por Rosa Maria Martelo
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Rosa Maria Martelo |
O segundo volume das Obras Completas de Eduardo Lourenço abre com os ensaios de Sentido e Forma da Poesia Neo-realista, livro que, vindo a público em 1968, identificava divergências significativas entre as elaborações teóricas da poética neo-realista e as realizações concretas de alguns dos melhores poetas do movimento. Com esta escolha fica dado o tom geral do volume, já que a leitura heterodoxa então proposta vai ecoar nos textos recolhidos na “Segunda Parte”, intitulada “Outros Ensaios”, na qual encontraremos, por esta ordem: uma selecção de textos publicados entre 1944 e 1948, maioritariamente na revista Vértice; vários estudos dedicados a Fernando Namora; e reflexões que, distribuídas pelos capítulos “Memória de Vértice”, “Cultura e Comunismo”, nos dão, no seu conjunto, o olhar absolutamente singular de Eduardo Lourenço sobre o Neo-realismo, um olhar ao mesmo tempo solidário e criticamente distanciado, capaz de cruzar distância reflexiva e empatia geracional. De referir, por fim, a secção “À Margem”, que inclui um testemunho de Raul Gomes (datado de 1982) acerca da história da revista Vértice. Com esta inclusão, e como é lembrado na informação “Sobre os textos deste volume”, Eduardo Lourenço quis homenagear “a memória do Amigo e Companheiro” dos tempos de Coimbra (484).
Cronologicamente, o segundo volume das Obras Completas recua ao primeiro encontro coimbrão de Eduardo Lourenço com algumas das figuras mais emblemáticas do movimento então em formação – Joaquim Namorado, João José Cochofel, Carlos de Oliveira, Raul Gomes, Rui Feijó, entre outros –, tempo do qual são recuperadas publicações muito pouco conhecidas, incluindo um conto e um poema, e alarga-se até às muitas leituras retrospectivas pelas quais Eduardo Lourenço contribuiu decisivamente para evidenciar a complexidade e a diversidade do Neo-realismo. Deste modo, permite-nos ler, de forma conjunta e articulada, textos que foram fundamentais na aferição do papel do Neo-realismo enquanto movimento invulgarmente amplo, quer no âmbito da acção que pretendeu ter, quer no plano da extensão diacrónica que foi a sua.
De referir, ainda, a excelente introdução elaborada pelo coordenador do volume, António Pedro Pita, intitulada “Inventar o sentido do tempo – Eduardo Lourenço e o «Neo-realismo» como problema”. Não poderíamos contar com melhor coordenação, já que devemos a António Pedro Pita, e ao trabalho que tem vindo a desenvolver ao longo de anos, uma contribuição inestimável para a superação das muitas leituras simplistas que (ou por excesso de empatia ou por excesso de antipatia) tantas vezes reduziram o Neo-realismo a uma homogeneidade ideológica, cultural e estética que ele nunca teve. Assim, não admira que António Pedro Pita agora apresente esta introdução como mais um passo no “trabalho de aclaramento” que a complexidade do Neo-realismo lhe tem vindo a merecer (cf. 12, nota 1). Não tentarei sequer a tarefa inviável de fazer uma síntese do já de si muito conciso texto de António Pedro Pita, que enumera e articula questões e vectores fundamentais para a compreensão do Neo-realismo de forma a melhor entendermos o influente papel desempenhado por Eduardo Lourenço, primeiro enquanto “viajante sem bagagens” (361) do tempo literário da década de 40, e sobretudo depois, numa assumida margem face ao movimento – uma margem na qual nunca deixou de estar atento aos modos como o Neo-realismo ia inventando os sentidos do tempo, para retomar a sugestiva formulação usada na Introdução a este segundo volume.
