João Martins Pereira |
I
Aflige-me ver a sociedade portuguesa estirada no divã.
Admito que o defeito seja meu, já que sempre resisti a essa postura e a não
desejei nem ao meu pior inimigo. Talvez que, por ser dela uma ínfima partícula,
eu me recuse inconscientemente a que, ao desvendar os seus traumas,
recalcamentos e complexos vários, a dita sociedade venha de algum modo a
revelar a parte que neles possa ser imputável aos Édipos sucessivos que, ate ao
meu próprio, me terão vindo a constituir em cidadão ancestralmente responsável
pela crítica situação a que chegámos. Tanto mais que, no que me toca, consegui
– melhor ou pior – ultrapassar até hoje as minhas «dificuldades» sem descer às
profundezas da primeira infância, com resultados afinal satisfatórios e bem
menor desembolso (o que também conta, nos tempos que vão correndo...). Isto
para dizer que, ainda que eu pensasse – e não penso – que a «sociedade
portuguesa» deva ser assimilada a um indivíduo com problemas psíquicos, me não
pareceria indispensável como terapêutica o desnudamento do que irá ou não irá
pelo seu «inconsciente colectivo».
(...) Vêm estas considerações a propósito do facto de que o mais brilhante livro sobre a sociedade portuguesa publicado nos últimos anos (O Labirinto da Saudade de Eduardo Lourenço) justamente sustenta no essencial a necessidade de uma psicanálise da sociedade e do destino portugueses. Abordagem intelectualmente saborosa, se não mesmo fascinante, julgo que não pode responder aos desígnios do Autor que se fundam na dramática hipótese de que não podemos saber o que «somos» sem primeiro saber o que «fomos», ou por outras palavras, que o nosso mal tem sido o de nos preocuparmos mais com o «viver» do que com o «compreender». E por «compreender» entende-se trazer ao nível da consciência os «conflitos» que jazem recalcados no «nosso inconsciente colectivo».
II
23 de Fevereiro – Noto que a descrição que faz Eduardo Lourenço (no seu recente artigo pró-Pintasilgo) do comportamento dos políticos partidários que fingem não dar importância às próximas eleições presidenciais, não pensando noutra coisa, é uma excelente ilustração daquilo a que chamei “falsos avestruzes”.
*João Martins Pereira (Lisboa, 1932-2008). Economista, Professor Universitário e Escritor.
Os texto que aqui se reproduzem foram inicialmente publicados em No Reino dos Falsos Avestruzes.Um olhar sobre a Política, Lisboa, A Regra do jogo, 1983, pp. 15-17 e em O Dito e o Feito. Cadernos 1984-1987, Lisboa, Salamandra, 1989, p. 51.