segunda-feira, 27 de maio de 2013

Pensar Nove Décadas de Amizade (nº 75): Óscar Lopes*


Óscar Lopes


Entre os críticos actuais, Eduardo Lourenço parece-me ser um dos mais capazes de se colocar no centro das intenções de uma obra ou de uma personalidade. Por isso se descobrem com prazer neste seu ensaio diversas observações penetrantes. No entanto, parece que qualquer motivo o inibe de ir além de certos limites na sua análise, e de, portanto, construir uma síntese assente em elementos bem extremados e intuitivos. A sua evidente intuição literária parece sofrer a ressaca de certas limitações ou eufemismos que se impõe.
Daqui resulta que a arquitectura geral deste seu ensaio apresente fragilidades. Todo ele se baseia na convicção de que as “novas gerações” de poetas portugueses exprimem um “desespero” generalizada que Miguel Torga também acusaria em Penas do Purgatório. Essa convicção condutora permite a Eduardo Lourenço diversas reflexões pertinentes, sobretudo ao contrastar a filosofia de Orpheu com a da Presença e ao caracterizar alguns poetas actuais. No entanto, os seus autolimites ressaltam do infecundo esquematismo a que, em geral, conduz . Um desespero todo literário implica, afinal de contas, uma forma de aceitação, um “modus vivendi”; o próprio Eduardo  Lourenço descortina em Torga uma ambiguidade de desespero-e-esperança, e descortiná-la-ia em todos os poetas, se quisesse –  quando mais não seja, pelo simples facto de poetarem. Não basta, portanto, o conceito indefinido de desepero para podermos compreender determinada poesia; é preciso ir até à dialéctica concreta de seus desesperos-e-aceitações-de-qualquer-coisa. Ora, ao confinar as suas reflexões no conceito kierkegaardiano de desespero, esvaziando-o de tudo quanto o circunstancializa, Eduardo Lourenço vê-se obrigado, em compensação, a desdobrar tal conceito numa série de constrastes ou contradições vagos, e para isso usa com excessiva liberalidade da ideia de geração – uma geração para cada contraste, e quase para cada poeta.
Então, acontece, por exemplo, esta coisa surpreendente, que Eduardo Lourenço mostra, aliás, com notável sagacidade: Fernando Pessoa, com a sua subtil teologia negativa, o seu sentimento de transcendência apenas ligado à negação ou ausência de quaisquer qualidades imagináveis ou pensáveis para o sagrado, representa uma fase de dissolução ideológica, de desespero, bastante mais adiantado do que as fases, cronologicamente posteriores, de Régio e de Torga, poetas sempre em diálogo com o Deus pessoal das suas infâncias. Como explicar esta aparente inversão cronológica de ordem lógica? Evidentemente, recorrendo àquilo que só na aparência é apenas circunstancial, reintegrando tais personalidades na sua história palpável (o cosmopolitismo de um, o provincianismo de outro; a diferença entre os ambientes nacionais de 1915 para 1930; etc.) O que interessa no diálogo dos dois últimos poetas mencionados com o seu Deus de infância não é uma simples e abstracta “perda de uma esperança absoluta”, mas o teor da vida infantil a que essa ideia de Deus se liga, e o modo como isso permite compreender o seu desespero de adultos. Problema, aliás, do próprio ensaísta.
Eu gostaria de discutir com Eduardo Lourenço muitas outras coisas, entre elas a sua estranha noção de “desespero humanista”; mas ele próprio me abrevia tal empenho, pois de algum modo se autocrítica ao reconhecer, no desfecho do seu ensaio, que a presença do desespero na poesia (de Torga) testemunha que a intenção humanista de confiar no Homem todos os interesses superiores “não encontra no espírito total do poeta uma estrada luminosa e larga”.


*Óscar Lopes (Leça da Palmeira, 1917 – Matosinhos, 2013) 
Professor Universitário, Ensaísta e Crítico literário.
O texto que aqui se reproduz foi publicado incialmente em O Comércio do Porto, 28/VI/1955, sendo depois reimpresso em Modo de Ler- Crítica e Interpretação Literária 2, Porto, Inova, 1972, 2ª edição revista e aumentada, pp. 25-27. O ensaio de Eduardo Lourenço a que o Autor se refere é o livro O Desespero Humanista na Obra de Miguel Torga, Coimbra, Coimbra Editora, 1955.