Enfatizando a produtividade do facto de, a partir de agora, podermos ter um acesso conjuntural a textos que se alargam por cerca de 70 anos, António Pedro Pita parte de um testemunho de Eduardo Lourenço, intitulado “Como vivi a (pequena) história do Neo-realismo” (inicialmente publicado no jornal Expresso, em 1982, e agora reproduzido no volume), para nos sugerir a singularidade das relações que o filósofo manteve com o movimento: “A leitura ponderada do volume que o leitor tem nas mãos esclarece a singularidade dessa travessia” sublinha, acrescentando que ela “[e]sclarece também o que, nessa singularidade, possa ser devido à complexidade de tal constelação” (12).
No testemunho destacado na Introdução, e que também eu irei revisitar, Eduardo Lourenço recorda a posição à margem em que viveu o Neo-realismo. A formulação que usa é muito significativa: “Testemunho de margem e de certa maneira também da minha futura marginalidade” (366), diz. Mas acrescenta de imediato: “Aconteceu, contudo, que habitei essas margens como alguns não habitaram o centro” (ibid.). E fala então dos laços de grande amizade que o ligaram a Carlos de Oliveira, colega de curso e interlocutor privilegiado, lembra a participação em tertúlias, muitas delas na “bela morada de João José Cochofel” (372), e recorda a compra colectiva da revista Vértice pelos jovens neo-realistas, da qual se tornaria um dos fundadores-proprietários (368), depois de uma acção decisiva para evitar a extinção logo após o segundo número. Nesta “pequena história” coimbrã, que se prolongaria até 1949, Eduardo Lourenço sublinha sempre que “não fora nunca, o que se chama ser, da “«família» neo-realista” (369), recordando mesmo que alguns o descreviam como impenitente “metafísico” (ibid.) nesses tempos em que se apaixonava pelo pensamento dos recém-descobertos Kierkegaard e Niestzsche (368) enquanto também mantinha reservas à “barragem crítica contra a Presença” (368).Tendo descoberto Pessoa em 1942, em sintonia com Carlos de Oliveira, Eduardo Lourenço descreve-se como alguém a quem só a margem podia permitir o isolamento do luto interior que o embate com Pessoa nele provocara, mesmo que o não soubesse ainda.
Este instigante testemunho tem desde logo o mérito de mostrar como o pensamento, no sentido forte do termo, precisa de autenticidade para se desenvolver, pois o que antes de mais nada sobressai neste relato é precisamente a autenticidade da busca pessoal que ele revela. Será esta singularidade de pensamento que irá afastar Eduardo Lourenço daqueles de quem então se sentia próximo afectivamente, e essa circunstância permitir-lhe-á descrever com imparcialidade o que de modo mais ou menos consciente foi, para muitos, a experiência paradoxal de juntar uma opção pelo marxismo e a vivência da “espectralização em diversos tons e tonalidades dessa referência marxista, ao mesmo tempo real e mítica” (365). O livro que corresponde à primeira parte deste segundo volume, Sentido e Forma da Poesia Neo-realista, constitui um momento notável dessa dupla percepção que preservou Eduardo Lourenço do erro de perspectiva que observava em muitos leitores do Neo-realismo, dentro e fora dele: “o de confundir a ordem da intenção, do desejo, com a dos factos”, como então afirmava logo no “Prólogo”(46).
A escolha de abrir o segundo volume das Obras Completas com este “ensaio de compreensão não-neo-realista do neo-realismo”, como lhe chama António Pedro Pita (31), faculta uma espécie de início de leitura in media res, ou seja, cria um ponto de partida ao mesmo tempo panorâmico e integrador, inclusive dos capítulos que irão seguir-se, nos quais muitos textos remetem para uma cronologia anterior. Escrito entre 1959 e 1960, embora os textos de abertura e fecho sejam posteriores, datados de 1967, Sentido e Forma da Poesia Neo-realista parece resultar de um compromisso: “a minha intenção era «salvar» a poesia neo-realista da sua boa-consciência”, dirá mais tarde Eduardo Lourenço, em entrevista[1]. E explica: “Por outro lado, se na verdade me tinha afastado, em termos teóricos, do Neo-realismo, nunca tinha deixado de manter a minha solidariedade com a atitude de oposicionismo”[2].
