quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Um inédito sobre Gilberto Freyre

Gilberto Freyre (Recife, 1900-1987)
Numa entrevista realizada a 1 de Maio de 2000 em São Paulo (e que está publicada em Colóquio-Letras, nº 171, Março de 2009, pp. 296-312), Rui Moreira Leite faz a seguinte pergunta a Eduardo Lourenço «Porque se decidiu a escrever sobre Gilberto Freyre?».
A resposta do ensaísta português é algo desconcertante:
«O homem era muito vaidoso. Mas eu até percebia isso, ele já era uma figura histórica e o seu livro [Casa-Grande & Senzala, presume-se] um clássico. Mas era de uma vaidade espantosa... não foi por isso que escrevi, claro. Naquela altura, não sabia que ele era de formação protestante e pensei que era católico, como toda a gente, geralmente, aqui no Brasil. Ele escreveu uns artigos ideológicos tomando posição nas coisas de ordem social, um artigo desancando uns franciscanos que estavam dentro dessa igreja do Brasil, comportando-se já como sendo a Igreja dos pobres. Além disso, muitos brasileiros não sabem disso, o regime português serviu-se de Gilberto Freyre como caução, principalmente para esta coisa do luso-tropicalismo, como caução ideológica da cruzada africana. E isso não foi uma bagatela, a prova é que ele foi o único escritor que Salazar realmente recebeu. Aí é que eu fui realmente para além da conta. Mas eu reconheço que ele é um homem que tem uma obra e, sobretudo, que tem importância na cultura brasileira. Aquelas coisas são válidas para a leitura que se faz da descolonização, mas naquela altura era, digamos do meu ponto de vista, de um tal reaccionarismo... E até, de algum modo paradoxalmente, eu achava muito complexa a teoria do Gilberto Freyre e isso já foi aqui discutido no Brasil. Vejamos: por um lado é um discurso de ordem sociológica que dá um lugar positivo à mestiçagem e isto, claro, é extremamente positivo. Mas por outro lado, esse discurso acaba por ter uma leitura de coisa racial, logo racismo. E, directamente, acaba mesmo por funcionar às avessas: é uma mitologia...» (p. 306).
À primeira vista, parece que o texto sobre Gilberto Freyre a que entrevistador e entrevistado se referem é o artigo publicado em O Comércio do Porto em 11 de Julho de 1961 e, bastantes anos mais tarde, integrado no livro Ocasionais I (Lisboa, A Regra do Jogo, 1984, pp. 105-112). No entanto, há conhecimento de outros escritos inéditos que Eduardo Lourenço dedicou ao autor de O Mundo que o Português Criou (livro para o qual António Sérgio escreveu o prefácio da edição brasileira, facto que, por si só, mostra que a simpatia por Freyre em Portugal, pelo menos nos anos Quarenta, se estendia também a declarados opositores do Estado Novo). Ler Eduardo Lourenço divulga hoje um manuscrito de três páginas que o ensaísta redigiu em 1965, na sequência da leitura de um artigo que o sociólogo brasileiro publicou em Diário de Pernambuco a 17 de Outubro desse mesmo ano. O texto de Eduardo Lourenço com o título “O.R.P. Freyre (Gilberto) ou Um Sociólogo sem Máscara” foi enviado para a revista lisboeta O Tempo e o Modo, mas a censura impediu a sua publicação.  Trata-se de um curto e demolidor ensaio (por vezes com uma contundência até inesperada), cuja leitura nem por isso deixa de ser extremamente interessante.
Recentemente a Fundação Mário Soares divulgou alguns documentos (cf. http://casacomum.org/cc/arquivos?set=e_982#!e_982) do espólio de João Bénard da Costa (Lisboa, 1935-2009), director da referida revista (que, de resto, também pode ser consultada no site da Fundação Mário Soares: cf. http://casacomum.org/cc/arquivos?set=e_23#!e_23), entre os quais se conta esse “O.R.P. Freyre (Gilberto) ou Um Sociólogo sem Máscara”, bem como um recorte do texto jornalístico de Freyre que esteve na origem do ensaio de Eduardo Lourenço. São esses documentos que, com a devida vénia, Ler Eduardo Lourenço apresenta seguidamente, ao mesmo que deseja um Excelente Ano de 2015 a todos os visitantes do blog.

O.R.P. Freyre p.1
O.R.P. Freyre p. 2
O.R.P. Freyre p. 3
Artigo de Gilberto Freyre no Diário de Pernambuco (17/X/1965)

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Eduardo Lourenço e o neo-realismo: um diálogo singular*

