Eduardo Lourenço e Vergílio Bento
S. Pedro do Rio Seco, a Guarda e a Beira, as origens de Eduardo Lourenço, sempre estiveram no horizonte deste navegador por ruas estrangeiras. Numa reflexão refere que “viver com tanta paixão o elo que os liga à pátria – ou melhor, à terra, no sentido mais arcaico do termo - do que os portugueses, é difícil, porque essa paixão é o nome mesmo da sua identidade”. Uma paixão que assume e o liga de forma indelével à sua aldeia - tão pobre onde “até o Rio é Seco” - e à sua “capital” - como se refere afectuosamente à Guarda – e que marcaram decisivamente a infância do Pensador.
O sentimento é recíproco: a sua aldeia e a sua capital não o esquecem. Numa homenagem recente, família, amigos, conterrâneos e admiradores manifestaram, de forma singela mas sentida, o orgulho e o reconhecimento ao seu mais dilecto filho. Mas as homenagens são como os ritos, onde o tempo assume uma dimensão mitológica, com a capacidade de reactualizar o tempo passado.
O regresso a S. Pedro de Rio Seco foi o regresso ao tempo da sua infância, que não foi só o melhor como foi o único. Foi na sua aldeia, esse picolo mondo antico à margem de tudo e no centro de tudo, que se encantou pela literatura e pelo cinema. Através de Júlio Dinis entrou no mundo mágico de onde, afirma, “nunca mais sairia, pois não há saída possível quando se entra nesse reino”, afirmando-se como um leitor compulsivo sem o suplemento de imaginário próprio de romancistas e poetas. Foi aqui que contactou pela primeira vez com o cinema, “o sonho portátil”, quando nas aldeias ainda havia cinema ambulante projectado em lençóis, com um filme sobre a vida de Cristo. Através da literatura e do cinema como instrumentos da imaginação, Eduardo Lourenço ultrapassou a dimensão do pequeno mundo real da aldeia e projectou um novo mundo. Por isso, refere que “o que eu aprendi aqui, fora das letras, foi muito mais importante que tudo o que eu podia aprender nas letras. O que eu aprendi aqui foi a vida anterior às letras. A vida, o que se vê, o que se sente, os únicos momentos em que uma pessoa tem um sentimento de que existe verdadeiramente e não por procuração…”.
No começo da sua errância, Eduardo Lourenço sai do seu pequeno mundo aldeão e vem para a capital de distrito que “foi a cidade, como Roma era a Urbe para o cidadão romano”. A Guarda, a Penalva evocada por Vergílio Ferreira na sua Estrela Polar, causou ao Pensador maior surpresa que qualquer outra cidade no mundo por onde iria passar. A Guarda representou a passagem da comunidade para a sociedade e o encontro com os outros, apesar de ser uma realidade espectral, pois onde “ninguém nos conhece, somos espectros de nós mesmos”.
Por ocasião das Comemorações do Oitavo Centenário da Guarda, em 27 de Novembro de 1999, Eduardo Lourenço foi convidado a fazer a Oração de Sapiência. Neste elogio à Guarda, intitulado “Oito Séculos de Altiva Solidão”, Eduardo Lourenço reflecte sobre o conceito de interioridade, que afirma ser “mais filho da história do que da geografia”. A Beira, esta linha que, na opinião de José Mattoso, do Douro ao Tejo separa Portugal de Espanha, só é interior depois que “Portugal se define por um mar”.
A esta Guarda, não interior mas coração de Portugal, lançou Eduardo Lourenço o repto da criação, na senda de Oliveira Martins, de uma instituição que tivesse por função pensar a “jangada de pedra” que dos Pirenéus se desloca para o Atlântico. Atendendo à sua posição geográfica, a Guarda era, na opinião de Eduardo Lourenço, um espaço hinterland, que poderia favorecer o intercâmbio entre dois pólos culturais importantes da Europa, Coimbra e Salamanca. Por isso, lançou a ideia da criação do Centro de Estudos Ibéricos.
A este desafio não podia a Câmara Municipal da Guarda ficar indiferente e, juntamente com duas das mais antigas instituições universitárias da Europa (as Universidades de Coimbra e de Salamanca), constituíram o Centro de Estudos Ibéricos. Eduardo Lourenço reconhece que esta foi uma situação insólita, pois, talvez pela primeira vez, um pensamento, uma ideia sua se tornava realidade.
O Centro de Estudos Ibéricos surgiria exactamente um ano após ter sido lançado o repto. Teve a boa fortuna de ser patrocinado, de um lado de outro da imaginária fronteira, pelas duas instituições que ao longo dos séculos foram modelo da universidade peninsular. Como se ambas apenas aguardassem o chamamento autêntico que as associasse no estudo da Civilização Ibérica como um todo multidisciplinar.
