quarta-feira, 29 de maio de 2013

Pensar Nove Décadas de Amizade (nº 90): João Tiago Lima*

 João Tiago Lima e Eduardo Lourenço
(Universidade de Évora, Dezembro de 2011, foto de João Barnabé)

Os Muitos Amigos de Eduardo Lourenço gostam de falar da sua curiosidade e generosidade quase infinitas. Com a reduzida legitimidade de quem apenas o conheceu pessoalmente já em pleno século XXI, julgo ser possível acrescentar a essas duas pelo menos uma terceira característica. Trata-se da inversão quase permanente da velha máxima latina que Hobbes terá mais tarde feito sua: primum vivere, deinde philosophare. Se acredito que esse traço da sua riquíssima personalidade nem sempre facilita a sua  vida de todos os dias, a verdade é que tal qualidade faz com que as suas conversas muitas vezes se transformem em inesperadas e magníficas lições de filosofia.
Um entre tantos outros exemplos possíveis e com a ressalva prévia de que possa estar a contaminar recordações de vários encontros: após uma conferência na Universidade Nova de Lisboa sobre o existencialismo, partilhámos um, para mim, não menos memorável lanche. Consulto os meus arquivos e registo a data: dezoito de Janeiro de 2002. Enquanto bebe qualquer coisa que substitua a Coca Cola desaconselhada pelos médicos, o Professor conversa comigo no seu jeito de pensar jazzísticamente, um pouco como se estivesse ainda a responder a perguntas vindas do público presente na palestra. Fá-lo abrindo o seu velhinho exemplar da tradução francesa da Carta sobre o Humanismo de Heidegger. E, com uma divertida perplexidade que não deixa de exibir alguma impaciência, insurge-se contra aqueles que acusam de excessiva opacidade o discurso heideggeriano. Traduz algumas passagens em voz alta e declara: «Mas é um texto claríssimo!». Pergunto-lhe se alguma vez viu ao vivo o filósofo da Floresta Negra e o Professor evoca uma conferência a que assistiu no sul de França (quando trabalhava em Montpellier, ou seja, em 1952-53), bem como a fortíssima impressão aí causada pelo autor de Ser e Tempo. «Era como se viajássemos no tempo e estivéssemos a ouvir alguém da dimensão de um Aristóteles, por exemplo».
A conversa flui por entre personagens como Foucault ou Mourinho, Amália ou Joaquim de Carvalho e, no momento em que pagamos a  conta, o empregado do café refere-se às novas moedas que o euro tinha então posto a circular. Perante o olhar incrédulo mas atento do novo participante na conversa, Eduardo Lourenço desenvolve um breve e acutilante ensaio sobre a essencial distracção que temos acerca de nós mesmos. Cito de cor: «Como é possível que um país, tão obsessivamente preocupado com a imagem que, lá fora, os outros têm de nós, possa escolher para a face do euro que nos distingue dos outros Estados da União Europeia as imagens mais anódinas e anónimas que se poderiam conceber? Admitindo que alguém tenha decidido esta questão (o que não é certo), deve ter achado que era um assunto que dizia respeito apenas a banqueiros e por isso…».

* João Tiago Lima, Professor e Investigador da Universidade de Évora.
Membro  da Comissão Científica da edição das Obras Completas de Eduardo Lourenço.
Coordenador do blog Ler Eduardo Lourenço