por Rosa Maria Martelo

Rosa Maria Martelo

O segundo volume das Obras Completas de Eduardo Lourenço abre com os ensaios de Sentido e Forma da Poesia Neo-realista, livro que, vindo a público em 1968, identificava divergências significativas entre as elaborações teóricas da poética neo-realista e as realizações concretas de alguns dos melhores poetas do movimento. Com esta escolha fica dado o tom geral do volume, já que a leitura heterodoxa então proposta vai ecoar nos textos recolhidos na “Segunda Parte”, intitulada “Outros Ensaios”, na qual encontraremos, por esta ordem: uma selecção de textos publicados entre 1944 e 1948, maioritariamente na revista Vértice; vários estudos dedicados a Fernando Namora; e reflexões que, distribuídas pelos capítulos “Memória de Vértice”, “Cultura e Comunismo”, nos dão, no seu conjunto, o olhar absolutamente singular de Eduardo Lourenço sobre o Neo-realismo, um olhar ao mesmo tempo solidário e criticamente distanciado, capaz de cruzar distância reflexiva e empatia geracional. De referir, por fim, a secção “À Margem”, que inclui um testemunho de Raul Gomes (datado de 1982) acerca da história da revista Vértice. Com esta inclusão, e como é lembrado na informação “Sobre os textos deste volume”, Eduardo Lourenço quis homenagear “a memória do Amigo e Companheiro” dos tempos de Coimbra (484). 
Cronologicamente, o segundo volume das Obras Completas recua ao primeiro encontro coimbrão de Eduardo Lourenço com algumas das figuras mais emblemáticas do movimento então em formação – Joaquim Namorado, João José Cochofel, Carlos de Oliveira, Raul Gomes, Rui Feijó, entre outros –, tempo do qual são recuperadas publicações muito pouco conhecidas, incluindo um conto e um poema, e alarga-se até às muitas leituras retrospectivas pelas quais Eduardo Lourenço contribuiu decisivamente para evidenciar a complexidade e a diversidade do Neo-realismo. Deste modo, permite-nos ler, de forma conjunta e articulada, textos que foram fundamentais na aferição do papel do Neo-realismo enquanto movimento invulgarmente amplo, quer no âmbito da acção que pretendeu ter, quer no plano da extensão diacrónica que foi a sua. 
De referir, ainda, a excelente introdução elaborada pelo coordenador do volume, António Pedro Pita, intitulada “Inventar o sentido do tempo – Eduardo Lourenço e o «Neo-realismo» como problema”. Não poderíamos contar com melhor coordenação, já que devemos a António Pedro Pita, e ao trabalho que tem vindo a desenvolver ao longo de anos, uma contribuição inestimável para a superação das muitas leituras simplistas que (ou por excesso de empatia ou por excesso de antipatia) tantas vezes reduziram o Neo-realismo a uma homogeneidade ideológica, cultural e estética que ele nunca teve. Assim, não admira que António Pedro Pita agora apresente esta introdução como mais um passo no “trabalho de aclaramento” que a complexidade do Neo-realismo lhe tem vindo a merecer (cf. 12, nota 1). Não tentarei sequer a tarefa inviável de fazer uma síntese do já de si muito conciso texto de António Pedro Pita, que enumera e articula questões e vectores fundamentais para a compreensão do Neo-realismo de forma a melhor entendermos o influente papel desempenhado por Eduardo Lourenço, primeiro enquanto “viajante sem bagagens” (361) do tempo literário da década de 40, e sobretudo depois, numa assumida margem face ao movimento – uma margem na qual nunca deixou de estar atento aos modos como o Neo-realismo ia inventando os sentidos do tempo, para retomar a sugestiva formulação usada na Introdução a este segundo volume. 
Enfatizando a produtividade do facto de, a partir de agora, podermos ter um acesso conjuntural a textos que se alargam por cerca de 70 anos, António Pedro Pita parte de um testemunho de Eduardo Lourenço, intitulado “Como vivi a (pequena) história do Neo-realismo” (inicialmente publicado no jornal Expresso, em 1982, e agora reproduzido no volume), para nos sugerir a singularidade das relações que o filósofo manteve com o movimento: “A leitura ponderada do volume que o leitor tem nas mãos esclarece a singularidade dessa travessia” sublinha, acrescentando que ela “[e]sclarece também o que, nessa singularidade, possa ser devido à complexidade de tal constelação” (12). 
No testemunho destacado na Introdução, e que também eu irei revisitar, Eduardo Lourenço recorda a posição à margem em que viveu o Neo-realismo. A formulação que usa é muito significativa: “Testemunho de margem e de certa maneira também da minha futura marginalidade” (366), diz. Mas acrescenta de imediato: “Aconteceu, contudo, que habitei essas margens como alguns não habitaram o centro” (ibid.). E fala então dos laços de grande amizade que o ligaram a Carlos de Oliveira, colega de curso e interlocutor privilegiado, lembra a participação em tertúlias, muitas delas na “bela morada de João José Cochofel” (372), e recorda a compra colectiva da revista Vértice pelos jovens neo-realistas, da qual se tornaria um dos fundadores-proprietários (368), depois de uma acção decisiva para evitar a extinção logo após o segundo número. Nesta “pequena história” coimbrã, que se prolongaria até 1949, Eduardo Lourenço sublinha sempre que “não fora nunca, o que se chama ser, da “«família» neo-realista” (369), recordando mesmo que alguns o descreviam como impenitente “metafísico” (ibid.) nesses tempos em que se apaixonava pelo pensamento dos recém-descobertos Kierkegaard e Niestzsche (368) enquanto também mantinha reservas à “barragem crítica contra a Presença” (368).Tendo descoberto Pessoa em 1942, em sintonia com Carlos de Oliveira, Eduardo Lourenço descreve-se como alguém a quem só a margem podia permitir o isolamento do luto interior que o embate com Pessoa nele provocara, mesmo que o não soubesse ainda. 
Este instigante testemunho tem desde logo o mérito de mostrar como o pensamento, no sentido forte do termo, precisa de autenticidade para se desenvolver, pois o que antes de mais nada sobressai neste relato é precisamente a autenticidade da busca pessoal que ele revela. Será esta singularidade de pensamento que irá afastar Eduardo Lourenço daqueles de quem então se sentia próximo afectivamente, e essa circunstância permitir-lhe-á descrever com imparcialidade o que de modo mais ou menos consciente foi, para muitos, a experiência paradoxal de juntar uma opção pelo marxismo e a vivência da “espectralização em diversos tons e tonalidades dessa referência marxista, ao mesmo tempo real e mítica” (365). O livro que corresponde à primeira parte deste segundo volume, Sentido e Forma da Poesia Neo-realista, constitui um momento notável dessa dupla percepção que preservou Eduardo Lourenço do erro de perspectiva que observava em muitos leitores do Neo-realismo, dentro e fora dele: “o de confundir a ordem da intenção, do desejo, com a dos factos”, como então afirmava logo no “Prólogo”(46). 
A escolha de abrir o segundo volume das Obras Completas com este “ensaio de compreensão não-neo-realista do neo-realismo”, como lhe chama António Pedro Pita (31), faculta uma espécie de início de leitura in media res, ou seja, cria um ponto de partida ao mesmo tempo panorâmico e integrador, inclusive dos capítulos que irão seguir-se, nos quais muitos textos remetem para uma cronologia anterior. Escrito entre 1959 e 1960, embora os textos de abertura e fecho sejam posteriores, datados de 1967, Sentido e Forma da Poesia Neo-realista parece resultar de um compromisso: “a minha intenção era «salvar» a poesia neo-realista da sua boa-consciência”, dirá mais tarde Eduardo Lourenço, em entrevista[1]. E explica: “Por outro lado, se na verdade me tinha afastado, em termos teóricos, do Neo-realismo, nunca tinha deixado de manter a minha solidariedade com a atitude de oposicionismo”[2]. 
Apesar da inegável distância temática, há uma grande complementaridade entre os estudos de Sentido e Forma da Poesia Neo-realista e um ensaio fundamental que Eduardo Lourenço publicara dois anos antes na revista o Tempo e o Modo, sob o título “Uma literatura desenvolta ou os filhos de Álvaro de Campos”, no qual dava como desaparecido, nas obras dos ficcionistas emergentes entre 1953 e 1963, o ascendente da “ideologia como ética mascarada de «deus ex-machina»” na ficção portuguesa: “a ideologia [já] não constitui ecrã entre criador e criaturas, entre criação e leitura”, diz, e retoma de Álvaro de Campos a imagem da “imparcialidade da neve” para descrever a atitude revolucionária da nova literatura. Se até então tivéramos “uma literatura ética, com o grave defeito de servir em grande parte exactamente a mesma ética do mundo que se propunha ‘transformar’”, a “Nova Literatura” seria “mais revolucionária” na exacta medida da sua neutralidade e indiferença éticas[3]. 
