Óscar Lopes |
Entre os críticos actuais, Eduardo Lourenço parece-me ser
um dos mais capazes de se colocar no centro das intenções de uma obra ou de uma
personalidade. Por isso se descobrem com prazer neste seu ensaio diversas
observações penetrantes. No entanto, parece que qualquer motivo o inibe de ir
além de certos limites na sua análise, e de, portanto, construir uma síntese
assente em elementos bem extremados e intuitivos. A sua evidente intuição
literária parece sofrer a ressaca de certas limitações ou eufemismos que se
impõe.
Daqui resulta que a arquitectura geral deste seu ensaio
apresente fragilidades. Todo ele se baseia na convicção de que as “novas
gerações” de poetas portugueses exprimem um “desespero” generalizada que Miguel
Torga também acusaria em Penas do
Purgatório. Essa convicção condutora permite a Eduardo Lourenço diversas
reflexões pertinentes, sobretudo ao contrastar a filosofia de Orpheu com a da Presença e ao caracterizar alguns poetas actuais. No entanto, os
seus autolimites ressaltam do infecundo esquematismo a que, em geral, conduz .
Um desespero todo literário implica,
afinal de contas, uma forma de aceitação, um “modus vivendi”; o próprio
Eduardo Lourenço descortina em Torga uma
ambiguidade de desespero-e-esperança,
e descortiná-la-ia em todos os poetas, se quisesse – quando mais não seja, pelo simples facto de
poetarem. Não basta, portanto, o conceito indefinido de desepero para podermos compreender determinada poesia; é preciso ir
até à dialéctica concreta de seus desesperos-e-aceitações-de-qualquer-coisa.
Ora, ao confinar as suas reflexões no conceito kierkegaardiano de desespero, esvaziando-o de tudo quanto o
circunstancializa, Eduardo Lourenço vê-se obrigado, em compensação, a desdobrar
tal conceito numa série de constrastes ou contradições vagos, e para isso usa
com excessiva liberalidade da ideia de geração
– uma geração para cada contraste, e quase para cada poeta.
Então, acontece, por exemplo, esta coisa surpreendente,
que Eduardo Lourenço mostra, aliás, com notável sagacidade: Fernando Pessoa,
com a sua subtil teologia negativa, o
seu sentimento de transcendência apenas ligado à negação ou ausência de
quaisquer qualidades imagináveis ou pensáveis para o sagrado, representa uma fase de dissolução ideológica, de desespero, bastante mais adiantado do
que as fases, cronologicamente posteriores, de Régio e de Torga, poetas sempre
em diálogo com o Deus pessoal das suas infâncias. Como explicar esta aparente
inversão cronológica de ordem lógica?
Evidentemente, recorrendo àquilo que só na aparência é apenas circunstancial, reintegrando tais personalidades na sua
história palpável (o cosmopolitismo de um, o provincianismo de outro; a
diferença entre os ambientes nacionais de 1915 para 1930; etc.) O que interessa
no diálogo dos dois últimos poetas mencionados com o seu Deus de infância não é
uma simples e abstracta “perda de uma esperança absoluta”, mas o teor da vida
infantil a que essa ideia de Deus se liga, e o modo como isso permite
compreender o seu desespero de
adultos. Problema, aliás, do próprio ensaísta.
Eu gostaria de discutir com Eduardo Lourenço muitas
outras coisas, entre elas a sua estranha noção de “desespero humanista”; mas
ele próprio me abrevia tal empenho, pois de algum modo se autocrítica ao
reconhecer, no desfecho do seu ensaio, que a presença do desespero na poesia (de Torga) testemunha que a intenção humanista
de confiar no Homem todos os interesses superiores “não encontra no espírito
total do poeta uma estrada luminosa e larga”.
*Óscar Lopes (Leça da Palmeira, 1917 – Matosinhos, 2013)
Professor Universitário, Ensaísta e Crítico literário.
O texto que aqui se reproduz foi publicado incialmente em O Comércio do Porto, 28/VI/1955, sendo depois reimpresso em Modo de Ler- Crítica e Interpretação Literária 2, Porto, Inova, 1972, 2ª edição revista e aumentada, pp. 25-27. O ensaio de Eduardo Lourenço a que o Autor se refere é o livro O Desespero Humanista na Obra de Miguel Torga, Coimbra, Coimbra Editora, 1955.