Apesar da inegável distância temática, há uma grande complementaridade entre os estudos de Sentido e Forma da Poesia Neo-realista e um ensaio fundamental que Eduardo Lourenço publicara dois anos antes na revista o Tempo e o Modo, sob o título “Uma literatura desenvolta ou os filhos de Álvaro de Campos”, no qual dava como desaparecido, nas obras dos ficcionistas emergentes entre 1953 e 1963, o ascendente da “ideologia como ética mascarada de «deus ex-machina»” na ficção portuguesa: “a ideologia [já] não constitui ecrã entre criador e criaturas, entre criação e leitura”, diz, e retoma de Álvaro de Campos a imagem da “imparcialidade da neve” para descrever a atitude revolucionária da nova literatura. Se até então tivéramos “uma literatura ética, com o grave defeito de servir em grande parte exactamente a mesma ética do mundo que se propunha ‘transformar’”, a “Nova Literatura” seria “mais revolucionária” na exacta medida da sua neutralidade e indiferença éticas[3].
O processo de leitura desenvolvido em Sentido e Forma da Poesia Neo-realista surpreende algo do teor desta indiferença no cerne da poesia neo-realista – porque a neutralidade ética também lá se anunciaria algumas vezes, mesmo contra (ou principalmente contra) o empenhamento dos autores que se esforçavam por não lhe cair nas malhas:
A intenção ideológica aparente estabelece uma comunidade de princípio entre os poetas a quem convém de facto a designação de neo-realistas, mas ao nível em que a poesia existe a surpresa nasce da verificação de que tal referência, importante enquanto horizonte e clima, não subordinou tanto como se afirma os autênticos poetas. Cada um deles se viu confrontado com qualquer coisa de mais visceral, irredutível, de mais profundo e revelador, uma realidade que é certamente a deles mesmos e do seu ser social. (...) Uma releitura dos poetas neo-realistas mostra, naqueles que sobrevivem ou naquilo que sobrevive ao que neles morreu, como a poesia foi neles também, como em todos os poetas, o verdadeiro senhor embora na aparência tenha revestido a túnica do escravo. (58-59)
Um dos aspectos do livro com mais consequências críticas passava precisamente por aqui, ou seja, por mostrar que nem sempre a poesia escrita pelos neo-realistas pôde coincidir com a poética que estes desejavam implementar:
Em literatura como no resto não se faz o que se quer mas o que se pode. Nas praias lusitanas o mais decidido projecto de poesia objectiva só pôde concluir numa nova e muito subjectiva exaltação lírica. Nele reside o mais valioso do Neo-realismo. (49)
Com efeito, seria afinal por uma renovação lírica – e portanto no avesso do seu anunciado destino epopaico – que esta poesia exprimiria, em registo intimista, a tensão entre o desejo e a melancolia, ou entre a euforia e a desesperança. Em síntese, seria no registo lírico que ela mostraria a autenticidade vivencial dos tempos cinzentos do fascismo, e essa renovação lírica acontecera em vez dos cantos heróicos que poucas razões e pouco espaço tinham para existir, por muito grande que fosse o desiderato neo-realista de lhes dar plena existência.
Nos três autores estudados – João José Cochofel, Joaquim Namorado e Carlos de Oliveira –, Eduardo Lourenço sublinha a singularidade de três poéticas diferenciadas. Em Cochofel, irá identificar uma poética da imanência que parte de um “tom menor” (77) e nunca chega a assumir “o ritual da apóstrofe” (87) neo-realista. E descobre-nos particularidades como esta:
É a primeira poesia inocentemente ateia de que temos conhecimento. Isto nos parece de suma importância por desenhar um espaço poético radiosamente outro que o de Presença, espaço que será, em definitivo, não só o de toda a poesia neo-realista, como de uma boa parte da nossa poesia dos últimos trinta anos. (77)
Esta perspectiva, que Eduardo Lourenço retomará ao defender que o “«neo-realismo» nesta primeira fase é, sobretudo, «neo-cesarianismo»” (80), tem a grande vantagem de conduzir a uma leitura integradora dos poetas neo-realistas nas tendências gerais da poesia dos anos 40, evitando as inflexões excessivamente grupais de que notoriamente estes poetas foram vítimas. Assim, em João José Cochofel, Eduardo Lourenço observa nexos com alguns dos presencistas, com os chamados poetas dos Cadernos de Poesia, e com algum Pessoa também. E conclui que, embora Fernando Namora, Mário Dionísio ou Manuel da Fonseca lhe tivessem permitido exemplificar melhor “a cor indelével do “neo-realismo” (112), prefere uma “virtude mais rara” que a escrita de Cochofel detém, já que “ela exemplifica, como nenhuma outra a dificuldade intrínseca da nossa poesia neo-realista e extrai da modulação dessa dificuldade a sua substância, tanto sob o plano do conteúdo, como da forma” (112).