O processo de leitura desenvolvido em Sentido e Forma da Poesia Neo-realista surpreende algo do teor desta indiferença no cerne da poesia neo-realista – porque a neutralidade ética também lá se anunciaria algumas vezes, mesmo contra (ou principalmente contra) o empenhamento dos autores que se esforçavam por não lhe cair nas malhas:
A intenção ideológica aparente estabelece uma comunidade de princípio entre os poetas a quem convém de facto a designação de neo-realistas, mas ao nível em que a poesia existe a surpresa nasce da verificação de que tal referência, importante enquanto horizonte e clima, não subordinou tanto como se afirma os autênticos poetas. Cada um deles se viu confrontado com qualquer coisa de mais visceral, irredutível, de mais profundo e revelador, uma realidade que é certamente a deles mesmos e do seu ser social. (...) Uma releitura dos poetas neo-realistas mostra, naqueles que sobrevivem ou naquilo que sobrevive ao que neles morreu, como a poesia foi neles também, como em todos os poetas, o verdadeiro senhor embora na aparência tenha revestido a túnica do escravo. (58-59)
Um dos aspectos do livro com mais consequências críticas passava precisamente por aqui, ou seja, por mostrar que nem sempre a poesia escrita pelos neo-realistas pôde coincidir com a poética que estes desejavam implementar:
Em literatura como no resto não se faz o que se quer mas o que se pode. Nas praias lusitanas o mais decidido projecto de poesia objectiva só pôde concluir numa nova e muito subjectiva exaltação lírica. Nele reside o mais valioso do Neo-realismo. (49)
Com efeito, seria afinal por uma renovação lírica – e portanto no avesso do seu anunciado destino epopaico – que esta poesia exprimiria, em registo intimista, a tensão entre o desejo e a melancolia, ou entre a euforia e a desesperança. Em síntese, seria no registo lírico que ela mostraria a autenticidade vivencial dos tempos cinzentos do fascismo, e essa renovação lírica acontecera em vez dos cantos heróicos que poucas razões e pouco espaço tinham para existir, por muito grande que fosse o desiderato neo-realista de lhes dar plena existência. 
Nos três autores estudados – João José Cochofel, Joaquim Namorado e Carlos de Oliveira –, Eduardo Lourenço sublinha a singularidade de três poéticas diferenciadas. Em Cochofel, irá identificar uma poética da imanência que parte de um “tom menor” (77) e nunca chega a assumir “o ritual da apóstrofe” (87) neo-realista. E descobre-nos particularidades como esta:
É a primeira poesia inocentemente ateia de que temos conhecimento. Isto nos parece de suma importância por desenhar um espaço poético radiosamente outro que o de Presença, espaço que será, em definitivo, não só o de toda a poesia neo-realista, como de uma boa parte da nossa poesia dos últimos trinta anos. (77)
Esta perspectiva, que Eduardo Lourenço retomará ao defender que o “«neo-realismo» nesta primeira fase é, sobretudo, «neo-cesarianismo»” (80), tem a grande vantagem de conduzir a uma leitura integradora dos poetas neo-realistas nas tendências gerais da poesia dos anos 40, evitando as inflexões excessivamente grupais de que notoriamente estes poetas foram vítimas. Assim, em João José Cochofel, Eduardo Lourenço observa nexos com alguns dos presencistas, com os chamados poetas dos Cadernos de Poesia, e com algum Pessoa também. E conclui que, embora Fernando Namora, Mário Dionísio ou Manuel da Fonseca lhe tivessem permitido exemplificar melhor “a cor indelével do “neo-realismo” (112), prefere uma “virtude mais rara” que a escrita de Cochofel detém, já que “ela exemplifica, como nenhuma outra a dificuldade intrínseca da nossa poesia neo-realista e extrai da modulação dessa dificuldade a sua substância, tanto sob o plano do conteúdo, como da forma” (112). 
Fiel a esta perspectiva, mesmo se situa a poesia de Joaquim Namorado nos antípodas da de Cochofel, dado o empenhamento, o entusiasmo, a “violência romântica” (169) que a caracteriza, Eduardo Lourenço não deixará de observar, na “consciência cada vez mais profunda da situação historicamente sem saída que coube em partilha [à] aventura neo-realista” (173), uma contradição produtiva da qual emerge a autenticidade que sustenta a poesia de Joaquim Namorado enquanto “epopeia impossível”. Já no caso de Carlos de Oliveira, cuja poesia será descrita sob a égide do trágico, Eduardo Lourenço analisa a importância da elementaridade da matéria, a “dialéctica entre o poema e o reino mineral” (228); e observa o papel de uma atitude mais pessimista do que desistente, que culminará no movimento de retracção dos poemas de Cantata (1960). 
Dos três estudos, creio que ressalta o que terá sido a contribuição essencial do Neo-realismo para a poesia: uma cura de prosa, aplicada aos excessos expressivistas herdados da tradição presencista, um exercício de contenção dos recursos poéticos. Mas isto não impedirá Eduardo Lourenço de considerar ter faltado genericamente ao neo-realismo “aquele apetite de total lucidez e profunda liberdade que é essência de toda a palavra poética” (241). 
Em 1952, Eduardo Lourenço publicou, num suplemento do jornal O Primeiro de Janeiro, um texto em que se insurgia contra a aplicação de um marxismo mecanicista na leitura da obra de Pessoa. Intitulado “Explicação pelo inferior ou a crítica sem classe contra Fernando Pessoa”, o texto em causa terminava com estas palavras: “há homens (houve sempre e pessoalmente desejamos que a sua raça estéril e altiva nunca acabe) que não são capazes de olhar até ao fim o espectáculo do mundo e da história dos homens lendo aí a palavra esperança. Homens do Inferno se acreditarmos em Dante. Fernando Pessoa talvez tivesse sido um deles. E por que não devia sê-lo?” (402). Este artigo foi publicado no final do ano de 52 (26 Novembro); sabemos que alguns meses antes tinha começado, entre João José Cochofel e António José Saraiva, uma tremenda polémica, cujas ondas de choque haviam de prolongar-se até 1954 estendendo-se a intervenções muito diversificadas. Cochofel defendera a prevalência da forma nos critérios de avaliação estética, independentemente de orientações ideológicas; Carlos de Oliveira, e outros secundá-lo-iam. Sem se inscrever directamente na polémica, o texto de Eduardo Lourenço acerca de Pessoa mostra bem qual era o Neo-realismo que lhe merecia solidariedade tanto geracional quanto oposicionista: aquele mais livre esteticamente falando, ou seja, o Neo-realismo que as muitas leituras retrospectivas agora reunidas neste livro também ajudaram a consolidar – como inequivocamente podemos verificar numa leitura seguida. 
“De certo modo”, escreve António Pedro Pita no texto introdutório, “a condição de possibilidade do próprio trabalho de Eduardo Lourenço reside no facto de a descoincidência do seu olhar com o olhar da História, por razões que relevam do filosófico, lhe permitir tematizar como problema aquilo mesmo que constitui, no âmbito dessa plataforma, as políticas em acto em busca de uma legitimação assente no reconhecimento da sua justeza e não derivada de um corpus doutrinário imposto a priori” (33). Este livro permite-nos acompanhar o papel de Eduardo Lourenço tanto na sua participação geracional ao lado dos jovens do Novo Cancioneiro quanto nas leituras coetâneas que foi fazendo do Neo-realismo, e ainda nas leituras retrospectivas que depois elaborou. Como ele mesmo defende, “o Neo-realismo é a expressão literária de qualquer coisa muito mais ambiciosa, muito mais importante” (379) do que o plano literário ou artístico, ou sequer cultural. Eduardo Lourenço recorre à palavra “galáxia”, diz que o Neo-realismo foi “o aparecimento em Portugal da galáxia marxista, da galáxia da cultura marxista”, capaz “de se determinar em relação praticamente a todos os temas da sociedade portuguesa” (379). E ao recordar o papel da colecção Novo Cancioneiro nos inícios da década de 40, pergunta: “Haveria nesse utopismo um excesso de ilusão, como o tempo o provou? Sem dúvida. Mas nos melhores, a crença num futuro menos inumano era vivida e sincera” (392). 
Vemos, ao longo deste volume, que, sem evitar a polémica e a discordância, Eduardo Lourenço manteve o diálogo com essa geração que, como também disse, “deu ao povo uma atenção e através dela, uma dignidade, se não um papel, até então raramente assumidos” (392) – uma geração que é a sua e que, com todas as diferenças de ideário que nunca deixou de afirmar, ele soube entender profundamente.




