sexta-feira, 24 de maio de 2013

Pensar Nove Décadas de Amizade (nº 68): Silvério Rocha Cunha*



Selo comemorativo do centenário de Theodor Adorno, Alemanha, 2003

Lá por 1978, aluno na Faculdade de Direito de Coimbra, alternava o estudo dos calhamaços de direito processual civil e direito comercial com cafés inspiradores na Praça da República. Mas tudo cansa e, então, passei a frequentar algumas conferências que decorriam, ou em anfiteatros da Faculdade de Letras, ou no Museu Machado de Castro. Passaram por lá, por exemplo e entre outros, Jorge de Sena e David Mourão-Ferreira.
Um dia, fui ouvir José Augusto Seabra dissertar sobre as possibilidades de uma estética marxista. Na verdade, nada sabia do assunto, mas o conferencista era uma personalidade pública o bastante para atrair as atenções.
Nessa conferência, que ocorreu num dos anfiteatros da Faculdade de Letras, José Augusto Seabra centrou-se na Teoria Estética de Adorno. Percebi um certo desconforto na assistência de umas largas dezenas de pessoas. Creio, hoje, que tal se ficou a dever, em parte, ao facto de a Teoria Crítica não ser, na época, muito popular entre os nossos intelectuais, além de esta volumosa obra de Adorno (então ainda não traduzida) ser muito compacta e bem exemplificativa do pensamento “negativo” do eminente pensador germânico.
Após a intervenção inicial de Seabra, no momento em que deveria iniciar-se o momento de diálogo, verificou-se um facto de algum modo insólito: a conferência como se “reiniciou” graças à intervenção de Eduardo Lourenço que, por razões que desconheço, assistia ao evento. Começando por interpelar o autor da palestra, num diálogo que verifiquei ser amistoso e intersubjetivo, Eduardo Lourenço repassou todos os tópicos examinados por Seabra (que assistia, deliciado) e proferiu uma outra conferência, entrecortada por uma que outra observação do conferencista, com inúmeras referências literárias e culturais, num discurso a um tempo elevado e enlevado, erudito e entusiasmado, crítico sem nunca esquecer as pontes, colhendo os mais difíceis conceitos (para leigos como eu) e, num toque de quase prestidigitação, os transformar em ideias acessíveis. E lembro-me de, em certo momento, agarrar num dos muitos recipientes de vidro que continham iogurte e serviam, depois de consumido o conteúdo e lavados, como cinzeiros nos anfiteatros e bares universitários, para explicar, com ele na mão, e em tom alegre, como “isto é, hoje, cultura!”. Saí mais encantado com as respostas enigmáticas do mundo.



*Silvério Rocha Cunha 
Director da Escola de Ciências Sociais  da Universidade de Évora 
Texto inédito gentilmente enviado pelo Autor para Ler Eduardo Lourenço.