Como se sabe, há afirmações que
podem ter mais do que uma leitura. Quando se diz que Eduardo Prado Coelho é um
dos primeiros leitores de Eduardo
Lourenço, a frase pode pelo menos querer significar duas teses. Pode traduzir
um juízo factual ou objectivo: Eduardo Prado Coelho é uma das pessoas que mais
cedo começou a ler o autor de O Espelho
Imaginário e dessas leituras deu
quase imediato testemunho nítido através das recensões críticas dedicadas a
livros como Sentido e Forma da Poesia
Neo-realista ou Heterodoxia II e
publicadas logo nos finais dos anos Sessenta. Mas a frase pode também expressar
um juízo valorativo, se visar conferir à expressão um dos primeiros o
sentido seguinte: um dos principais, mais importantes ou até melhores leitores
de Eduardo Lourenço. Neste segundo caso, a tese é evidentemente discutível,
embora haja fortes motivos para a tomarmos como válida.
Ora, num dos muitos textos que
dedica à especificidade do ensaísmo de Eduardo Lourenço, Eduardo Prado Coelho
fala no que chama um princípio de amizade, que, do seu ponto de vista,
caracteriza a escrita do autor de Pessoa
Revisitado. E explica melhor o que significa esse princípio: «não pretendo dizer que ele elogia os seus
amigos (o que certamente lhe acontece, e ainda bem), mas precisamente outra
coisa: que ele se aproxima sempre de uma obra literária, seja ela de quem for, como
se a amizade fosse a forma privilegiada do conhecimento». Talvez não haja exemplo tão claro da
ilustração desse princípio de amizade praticado por Eduardo Lourenço
como quando escreve sobre o pintor Mário Botas (Nazaré, 1952 – Lisboa, 1983). A
leitura do extraordinário ensaio “Mário Botas ou a pintura como poesia”,
inserido na segunda edição de O Espelho
Imaginário, bastará decerto para confirmar esta hipótese. Por exemplo, é aí que encontramos a fabulosa expressão que serve de título a estas linhas: os sonhos de um estrangeiro na própria casa. Nela ecoa a inapagável marca pessoana, referência decisiva quer em Eduardo Lourenço, quer em Mário Botas.
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A capa de Fernando Rei da Nossa Baviera foi feita a partir de uma pintura de Mário Botas, a quem é dedicado o ensaio que abre o livro e que tem o mesmo título. A paixão pela obra de Fernando Pessoa é um dos elementos que desde sempre aproximou Eduardo Lourenço e Mário Botas. |
De Mário Botas, figura
injustamente caída num certo esquecimento, acaba de chegar às livrarias (embora com a data de 2012), numa
corajosa edição da Averno, o volume Aventuras de um crâneo e outros textos.
Trata-se de um excelente documento não apenas pela sua beleza gráfica, como
pelo valioso conjunto de textos e informações sobre a vida e a obra de Mário
Botas, trágica e prematuramente interrompidas com a sua morte. Nesse conjunto
de escritos destacam-se três cartas dirigidas a Eduardo Lourenço e que se
encontram no espólio do ensaísta. Duas delas, datadas de 18 de Setembro de 1979
e de 4 de Outubro de 1979, tinham sido já publicadas em Colóquio-Letras (nº 171, Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian, Maio de 2009, pp. 415-418), mas a terceira que,
neste caso, se trata em rigor da primeira (foi escrita com a data de 1 de Maio de
1977) permanecera até agora inédita. É uma carta belíssima e mostra como a
amizade entre Eduardo Lourenço e Mário Botas não se pode dissociar da recíproca
admiração das respectivas obras. Mas Aventuras
de um crâneo tem muitos outros motivos de interesse e por isso a sua
leitura afigura-se imprescindível.
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Mário Botas fotografando Eduardo Lourenço em Vence (imagem retirada de Tempos de Eduardo Lourenço. Fotobiografia, Campo das Letras, 2003) |
Ler Eduardo Lourenço teve o privilégio de ser recebido pelo
ensaísta há algumas semanas em Vence. Foi uma tarde inesquecível na qual, uma vez
mais, Eduardo Lourenço deu provas da sua generosidade e simpatia infatigáveis.
Assim, para além da visita à famosa Chapelle du Rosaire, uma criação
esplendorosa de Henri Matisse, e
da ida a uma impressionante exposição de Marc Chagall no Museu de Vence
(e que prazer
insubstituível é ouvir os comentários de Eduardo Lourenço que, sempre em
passo apressado, percorreu as várias salas do museu), houve lugar a uma
emocionada evocação de … Mário Botas, pintor que, tal como Matisse e
Chagall,
também passou por esta cité des artistes.
À passagem pela célebre fonte que recebe quem se prepara para entrar na zona
amuralhada de Vence, Eduardo Lourenço exclamou: «O meu Amigo Mário Botas tirou-me uma vez
uma fotografia junto a esta fonte!»
E, assim, de uma certa forma, se revisitou a hospitalidade de alguém que, muitas vezes, também se parece sentir um estrangeiro na sua própria casa.
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Eduardo Lourenço em foto de Mário Botas (imagem retirada de Tempos de Eduardo Lourenço. Fotobiografia, Campo das Letras, 2003) |
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Eduardo Lourenço em Vence no passado dia 29 de Agosto. Foto de Ler Eduardo Lourenço |