*O texto que agora se publica (por muito gentil oferta da Autora) foi apresentado por Rosa Maria Martelo na Sessão de Lançamento do II Volume das Obras Completas de Eduardo Lourenço, realizada no passado dia 5 de Novembro na Casa da Escrita em Coimbra.

[1] Eduardo Lourenço, “Sou um dissidente da minha geração”, entrevista conduzida por António Guerreiro, Relâmpago - Revista de Poesia , nº 22, Lisboa, Abril de 2008: 56.
[2] Ibid.
[3] Cf. Idem, “Uma literatura desenvolta ou os filhos de Álvaro de Campos”, O Canto do Signo – Existência e Literatura (1957-1993), Lisboa, Presença, 1993: 260-261. 

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Dentro e fora do Neo-Realismo

António Pedro Pita, Eduardo Lourenço e Manuel Carmelo Rosa (foto Ler Eduardo Lourenço)
«Quando cheguei à Faculdade de Letras em Coimbra, a minha formação literária era muito escassa, para não dizer nula. Como frequentara o Colégio Militar, tinha estudado sobretudo matérias das áreas científicas, pelo que poucos conhecimentos tinha daquilo a que se costuma chamar humanidades. Certo dia, levando um livro na mão quando entrava na Faculdade, fui interpelado por um colega nestes termos: 
- Ó pá, o que é que andas a ler? 
Mostrei-lhe o exemplar de Notre-Dame de Paris que andava a ler e disse: 
- É um romance… 
- Do Victor Hugo? Mas o Victor Hugo não é um verdadeiro romancista! 
Perguntei, algo supreso: 
- Então quem é um verdadeiro romancista? 
- Um verdadeiro romancista é o Eça de Queiroz, pá! 
 Assim que pude fui procurar livros deste verdadeiro romancista e lembro-me de ter lido logo O Crime do Padre Amaro. Ou não, o primeiro que li foi mesmo O Primo Basílio que ainda era “pior”…» 

Será Victor Hugo um verdadeiro romancista?
Foi mais ou menos assim (a citação é feita de cor...) que Eduardo Lourenço que, no seu deliciosamente inconfundível modo de contar estórias, se referiu à importância que teve para a sua formação literária e cultural o convívio com amigos como Carlos de Oliveira e outros nomes do chamado neo-realismo. Fê-lo durante uma sessão de apresentação (realizada ao fim da tarde da passada quinta-feira na Gulbenkian, em Lisboa) do II Volume das Obras Completas, precisamente intitulado O Sentido e a Forma da Poesia Neo-Realista e Outros Ensaios
A sessão, coordenada por Manuel Carmelo Rosa (responsável pelo Serviço de Edições da Gulbenkian), começara com uma esplêndida intervenção de António Pedro Pita, prefaciador deste volume, que mostrou, pormenorizadamente, de que forma Eduardo Lourenço esteve ao mesmo tempo fora e dentro do neo-realismo. Nesse contexto, lembrou como o livro Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista, que, apesar de escrito no início dessa década acabou por ser publicado apenas em 1968, ganha muito se for lido em diálogo com duas outras obras: Há uma estética neo-realista? de Mário Sacramento (saída nesse mesmo ano) e A Poesia da Presença e o Aparecimento do Neo-Realismo de Fernando Guimarães (editado no ano seguinte).

