quarta-feira, 29 de maio de 2013

Pensar Nove Décadas de Amizade (nº 89): Carlos Mendes de Sousa*


                   Carlos Mendes de Sousa
                    (foto de Eduardo Coelho)


Em 1993, num Colóquio sobre Eugénio de Andrade, no Porto, a dada altura, criou-se “um caso” em torno do desaparecimento de uma comunicação. O autor do texto desaparecido era Eduardo Lourenço. O organizador do encontro, Arnaldo Saraiva, e alguns dos participantes do evento mobilizaram-se em buscas diligentes: telefonemas para o hotel, onde quase todos os palestrantes estavam hospedados, indagações pelos diversos espaços de Serralves, onde decorria o Colóquio… A pista fornecida era a indicação de uma pasta contendo um conjunto de folhas com letra miúda. Tenho a sensação de ter voltado a presenciar episódios semelhantes (da fuga dos textos) protagonizados por Eduardo Lourenço.

A distracção, pequeno traço da personalidade do autor de Tempo e Poesia, tem sido aludida em alguns retratos, e o próprio a tal se referiu ocasionalmente, como numa carta a Jorge Sena, quando com fina ironia apontou o modus operandi da polícia política: “Mesmo uma semana como eu, em Caxias, sem ser kafkiana, é humilhante e sem sentido. O que lhe digo é que a célebre Pide merece a reputação que tem em matéria de informação. Sabiam mais de mim que eu, que sou distraído. Não há dúvida que Salazar aplica bem o capital” (Nice, 12 de Novembro 67).

O episódio de Serralves teve um desfecho feliz. O manuscrito apareceu e o belíssimo ensaio pôde então ser ouvido. Acredito que se o texto não tivesse sido encontrado, Eduardo Lourenço depressa criaria um outro, igualmente deslumbrante, no momento e para o momento. Evoco o caso para sublinhar o modo como a lourenciana distracção é indissociável daquela omnívora atenção dispersiva, que todos nele reconhecemos, e que me parece decisiva para o entendimento da génese do seu ensaísmo.

Entre o bloco de anotações e a voz, na fronteira entre o oral e o escrito, dá-nos a ver tantas vezes, em perspectiva, a sua oficina. Da pulsão do conhecimento à compulsão da escrita. Algumas vezes o vi a escrever, nos átrios das salas dos Colóquios, mesmo antes de entrar em cena. Mas também o vi a “compor” oralmente textos de admirável formulação. Como se nascessem escritos, na dicção encantatória com que brotavam. Como se emanassem de uma fonte.

Noutros contextos, em conversa desprendida, também nos é dado a ver o fascinante laboratório. No registo ameno de um encontro, em jantar ou em reunião de trabalho, revela-se a máquina de produzir pensamento, alimentada pela vivíssima memória e pela extraordinária forma de contar. A maior parte das vezes, basta a lembrança de um nome para que se desenrolem fios soltos, retomados em fluxo, num entrelaçamento fabular notável; para cada nome uma história ou várias histórias entrecruzando-se. Recordo, entre outros, um inesquecível episódio deliciosamente narrado sobre uma ida de Nemésio a Vence. Sentado, à mesa, ou a caminhar, em pequenas deslocações de passo miúdo, avança e pára. Nas curtas caminhadas, quando pára, o pensamento intensifica-se, veloz. Nestas conversas, a propósito de tudo, nascem sínteses, flashes, fragmentos que, de certa forma, dão conta do processo da formação do ensaio. A essa acumulação de intensidades não é alheio o modo como Eduardo Lourenço se posiciona diante do real, e especialmente o modo como percepciona a problemática existencial pela via do poético.

Todos sabemos que foi Pessoa o nome da senha e conta-senha que o guiou. Amigo de poetas, muitas vezes nostálgico de outra identidade, a melhor forma de o descobrirmos, onde se dá a ler inteiro, talvez seja justamente quando fala de poesia. Tão próximo do criador e do criado, reencontra-se a si próprio na fonte onde a metáfora equivale ao real. Com muita justeza podemos retratá-lo com as suas próprias palavras, aquelas que ele disse sobre o poeta homenageado em Serralves, naquele texto enfim aparecido, num recuado mês de novembro de um ano da nossa memória. Porque também há uma escrita lourenciana que “integra como sombra ou luz paradoxalmente excessiva a sua poética”. E um dia saberemos reunir todos os fragmentos desses paradoxais excessos, luz e sombra do seu fulgurante labor. 


*Carlos Mendes de Sousa
Professor e Investigador da Universidade do Minho, Membro da Comissão Científica da edição das Obras Completas de Eduardo Lourenço.
Texto inédito gentilmente enviado pelo Autor para Ler Eduardo Lourenço.