A Guarda goza uma posição privilegiada e procurou, fazendo jus ao nome e à História, afirmar uma centralidade – no plano geoestratégico, primeiro; nas particulares circunstâncias sociais, económicas e culturais, depois. Ao lançar o desafio da criação do Centro de Estudos Ibéricos, Eduardo Lourenço impulsiona a Guarda a reafirmar a sua centralidade, valorizando o espaço transfronteiriço onde se enquadra e projectando-o para uma dimensão ambiciosa e integradora. A nova realidade europeia coloca geograficamente mais distante a raia do velho continente. A ordem natural das coisas impõe uma estratégia de coesão que, gradualmente, deixará de olhar para Portugal e para Espanha como beneficiários privilegiados. Neste quadro, é imperativo que a união e o desenvolvimento das regiões de fronteira que unem os dois países prossigam, redireccionando-se através dos valores imateriais: séculos de História partilhada, vivências em comum, cumplicidades. A cultura, a ciência e o saber formam a riqueza potencial que determinará a sobrevivência de uma identidade própria num quadro continental com crescente e expressiva multiplicidade civilizacional.
Eduardo Lourenço intuiu a necessidade desta mudança de paradigma: “um propósito e desafio, na aparência insólito, de estabelecer um elo de tipo novo, num tempo novo, o de uma Europa em redefinição do estatuto milenário, entre os dois países independentes e vizinhos, Portugal e Espanha.”
Associação transfronteiriça sem fins lucrativos, formada inicialmente pela Câmara Municipal da Guarda, pela Universidade de Coimbra e pela Universidade de Salamanca, às quais haveria de associar-se o Instituto Politécnico da Guarda, o Centro de Estudos Ibéricos assenta numa parceria vocacionada para a cooperação territorial na Raia Central Ibérica. Ao longo da última década tem vindo a afirmar-se como plataforma de diálogo, encontro de culturas e centro de transferência de conhecimentos, apostando na valorização da aprendizagem, do ensino, da formação e da investigação, dinamizando eventos e congregando vontades imprescindíveis para fomentar relações cada vez mais íntimas e cúmplices entre pessoas e instituições, contribuindo, pelas iniciativas que tem protagonizado, para superar barreiras e estimular a cooperação entre diferentes territórios de aquém e além fronteiras.
Cumprimos, assim, dia após dia, o desafio que nos foi lançado pelo Professor Eduardo Lourenço há mais de uma década. E continuamos, na expressão do seu mentor, a esforçar-nos “para que uma simples sugestão se convertesse em vida partilhada”.
O sentimento é recíproco: a sua aldeia e a sua capital não o esquecem. Numa homenagem recente, família, amigos, conterrâneos e admiradores manifestaram, de forma singela mas sentida, o orgulho e o reconhecimento ao seu mais dilecto filho. Mas as homenagens são como os ritos, onde o tempo assume uma dimensão mitológica, com a capacidade de reactualizar o tempo passado.
O regresso a S. Pedro de Rio Seco foi o regresso ao tempo da sua infância, que não foi só o melhor como foi o único. Foi na sua aldeia, esse picolo mondo antico à margem de tudo e no centro de tudo, que se encantou pela literatura e pelo cinema. Através de Júlio Dinis entrou no mundo mágico de onde, afirma, “nunca mais sairia, pois não há saída possível quando se entra nesse reino”, afirmando-se como um leitor compulsivo sem o suplemento de imaginário próprio de romancistas e poetas. Foi aqui que contactou pela primeira vez com o cinema, “o sonho portátil”, quando nas aldeias ainda havia cinema ambulante projectado em lençóis, com um filme sobre a vida de Cristo. Através da literatura e do cinema como instrumentos da imaginação, Eduardo Lourenço ultrapassou a dimensão do pequeno mundo real da aldeia e projectou um novo mundo. Por isso, refere que “o que eu aprendi aqui, fora das letras, foi muito mais importante que tudo o que eu podia aprender nas letras. O que eu aprendi aqui foi a vida anterior às letras. A vida, o que se vê, o que se sente, os únicos momentos em que uma pessoa tem um sentimento de que existe verdadeiramente e não por procuração…”.
No começo da sua errância, Eduardo Lourenço sai do seu pequeno mundo aldeão e vem para a capital de distrito que “foi a cidade, como Roma era a Urbe para o cidadão romano”. A Guarda, a Penalva evocada por Vergílio Ferreira na sua Estrela Polar, causou ao Pensador maior surpresa que qualquer outra cidade no mundo por onde iria passar. A Guarda representou a passagem da comunidade para a sociedade e o encontro com os outros, apesar de ser uma realidade espectral, pois onde “ninguém nos conhece, somos espectros de nós mesmos”.