Mário Sacramento
Fernando Guimarães
 Se o estudo de Mário Sacramento é escrito a partir do interior do neo-realismo e o de Fernando Guimarães pode ser considerado um olhar a partir de fora, ambos os livros, tal como Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista, devem, segundo António Pedro Pita, ser interpretados como ensaios que, pela primeira vez, tomam o neo-realismo como objecto literário. O caso do livro de Eduardo Lourenço é ainda especial, porque foi escrito por alguém que, embora tenha convivido de perto com os membros do grupo do Novo Cancioneiro (chegou, por exemplo, a vender livros de poesia desta colecção, como acabou por confessar na sua intervenção), em rigor nunca partilhou o mesmo horizonte teórico dos seus camaradas. Mesmo que tenha sido com eles (e por causa deles) que se tenha iniciado nos fascinantes caminhos da literatura moderna, começando a ler verdadeiros romancistas
A intervenção de Eduardo Lourenço foi um claro desmentido da sua primeira frase na qual confessou: «Depois das magníficas apresentações que ouvi, esta de António Pedro Pita e aquela que a poetisa Rosa Maria Martelo fez na sessão de lançamento deste livro em Coimbra, nada mais tenho a dizer...». Mas a verdade é que tinha. E como sempre os privilegiados que estavam na sala souberam apreciar mais um momento singular e inesquecível.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

«Destroem-nos todos, Deus escolherá os seus...»*



*Excerto do programa Nas Nuvens do canal Q, transmitido a 1 de Agosto de 2014, no qual Nuno Artur Silva conversa com os seus convidados Nuno Costa Santos e ... Eduardo Lourenço, a pretexto da edição do livro Do Colonialismo como nosso Impensado (Gradiva) que chegou às bancas precisamente no Verão passado.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Casanova, John Malkovich e... Fanny Ardant!

Ler Eduardo Lourenço é obrigado a confessar-se permanentemente derrotado. A tarefa de reunir todos os textos de (ou atribuídos a) Eduardo Lourenço é sísifica, pois a todo o momento e oriundos das circunstâncias mais inesperadas surgem novos escritos que tornam qualquer lista inevitavelmente incompleta. É o caso daquela que os visitantes deste blog podem encontrar em http://www.eduardolourenco.uevora.pt/bibliografia.
Mas outra questão cruza-se com aquela: o que considerar como texto de Eduardo Lourenço, para além daqueles que vêm com a sua explícita assinatura? Uma declaração citada por outro autor é ainda texto de Eduardo Lourenço? Uma frase que lhe é atribuída pode, com exactidão irrefutável, fazer parte das suas obras completas?
A pretexto da estreia, na semana passada, do filme de Michael Sturminger Variações de Casanova, apresentam-se hoje aqui dois exemplos de textos com um estatuto, pelo menos, híbrido.
No sábado passado, numa página de publicidade do Diário de Notícias, aparece um cartaz do filme produzido por Paulo Branco (cujo trailer da versão americana a estrear já em 2015 se reproduz em baixo) e que vem acompanhado de vários depoimentos prestados por Jorge Vaz de Carvalho, Pilar del Río, António Bagão Félix, Rui Vieira Nery e... Eduardo Lourenço. É este último que a seguir se reproduz:
«Nunca vi um filme tão interessante com um enquadramento a partir da nossa Ópera [Teatro Nacional de S. Carlos]. As primeiras cenas são da entrada dos lisboetas para assistir a um espectáculo, a própria evocação do destino de Casanova. Já isto é uma coisa extraordinária, não só em si, mas pelo facto de uma das grandes realidades culturais do nosso país desde o século XVIII ser promovida, assim de repente, ao estatuto de um Sancarlo de Nápoles, ou de um La Scala, de Milão. Esteticamente é um filme que se impõe. Além do mais conta com um actor extraordinário. Penso que de todas as evocações que se fizeram do Casanova nenhuma foi tão profunda, tão provocante e tão shakesperiana como esta de John Malkovich.»
O tom desprendidamente coloquial do parágrafo faz supor que se trata da transcrição de um depoimento oral, mas a verdade é que, mesmo assim, constitui um comentário com inegável interesse, embora coloque, pelo menos, um problema de erudição académica: Como citar este texto? Será que a indicação da página 41 da edição de 6 de Dezembro de 2014 do Diário de Notícias reproduz uma informação cientificamente rigorosa? Pouco importa. Pelo menos este texto de Eduardo Lourenço desperta a curiosidade pelo filme de Sturminger, protagonizado por Malkovich e... Fanny Ardant.
Ainda que de modo indirecto, a actriz Fanny Ardant comparece curiosamente no segundo excerto que hoje aqui se reproduz e que, de resto, talvez ainda levante maiores dificuldades ao estudioso da obra de Eduardo Lourenço. Trata-se de uma citação de um escrito que Eduardo Prado Coelho terá publicado numa das suas crónicas jornalísticas e que a seguir se transcreve:
«Houve uma época em que, devido a um certo circuito de amizade, ia regularmente ao Frágil. Lembro-me de um dia ter levado ao Frágil o Eduardo Lourenço, que ficou atordoado com o barulho e a dificuldade em conversar. Apresentei-lhe a Paula Guedes e ele, confundindo-a com a crítica literária Estela Guedes, começou a falar de literatura. Quando dei pela confusão, gritei-lhe ao ouvido: “É a Paula Guedes”. E ele, percebendo “Manuela Moura Guedes”, mudou a conversa para a televisão. Voltei a gritar-lhe: “É a Paula Guedes, actriz”. Ao que ele me respondeu: “Então colocam-me uma Fanny Ardant à frente e querem que eu raciocine?”».
Ler Eduardo Lourenço não conseguiu até agora descortinar qual a data e o local em que este relato de Eduardo Prado Coelho foi dado à estampa. Resta-lhe assim agradecer à mão amiga e muito atenta que lhe fez chegar esta espécie de quase-texto de Eduardo Lourenço. E, já agora, como será adequado citá-lo? Pelo menos provisoriamente, talvez baste indicar apud facebook...

