradas na mesma ideia forte: essas falas soltam-se de um tempo que não é o do respetivo presente cronológico mas que nem por isso deixam de ser contemporâneas do que está em debate.
Explico-me: raramente é o presente imediato que constitui o ponto de partida de Eduardo Lourenço. Há um impercetível recuo, uma distanciação que, pequena que seja, é suficiente para libertar a fala dos constrangimentos de sentido a que estão subordinados todos os que ficam presos à imperativa evidência do presente.
Afirmar que a cultura não traz nem é a resposta, num debate que procurava “Novas respostas para a cultura” não é distração nem improviso. É menos responder-lhe de fora do que entrar no tema sob a forma de uma interrogação, que é distanciação e recuo: sob que condições é que a cultura pode ser/ter hoje respostas? A uma tal operação pode chamar-se pensar.
Ora, é a generalização desta atitude, deste olhar, que carateriza o ensaísta: uma libertação do imediato que paradoxalmente mergulha no imediato ou, o que é o mesmo, uma irreprimível vontade de tudo pensar.
Um pouco estranho, por isso, é o regime de largo consenso que acolhe a intervenção do ensaísta: concordância e deslumbramento. Mas nenhum sobressalto: como se fosse mais o ideólogo aceite pela ficção-de-nós que insistimos em chamar verdade do que um indisciplinador de almas incendiário e trágico.
Quando termina a sua conferência interminável, que girou integralmente em torno de um tema recorrente, para não dizer obsessivo, o de que habitamos um “apocalipse suspenso”, mais uma variação da questão-chave deste utópico (in)fiel de um convento cujo superior seria Álvaro de Campos, suponho reconhecer o Eduardo Lourenço que ouvi há muitos anos, em Coimbra, trazendo Kierkegaard a uma assembleia de filósofos como se o excesso da filosofia ainda (ou já) fosse filosofia e o que recebi, noutra oportunidade, sempre generoso, sempre presente, chegado equivocadamente de véspera, desacertado do calendário exato, para falar de cinema ou da invenção da América.
Mas é mais forte o sentimento de que é um cartógrafo de labirintos seculares. Um “emissário de nenhum rei conhecido”, que traz noite e luz.
Coordenador do CEIS20 Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra.
Texto inédito gentilmente enviado pelo Autor a Ler Eduardo Lourenço