Por ocasião das Comemorações do Oitavo Centenário da Guarda, em 27 de Novembro de 1999, Eduardo Lourenço foi convidado a fazer a Oração de Sapiência. Neste elogio à Guarda, intitulado “Oito Séculos de Altiva Solidão”, Eduardo Lourenço reflecte sobre o conceito de interioridade, que afirma ser “mais filho da história do que da geografia”. A Beira, esta linha que, na opinião de José Mattoso, do Douro ao Tejo separa Portugal de Espanha, só é interior depois que “Portugal se define por um mar”.
A esta Guarda, não interior mas coração de Portugal, lançou Eduardo Lourenço o repto da criação, na senda de Oliveira Martins, de uma instituição que tivesse por função pensar a “jangada de pedra” que dos Pirenéus se desloca para o Atlântico. Atendendo à sua posição geográfica, a Guarda era, na opinião de Eduardo Lourenço, um espaço hinterland, que poderia favorecer o intercâmbio entre dois pólos culturais importantes da Europa, Coimbra e Salamanca. Por isso, lançou a ideia da criação do Centro de Estudos Ibéricos.
A este desafio não podia a Câmara Municipal da Guarda ficar indiferente e, juntamente com duas das mais antigas instituições universitárias da Europa (as Universidades de Coimbra e de Salamanca), constituíram o Centro de Estudos Ibéricos. Eduardo Lourenço reconhece que esta foi uma situação insólita, pois, talvez pela primeira vez, um pensamento, uma ideia sua se tornava realidade.
O Centro de Estudos Ibéricos surgiria exactamente um ano após ter sido lançado o repto. Teve a boa fortuna de ser patrocinado, de um lado de outro da imaginária fronteira, pelas duas instituições que ao longo dos séculos foram modelo da universidade peninsular. Como se ambas apenas aguardassem o chamamento autêntico que as associasse no estudo da Civilização Ibérica como um todo multidisciplinar.
A Guarda goza uma posição privilegiada e procurou, fazendo jus ao nome e à História, afirmar uma centralidade – no plano geoestratégico, primeiro; nas particulares circunstâncias sociais, económicas e culturais, depois. Ao lançar o desafio da criação do Centro de Estudos Ibéricos, Eduardo Lourenço impulsiona a Guarda a reafirmar a sua centralidade, valorizando o espaço transfronteiriço onde se enquadra e projectando-o para uma dimensão ambiciosa e integradora. A nova realidade europeia coloca geograficamente mais distante a raia do velho continente. A ordem natural das coisas impõe uma estratégia de coesão que, gradualmente, deixará de olhar para Portugal e para Espanha como beneficiários privilegiados. Neste quadro, é imperativo que a união e o desenvolvimento das regiões de fronteira que unem os dois países prossigam, redireccionando-se através dos valores imateriais: séculos de História partilhada, vivências em comum, cumplicidades. A cultura, a ciência e o saber formam a riqueza potencial que determinará a sobrevivência de uma identidade própria num quadro continental com crescente e expressiva multiplicidade civilizacional.
Eduardo Lourenço intuiu a necessidade desta mudança de paradigma: “um propósito e desafio, na aparência insólito, de estabelecer um elo de tipo novo, num tempo novo, o de uma Europa em redefinição do estatuto milenário, entre os dois países independentes e vizinhos, Portugal e Espanha.”
Associação transfronteiriça sem fins lucrativos, formada inicialmente pela Câmara Municipal da Guarda, pela Universidade de Coimbra e pela Universidade de Salamanca, às quais haveria de associar-se o Instituto Politécnico da Guarda, o Centro de Estudos Ibéricos assenta numa parceria vocacionada para a cooperação territorial na Raia Central Ibérica. Ao longo da última década tem vindo a afirmar-se como plataforma de diálogo, encontro de culturas e centro de transferência de conhecimentos, apostando na valorização da aprendizagem, do ensino, da formação e da investigação, dinamizando eventos e congregando vontades imprescindíveis para fomentar relações cada vez mais íntimas e cúmplices entre pessoas e instituições, contribuindo, pelas iniciativas que tem protagonizado, para superar barreiras e estimular a cooperação entre diferentes territórios de aquém e além fronteiras.
Cumprimos, assim, dia após dia, o desafio que nos foi lançado pelo Professor Eduardo Lourenço há mais de uma década. E continuamos, na expressão do seu mentor, a esforçar-nos “para que uma simples sugestão se convertesse em vida partilhada”.
*Vergílio Bento. Vice-Presidente da Câmara Municipal da Guarda e Membro da Comissão Executiva do Centro de Estudos Ibéricos.
Texto inédito gentilmente enviado pelo Autor a Ler Eduardo Lourenço.