domingo, 7 de dezembro de 2014

Mário Soares: um pássaro livre*

Capa da edição francesa do livro-entrevista feito por Dominique Pouchin
1976
«Mário Soares é, em termos de teatro, o que os franceses chamam une rondeur. Ele mesmo, sob o aspecto humano, confirma esse diagnóstico que supõe gosto pelo agradável da vida, afabilidade, culto da amizade, instinto do contacto popular, amor do compromisso. Mas sob tal rondeur não é difícil descortinar um outro Mário Soares, um outro homem e um outro político. O homem é um homem de vontade forte, um homem de um propósito de que nada o fará desviar, inabalável sob as cedências de superfície e menos uomo qualqunque do que o deixa ver o seu auto-retrato bon enfant débonnaire. O político oculta sob a facilidade do abraço e a paixão democrática real, com a prática da conciliação e do compromisso que lhe são inerentes, uma consciência de missão e vocação políticas bem determinadas e resistentes. Não é «um cordeiro na pele de um cordeiro» como dizia Churchill do trabalhista Attlee. Justamente há [em Mário Soares] qualquer coisa de “churchilismo” no[seu] perfil humano e político(...). Uns encontrarão nisso motivo de esperança, outros de preocupação. Uma e outra fazem parte do nosso quotidiano político. No meio dele, maciço e dúctil, está o homem político Mário Soares. E nós com ele à espera que o homem político se torne no homem de Estado para que aponta toda a sua vida e sua recente vocação».
Ramalho Eanes, Maria Barroso e Mário Soares

1980
«Esta lamentável história Mário Soa­res-Eanes, é mais que absurda, é mera ficção. Quando muito, entre Mário Soares e Eanes o que está em causa não é uma autêntica e diferente visão política, social e económica da so­ciedade portuguesa (antes esti­vesse) mas apenas, uma diversa articulação formal do poder. Sobretudo, esteve. Porque, o mais escandaloso neste “pseu­do-escândalo”, que por mera máscara não deixa de consti­tuir uma séria ajuda para o triunfo sem limites da nova (?) direita, é que, hoje, até nesse plano, estão mais próximos do que nunca. A vida é assim, até a política. Os bons dramas que fazem os maus folhetins, são os familiares. Politicamente nada separa Eanes de Mário Soares, salvo que nada os separa. Mas como sentar dois homens na mesma cadeira, ao mesmo tem­po? Que fazer para que se sente primeiro um e depois outro?»
 Lourdes Pintasilgo e Mário Soares
1986
«Cada um se consola como pode e sabe. Após a vitória de Mário Soares – e o singular vale aqui o seu peso em outro – duas euforias de sinal oposto dominam a nossa nova atmosfera política. A esquerda julga que ganhou e a direita que não perdeu. Nestes termos, a 16 de Fevereiro não seria aquela tão apregoada data (pelo candidato Mário Soares) a partir da qual “nada seria como dantes”. Na realidade, o diagnóstico interessado do futuro Presidente da República, mau grado a persistência mítica da clivagem direita-esquerda, revelou-se exacto. Já nada é como antes do 16 de Fevereiro. Mas nada é, como os mais diversos e subtis analistas da nossa esquerda o proclamaram, diferente, no sentido anunciado por Mário Soares, quer dizer, como perspectiva nova, mais dinâmica, consensual e unitária, para a esquerda em geral e para o seu partido-charneira, quer dizer, para o Partido Socialista.
(...) Na sua verdade mais profunda, o sucesso de Mário Soares, enquanto mera não-derrota da antiesquerda, tal como era encarnada por Freitas do Amaral, não foi, nem podia ser interpretada, a nível “nenhum”, como uma vitória da esquerda. Para que tivesse havido essa vitória era necessário que houvesse antes a esquerda minimamente coerente de que essa vitória fosse a expressão. Toda a gente sabe que não há, e a ideia de nos fazer crer que existe agora, postumamente, à sombra de Mários Soares, é um projecto sem nenhum conteúdo sério, quer na ordem política, quer na económica, social ou cultural.»
Na Marinha Grande em campanha eleitoral
1994

«Mário Soares é democrata como quem respira. Nem o longo eclipse da liberdade o impediu de viver a opressão como excepcional e a Liberdade como regra. Se a fórmula não o ofendesse, pelas suas ressonâncias, é um democrata orgânico e por esta autêntica religião da Democracia rege a sua acção para o presente e aposta num futuro que tenha as caras do seu optimismo político e mesmo humano.
De algum modo tem sido esse optimismo, quase por contágio, que insensivelmente habituou a sociedade portuguesa a viver-se democraticamente. Talvez mais do que tudo pela sua maneira, tão pessoal, de “humanizar”, até nos limites do risco, o que ele sabe não ser, em última analise, huma­nizável: o Poder. Mas sob o Presidente, e coexistindo com “o animal político”, tão celebrado, qualquer [um] adivinha o antigo estu­dante rebelde, contestatário, o amoroso da vida, dos livros, da sublime desordem sem a qual a mais razoável das ordens, mesmo a da Democracia, é uma prisão.»
Retrato oficial por Júlio Pomar
1999 
«Mário Soares é, historicamente, a expressão e a versão mais con­sensual do ideal democrático trazido pela revolução de Abril. Ao longo deste quarto de século, à contre-coeur, a fina flor do antigo regime ou dos seus herdeiros, depois de se abrigar debaixo do seu vasto manto democrático, adoptou-o, ou tentou adoptá-lo a si. Era menos fácil do que julgava. Caiu do céu quando descobriu que o ex-Presidente da República não era tão “suprapartidário”, quer dizer, para ela, tão pouco “25 de Abril”, como sempre o desejou. Queria-o na gaiola dourada do suprapartidarismo, o círculo quadrado da Democracia. Daí o alvoroço de todos os gansos do Capitólio, nostálgicos do anti­go unanimismo. Em suma, todos quantos durante este quarto de século só aceitaram Abril como pesadelo provisório, senti­ram-se defraudados por esta escolha imprevisível e inconcebível, para eles, de Mário Soares. A idolatria e a vampirização do antigo autor do Portugal Amordaçado converteu-se, num ápice, em deploração e tristeza. Declaram que se diminuía, que perdia o estatuto “paternal” que reservam sempre ao símbolo da Pátria. Felizmente, Mário Soares é um pássaro livre. Nem cabe na gaiola portuguesa. E resolveu até levá-la para a Euro­pa, para que a Europa esteja um pouco mais perto de um Por­tugal onde, há 25 anos, apesar de todas as desilusões, aconte­ceu alguma coisa de que vale a pena lembrar-nos».
Com o pintor Júlio Pomar, companheiro de prisão durante quatro meses no forte de Caxias



* No dia em que Mário Soares completa noventa anos, Ler Eduardo Lourenço recupera excertos de cinco textos do ensaísta que ajudam a fazer o retrato do antigo Presidente da República que, para além disso, é uma das grandes figuras da política europeia da segunda metade do século XX. Apesar de nem sempre estarem de acordo politicamente (e de certo modo alguns dos trechos aqui escolhidos testemunham isso mesmo), Eduardo Lourenço e Mário Soares cultivam desde há muitos anos uma sólida amizade.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

1 de Dezembro de ... 1934: é a hora de Mensagem!*


Foto de Ler Eduardo Lourenço



N’importe où hors du monde.
Charles Baudelaire, Spleen de Paris.

