11-Julho (sexta) [1969]
Hoje o Eduardo Lourenço foi-se cá de casa. Complicações da instalação forçaram à saída. Mas é possível que ainda volte. Entretanto, em quatro dias de convívio pude acertar algumas ideias sobre ele. As relações culturais, mesmo as epistolares, nada nos dizem, ou pouco, sobre uma pessoa: são construídas, duram o tempo que durar uma carta. São planos diferentes, mesmo no referente à linguagem. O que se escreve é diferente do que se diz, mesmo que se diga exactamente o mesmo. A pessoa real do Lourenço, como a de todos, intromete as suas erratas à pessoa epistolográfica. Para pior ou para melhor? Nele, para complemento. Para mim, jamais, creio, engrenarei bem num convívio decente seja com quem for. Tendências para «urso». Pude, pois, ajuizar um pouco melhor de quem é ou o que é o E. Lourenço. É uma pessoa que faz da conversa um motivo interessante ou superior de viver uma vida activa na superfície convivente. Compreendo agora porque é problemático que ele realize uma obra. E que pena. Ninguém como ele está preparado para o fazer. Mas o demónio da tentação instala-se-lhe é no caso imediato, na reacção circunstancial, não na meditação longa, paciente, de um problema e na expressão demorada disso e a porta fechada com duas voltas, à chave. Assim me pergunto se ele terá um problema, isto é, uma obsessão cultural, uma questão que o mobilize todo. Brilhante de inteligência e cultura, com uma memória pronta e educada no pronto dizer e relacionar, ele incorre no juízo emitido por ele mesmo sobre Sérgio (e que é o meu, como em carta lhe disse) a saber que E. Lourenço, muito na dependência dos outros – de quem não precisa –, vai realizando uma vida de comentarista desses outros, esquecendo-se de se interrogar a si. Excelente o seu ensaio sobre Sérgio. Falta-lhe, para meu gosto, a incisiva anotação de que o racionalismo é uma forma extremamente limitativa, já que passa em salvo o sector mais vasto da vida (ele o diz, mas pouco acentuadamente) e sobretudo a anotação de que esse racionalismo, pretendendo superar o subjectivismo, é uma sua expressão flagrante, na escolha dele como visão do mundo.
*Vergílio Ferreira (Melo, 1916 - Lisboa, 1996), escritor.
O texto que aqui se reproduz foi publicado inicialmente em Conta Corrente I, Lisboa, Livraria Bertrand, [1980?], pp. 51-52.
Hoje o Eduardo Lourenço foi-se cá de casa. Complicações da instalação forçaram à saída. Mas é possível que ainda volte. Entretanto, em quatro dias de convívio pude acertar algumas ideias sobre ele. As relações culturais, mesmo as epistolares, nada nos dizem, ou pouco, sobre uma pessoa: são construídas, duram o tempo que durar uma carta. São planos diferentes, mesmo no referente à linguagem. O que se escreve é diferente do que se diz, mesmo que se diga exactamente o mesmo. A pessoa real do Lourenço, como a de todos, intromete as suas erratas à pessoa epistolográfica. Para pior ou para melhor? Nele, para complemento. Para mim, jamais, creio, engrenarei bem num convívio decente seja com quem for. Tendências para «urso». Pude, pois, ajuizar um pouco melhor de quem é ou o que é o E. Lourenço. É uma pessoa que faz da conversa um motivo interessante ou superior de viver uma vida activa na superfície convivente. Compreendo agora porque é problemático que ele realize uma obra. E que pena. Ninguém como ele está preparado para o fazer. Mas o demónio da tentação instala-se-lhe é no caso imediato, na reacção circunstancial, não na meditação longa, paciente, de um problema e na expressão demorada disso e a porta fechada com duas voltas, à chave. Assim me pergunto se ele terá um problema, isto é, uma obsessão cultural, uma questão que o mobilize todo. Brilhante de inteligência e cultura, com uma memória pronta e educada no pronto dizer e relacionar, ele incorre no juízo emitido por ele mesmo sobre Sérgio (e que é o meu, como em carta lhe disse) a saber que E. Lourenço, muito na dependência dos outros – de quem não precisa –, vai realizando uma vida de comentarista desses outros, esquecendo-se de se interrogar a si. Excelente o seu ensaio sobre Sérgio. Falta-lhe, para meu gosto, a incisiva anotação de que o racionalismo é uma forma extremamente limitativa, já que passa em salvo o sector mais vasto da vida (ele o diz, mas pouco acentuadamente) e sobretudo a anotação de que esse racionalismo, pretendendo superar o subjectivismo, é uma sua expressão flagrante, na escolha dele como visão do mundo.
*Vergílio Ferreira (Melo, 1916 - Lisboa, 1996), escritor.
O texto que aqui se reproduz foi publicado inicialmente em Conta Corrente I, Lisboa, Livraria Bertrand, [1980?], pp. 51-52.