Nuno Júdice |
Muitas vezes estive com Eduardo Lourenço e o ouvi intervir, desde os mais solenes púlpitos de salões ou anfiteatros, como foi o caso da abertura da feira de Frankfurt dedicada a Portugal, até intervenções para grupos de ouvintes que o vinham escutar, por vezes em condições difíceis – lembro-me do frio que fazia num salão do livro em Nápoles. E sempre, nuns ou noutros casos, Eduardo se entregava ao que lhe tinham pedido, o que permitia ver como o fio do pensamento se desenrolava à nossa frente com a sequência e a lógica que ele ia encontrando para nos deslumbrar com pequenas frases que, de súbito, sintetizavam todo o raciocínio em fórmulas definitivas, de onde arrancava para um novo pensamento. Às vezes não era fácil chegar a esse momento em que tudo surgia com essa naturalidade, como quando se entra numa sala fechada e se procura onde está a janela para que a luz entre; mas sabíamos, mesmo quando é necessário esperar alguns momentos no início da sua intervenção, que essa luz vai chegar, o que só torna mais fascinante ouvi-lo nessa luta em busca da fluência que faz, muitas vezes, de cada fala sua um acto de criação. Mas o que se passa nesses actos públicos torna-se mais fascinante ainda para quem o conhece, e com ele convive; e vemos como não há diferença entre o Eduardo Lourenço de uma conversa no quotidiano de amigos ou o ensaísta que se dirige a uma qualquer plateia de ouvintes. E um privilégio é ter estado com ele em ocasiões em que gostaríamos de ter um gravador para fixar os diálogos que o tempo fez esquecer, como foi tantas vezes o caso em que o acompanhei mas de que lembro, em particular, essa ida a Nápoles com José Saramago ou, em Segóvia, num encontro também com Saramago e em que estava igualmente José Cardoso Pires. Mas o que fazia mais apaixonantes essas conversas era quando o companheiro estava noutra área da filosofia ou da política, como no caso de Saramago: e essas discussões em que duas leituras do mundo se confrontavam, sem nunca ultrapassar o plano de uma luta de ideias por muito apaixonado e por vezes provocatório que fosse Saramago, constituíam sempre o debate mais estimulante em que o génio surgia muitas vezes de quase nada. Lourenço é um dos grandes da nossa cultura, que bem precisa dele para pensar com lucidez o absurdo em que muitas vezes a realidade parece afundar-se.
* Nuno Júdice. Professor da Universidade Nova de Lisboa. Escritor. Vencedor do Premio Reina Sofia de Poesia Ibero-Americana 2013.
Texto inédito gentilmente enviado pelo Autor para Ler Eduardo Lourenço.