Verdadeiramente, ele é o único poeta dos
seus poetas, o único cúmplice da sua poesia.
Luís de Montalvor, presença, 1936.

Tornou-se quase inevitável comparar o Poema que há quatro séculos Camões consagrou à aventura marítima e imperial portuguesa àquele que Fernando Pessoa imaginou para encarnar nele o sonho de um enigmático Quinto Império. A tentação de aproximar Mensagem de Os Lusíadas é tanto mais irresistível quanto é sabido que Pessoa nunca escondeu o seu desejo de suplantar Camões e o seu Poema – um e outro símbolos e expressão da imagem sacralizada de Portugal e do seu papel medianeiro na história do mundo – por uma outra visão do nosso destino, ao mesmo tempo mais profunda e mais universal. 
Decerto, a epopeia nacional, enquanto espelho sublimado da nossa aventura numa dada época, não perdia por isso o seu estatuto mítico. As oitavas camonianas continuariam a celebrar no espaço sem morte do Poema incomparável, os nossos feitos marítimos e guerreiros de romanos do século XVI, tais como Camões os tinha vivido e posto em cena. Contudo, já no tempo da sua escrita Os Lusíadas relevavam mais da memória que do eco transfigurado do presente. Com o tempo, a epopeia tornou-se memorial e o Portugal nela evocado um fantasma que nos roubava o presente e impedia que déssemos ao futuro as cores de um sonho que não fosse apenas o de um povo no tempo, mas o do tempo de um povo assimilado à Humanidade inteira. Esta conversão de uma mitologia, filha da História e nela sepultada, em visão transcendente de um Império puramente espiritual, de que os avatares do destino português teriam sido apenas o anúncio e a versão empírica e temporal, encontrou a sua expressão acabada, precisamente, em Mensagem
Único livro de poemas em português publicado em vida, um ano antes da sua morte, como se fora um testamento, Mensagem atraiu sobre Fernando Pessoa os primeiros aplausos ambíguos, cujo eco não se extinguiu ainda. Aplausos muito diversos dos que já então, mas sobretudo mais tarde, não serão regateados à restante obra do Poeta e, em particular, àquela que ele mesmo colocou sob o signo da Heteronímia. Tomada de imediato como uma espécie de Bíblia do nacionalismo poético, apesar do seu misticismo obscuro, Mensagem tornar-se-á, rapidamente um livro quase “popular”. O tempo português de então, a Hora, como, em termos misteriosos, o próprio Poeta o evocava, prestava-se à celebração da “alma nacional”, e foi nessa conjuntura unanimista que, num primeiro momento, Mensagem pareceu fundir-se. O livro do Enigma, relevando mais da filosofia ou da teologia da História que da peripécia e da encantação patrióticas, entrará sem pena no paraíso das selectas escolares. Honroso destino, se isso não significasse deixar à porta a sua “mensagem” indecifrada e, porventura, indecifrável. 
Em sentido oposto e, em parte, devido a essa confiscação “patriótica” do Poema, muitos dos que admiravam Pessoa como o mago que alterara a nossa paisagem lírica, ao mesmo tempo que a nossa visão do mundo, prestaram pouca atenção a um livro, na aparência alheio ao espírito donde procediam poemas tão obviamente inovadores e perturbantes como a “Ode Marítima” ou “Tabacaria”. Livro de um outro futuro, Mensagem teria que esperar uma leitura mais adequada ao seu mistério e à sua intrínseca estranheza – tanto no fundo como na forma – de um outro tempo mais propício e aberto porque igualmente mais complexo e estranho. Esses admiradores não ignoraram que o insólito autor de Mensagem era “vários poetas”, uma “nação”, como ele mesmo se definia. Mas era-lhes difícil aceitar que entre os vários poetas que Pessoa era houvesse algum pronto a assumir a máscara inquietante do nacionalismo, mesmo sob a espécie “mística” que o poeta mencionara para que ninguém confundisse a sua visão com a vulgar apologia do “nacional”. Nessa época, não era fácil compreender que se Mensagem parecia destoar no meio da obra conhecida de Fernando Pessoa, ela se situava, exactamente, no centro (indefinidamente descentrado), do que, com felicidade, foi designado como a sua galáxia poética.
Meio século após a sua publicação, Mensagem, que se tornou o poema-epónimo de Pessoa, conserva ainda o seu estatuto singular no conjunto ontologicamente dilacerado da sua obra. O que mudou foi o estatuto da sua “estranheza”. Hoje ela faz parte da estranheza, por assim dizer, conatural, à poesia de Pessoa, intrinsecamente dilacerada entre o sentimento da total Irrealidade da existência e o sentimento – quase a sensação – da realidade de uma Existência-outra que só o símbolo e o mito podem configurar. Ou talvez melhor, de que só o símbolo e o mito são a configuração.
Acontece, todavia, que Mensagem parece situar-se ao lado e, sobretudo, fora desse horizonte de Ausência como fala radical de ser, essência da poética da solitude tão característica de Pessoa, tanto como do horizonte ou da visão de ordem “transcendente”, que impregna a sua poesia de inspiração gnóstica ou ocultista. Na realidade, o poema Mensagem não só associa as duas poéticas, a da Ausência e da Ultra-Presença, como as leva ao seu limite até as interverter. Daí o carácter não só perturbante mas paradoxal de tão estranha “epopeia”, se o poema merece esse nome.
Na sua aparência, Mensagem celebra, relendo-os na luz espectral do sonho que cada um encarnou, os heróis-mitos da nossa História que ao longo do tempo prefiguraram o único Herói futuro, restaurador do nosso império perdido nos areais da África, em Alcácer-Quibir. Mas o que nós escutamos no Poema como apologia e promessa de um futuro reino só suscita esse fervor pela força com que através dessa apologia a evidência da realidade e da história são recusadas. A “mensagem” dirige-se ao Dia, mas é da Noite que ela recebe a música desencantada que a acompanha. Em Fernando Pessoa tudo acontece duas vezes, uma à direita e outra às avessas. Mensagem repete, mas desta vez sem ironia, o duplo jogo sem saída da consciência oscilando sem fim entre a realidade e o sonho. Mas, em Mensagem, esse movimento pende – podemos dizer, imobiliza-se – ­inteiramente para o lado do Sonho. Só os sonhadores, os loucos, os mártires da realidade, cujo paradigma é D. Sebastião, figura central do Poema e símbolo do Quinto Império, merecem louvor, pois só eles sabem que la vraie vie est ailleurs. Algures, mas no algures desta vida, transcendendo-a de dentro por essa forma de heroísmo “oposto ao mundo” a que Pessoa se referiu. Como D. Sebastião, eles não ficaram soterrados sob as areias da realidade, mas ocultados, adormecidos, à espera de regressar ao que eram e jamais deixaram de ser. Como os iniciados – e Mensagem é, antes de tudo, poema iniciático – os anunciadores, os neófitos do Quinto império não têm morte:

