segunda-feira, 6 de maio de 2013

Pensar Nove Décadas de Amizade (nº 13): José Marinho*


José Marinho



O artigo publicado por esta mesma revista no seu primeiro número por Eduardo Lou­renço pertence ao número daqueles que imediatamente suscitam atenção. Unicórnio honrou­-se, inserindo, desde o seu primeiro número, uma série de reflexões deste tipo. Digo-o sem louvor, e com tanto mais à vontade quanto é certo que me [são] cada vez menos simpáticas certas intenções modernistas de que me parece esta revista, em grande parte inspirar-se.

O moderno, como o de hoje ou deste tempo, ou de qualquer tempo, só me parece ter digni­dade para apresentar-se como forma de arte ou de pensamento, sob forma de mergulhar profundas raízes no tempo e na vida. Receio que o existencialismo ou o superrealismo, como outras tendências similares do passado, como o futurismo, ou o cubismo, sejam apenas sinal de crise e apressada vontade de efectivo sentido de criação originária e de autêntico pensa­mento. Ser inspirado – seja por Deus, seja por deuses, seja pela natureza, seja pela vida em qualquer das suas significativas formas é coisa séria e para sempre me situo entre os que na inspiração autêntica, nos seus mentais equivalentes, atribuem valor mais alto. Resulta, po­rém, equívoco tomar por inspiração o que ao não é, tomar por alto sentido do enigma o que resulta ser fim e ao cabo sinal de passageiro e muitas vezes imitado ou refractante perplexi­dade. Se na ordem do pensamento e da arte há imitar a natureza ou as mesmas obras de pen­samento e de arte, é em sentido muito fundo que não está nem à flor da vida já vivida, nem à flor das obras, de génio sejam, ou alto engenho, quando apenas desde fora consideradas.

É comum nas nossas revistas de arte e literatura ignorar a filosofia, em parte os nossos poetas escritores e literários tudo têm feito por ignorar a dura luta e o duro labor que os seus compatriotas de tendência filosófica sustentam no país desde há dois séculos para de novo replantar na terra árida a planta de cultura recusada como se fosse exótica. Que a filosofia seja pois, aceite como tema digno de reflexão por artistas, é sempre motivo de espanto como de alegria para aqueles que estão ao mesmo tempo muito perto, e, por outro lado muito distantes, da arte e da literatura.

O artigo publicado por Eduardo Lourenço no primeiro número de Unicórnio merece leitura e reflexão atenta de todos quantos se interessam pelo problema da filosofia em Portugal, ou, para empregar o termo usado por Álvaro Ribeiro, pelo problema da “filoso­fia portuguesa”. Muitas pessoas se desgostaram com o emprego dessa expressão, num livro que Eduardo Lourenço refere entre os estudos aludidos dos nossos pensadores que se ocupa­ram do problema instante.

Marca Eduardo Lourenço o seu assentimento com a doutrina exposta no referido livro num ponto capital: o da necessidade da tradição e da escola. Também nós, e é ocasião de dizê-lo, damos nosso pleno assentimento a essa tese. Em nossos escritos sobre pensadores portugueses, e bem assim em mais circunstanciais artigos, tentamos mostrar quanto é ab­surda a opinião corrente entre muitos “cultos” e “críticos” e que qualquer forma de pen­samento filosófico europeu está ao alcance da nossa compreensão se lermos os livros em que foi expressa ou consignada.

Esta tese, filha do espírito enciclopedista, a acentuada pelo enciclopedismo, retomado por alguns ensaístas e propedeutas de cultura do nosso tempo, à frente dos quais se distinguiram António Sérgio, não só carecia de fundamento à data da sua exposição entre nós, como é hoje impugnada por todos os lados na própria Europa de onde esperávamos a luz. Se seguirmos a lição da Europa, temos hoje de reconhecer que a situação filosófica da Europa é incompatível com o magistério culturalista e enciclopedista; (...)

Eduardo Lourenço repõe o problema da nossa cultura em termos diferentes já dos que encontramos no seu livro Heterodoxia. Desde agora aparece que segundo volume desse livro, a aparecer, se situará em muito diverso ponto ou se orientará, pelo menos, de muito diversa forma.

Não se trata já de uma atitude escolástica, como a que António Sérgio, com o seu ensaísmo europeu e fantasmático, inspirado em pretéritas formas de cultura europeia à data desses ensaios, das fases de vigên­cia cultural para apressados estudiosos. Diremos, sem hesitar, que no seu livro, tão bem escrito, mas tão unilateral, se situara dentro dessa posição neo-escolástica qual é a de pôr a cultura europeia moderna no lugar da teologia cristã medieval, ou da malograda tentativa de conciliação da contra-reforma, e de pôr a origem das nossas deficiências na falta de “diálogo com a Europa”. Ora é evidente que não há diálogo sem monólogo, ninguém fala com outro se não falar a sós consigo (...)

A citação de Verney e António Sérgio entre os pensadores de Portugal mostra, no entanto, ainda que Eduardo Lourenço não se libertou ainda do culturalismo europeu. Aparece-me ainda excessivo nele o sentido de diálogo com o estranho independentemente do aludido monólogo e do diálogo com os autóctones. Verda­deiramente nem Luiz António Verney, nem António Sérgio têm nada que ver com o pensamento português. Consistem em assimilação tardia ou póstuma de situações culturais ou de formas de pensamento já ultrapassados. A adequação ou a simples cópia ou tradução de Locke para uma cultura latina seria possível ali onde as formas de pensamento de Descartes ou de Leibnitz, a que ele se referia ou que a contrastam tivessem sido assimiladas. Num país onde isso não aconteceu resulta equívoco. Assim também, a reforma da mentalidade, cartesiana e more geométrico, na primeira e segun­da metade do século XX, resulta equívoco forçosamente estéril.

*José Marinho, Filósofo. (Porto, 1 de Fevereiro de 1904 - Lisboa, 5 de Agosto de 1975).
O texto que aqui se reproduz foi inicialmente publicado com o título “Sobre um artigo de Eduardo Lourenço em Unicórnio”, Filosofia Portuguesa e Universalidade da Filosofia e outros textos, Obras de José Marinho Volume VIII (Org. de Jorge Croce Rivera), Lisboa, Imprensa Nacional–Casa da Moeda, 2007, pp. 253-255. Neste texto, que permaneceu durante largas décadas inédito, José Marinho refere-se ao artigo  “Ideia para uma historiografia existencial do pensamento português”, publicado em AAVV (Org. de José Augusto FRANÇA), Unicórnio. Antologia de Inéditos de Autores Portugueses Contemporâneos, Lisboa, Maio de 1951, pp. 38-44, reimpresso em Eduardo Lourenço, Heterodoxias, Obras Completas Vol I, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, pp. 147-155.



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