Louco, sim, louco, porque quiz grandeza
Qual a sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Porisso onde o areal está
ficou meu ser que houve, não o que há.

Em nome do sonho, e de um reino do espírito, ao abrigo do furor e do barulho da História, mas sobretudo da intolerância que rouba à alma o Deus que só ela pode conceber, Pessoa reveste-se dos poderes do Mago, do Profeta e do Messias que sob outras máscaras o apavoravam. Nesse sonho visionário jogava-se algo de mais decisivo que o seu mero destino de poeta: o sentido mítico e místico da sua vida figurado e confundido com o destino de um povo “crístico” que como o Salvador não deveu a sua eleição senão ao sofrimento e à humilhação com que Deus, enigmaticamente, o distinguiu:

Os Deuses vendem quando dão.
Compra-se a gloria com desgraça.
Ai dos felizes, porque são
Só o que passa!
…………………………………..

Foi com desgraça e com vileza,
Que Deus ao Christo definiu:
Assim o oppoz à Natureza
e Filho o ungiu.

No Livro do Desassossego, Pessoa pintou-se naquele tom de ironia secretamente melancólica que lhe é próprio, como sonhador e nada mais. Queria para si o exclusivo do sofrimento ou do êxtase puro de sonhar e de se sonhar. Nenhum dos seus sonhos se lhe impôs com mais premência do que aquele de que Mensagem é, ao mesmo tempo, a via e o Graal. Esse sonho é menos o de uma pátria mítica, fora do tempo e do espaço, de um Império do espírito e da alma, requeridos pela transcensão dos impérios da realidade e da História (Grécia, Roma, Cristandade, Europa) que o sonho de si mesmo como uma pátria, uma morada terrestremente celeste ou celestemente terrestre. Aí se transfiguraria a ferida, a angústia, a perdição sem nome que nós chamamos a vida, a vida real, e que ele ressentiu com acuidade demente. Como O Marinheiro, seu duplo, Pessoa desejou construir, pelo simples poder do sonho, uma pátria desde sempre perdida. Em parte alguma a construiu, pois a sua poesia é por essência a não morada ou a morada aberta a todos os ventos da inquietude ou da ilusão de si mesma consciente. Mesmo a casa na colina, a mansão do pastor da realidade, Alberto Caeiro, é apenas o sonho dessa morada sonhada. Só com Mensagem, porque subtraída à esfera da realidade, inscrita no círculo do Mito e como ele naturalmente intemporal, Fernando Pessoa construiu – ou reconstruiu – a sua morada perfeita como horizonte de todas as suas aspirações de poeta do labirinto da vida e de português sem mais pátria do que aquela que no poema rememora a antiga glória e espera do futuro a sua ressurreição. E, como era de esperar, ele mesmo se instalou no coração desse Império fora de alcance, quinto na sucessão misteriosa dos impérios e o único no seu sonho de deus de si mesmo. 
Mais uma vez, como se fosse um imperativo do nosso imaginário de povo lírico, o poeta se confunde, mesmo sob o manto da epopeia, com o objecto do seu canto. Já Camões implicara e confundira o destino heróico e trágico da sua pátria, no auge da sua glória, com o seu próprio destino. Pessoa, arquitecto do Templo mítico que devia substituir a ausência dessa pátria gloriosa, escondeu-se e expôs-se na trama do poema sob a figura de D. Fernando, príncipe e mártir do nosso sonho abortado. O poema que lhe é consagrado, em Mensagem, foi o primeiro anúncio e, na verdade, a “pedra”, em torno da qual será erguido o “Templo” da nova Revelação. Acontece, porém, que esse texto fundador se chamava, na sua versão inicial, “Gladio“ e que o seu destinatário ou referente ideal não era o príncipe que os Portugueses chamam o Infante Santo, exemplo de fidelidade à sua pátria e arauto da Fé Católica, mas o próprio Poeta, investido no seu papel messiânico, e escolhido por Deus para conduzir a sua “santa guerra”. A guerra de Deus contra o desmentido da realidade, o triunfo do sonho sobre a morte dos sonhos. O Quinto Império não tem outra substância que a desse desafio, essa loucura assumida de atravessar incólume a linha imaginária que separa a vida que morre da vida sem fim. Envolto nessa loucura morreu D. Sebastião. Para simplesmente viver dela se revestiu, com luminosa cegueira, o Sebastião de si mesmo que nós chamamos Fernando Pessoa:



Deu-me Deus o seu gladio, porque eu faça
A sua santa guerra.
Sagrou-me seu em honra e em desgraça,
Às horas em que um frio vento passa
Por sobre a fria terra.
……………………………………………….

E eu vou, e a luz do gladio erguido dá
Em minha face calma.
Cheio de Deus, não temo o que virá,
Pois, venha o que vier, nunca será
Maior do que a minha alma.

 
*Comemoram-se hoje oitenta anos da edição do único livro que Fernando Pessoa publicou em vida. Assinalando a efeméride, Ler Eduardo Lourenço recupera “Sonho de Império e Império de Sonho”, um texto magnífico do ensaísta que serviu de prefácio a uma edição crítica, coordenada por José Augusto Seabra, de Mensagem-Poemas Esotéricos em 1993.