Fiel a esta perspectiva, mesmo se situa a poesia de Joaquim Namorado nos antípodas da de Cochofel, dado o empenhamento, o entusiasmo, a “violência romântica” (169) que a caracteriza, Eduardo Lourenço não deixará de observar, na “consciência cada vez mais profunda da situação historicamente sem saída que coube em partilha [à] aventura neo-realista” (173), uma contradição produtiva da qual emerge a autenticidade que sustenta a poesia de Joaquim Namorado enquanto “epopeia impossível”. Já no caso de Carlos de Oliveira, cuja poesia será descrita sob a égide do trágico, Eduardo Lourenço analisa a importância da elementaridade da matéria, a “dialéctica entre o poema e o reino mineral” (228); e observa o papel de uma atitude mais pessimista do que desistente, que culminará no movimento de retracção dos poemas de Cantata (1960).
Dos três estudos, creio que ressalta o que terá sido a contribuição essencial do Neo-realismo para a poesia: uma cura de prosa, aplicada aos excessos expressivistas herdados da tradição presencista, um exercício de contenção dos recursos poéticos. Mas isto não impedirá Eduardo Lourenço de considerar ter faltado genericamente ao neo-realismo “aquele apetite de total lucidez e profunda liberdade que é essência de toda a palavra poética” (241).
Em 1952, Eduardo Lourenço publicou, num suplemento do jornal O Primeiro de Janeiro, um texto em que se insurgia contra a aplicação de um marxismo mecanicista na leitura da obra de Pessoa. Intitulado “Explicação pelo inferior ou a crítica sem classe contra Fernando Pessoa”, o texto em causa terminava com estas palavras: “há homens (houve sempre e pessoalmente desejamos que a sua raça estéril e altiva nunca acabe) que não são capazes de olhar até ao fim o espectáculo do mundo e da história dos homens lendo aí a palavra esperança. Homens do Inferno se acreditarmos em Dante. Fernando Pessoa talvez tivesse sido um deles. E por que não devia sê-lo?” (402). Este artigo foi publicado no final do ano de 52 (26 Novembro); sabemos que alguns meses antes tinha começado, entre João José Cochofel e António José Saraiva, uma tremenda polémica, cujas ondas de choque haviam de prolongar-se até 1954 estendendo-se a intervenções muito diversificadas. Cochofel defendera a prevalência da forma nos critérios de avaliação estética, independentemente de orientações ideológicas; Carlos de Oliveira, e outros secundá-lo-iam. Sem se inscrever directamente na polémica, o texto de Eduardo Lourenço acerca de Pessoa mostra bem qual era o Neo-realismo que lhe merecia solidariedade tanto geracional quanto oposicionista: aquele mais livre esteticamente falando, ou seja, o Neo-realismo que as muitas leituras retrospectivas agora reunidas neste livro também ajudaram a consolidar – como inequivocamente podemos verificar numa leitura seguida.
“De certo modo”, escreve António Pedro Pita no texto introdutório, “a condição de possibilidade do próprio trabalho de Eduardo Lourenço reside no facto de a descoincidência do seu olhar com o olhar da História, por razões que relevam do filosófico, lhe permitir tematizar como problema aquilo mesmo que constitui, no âmbito dessa plataforma, as políticas em acto em busca de uma legitimação assente no reconhecimento da sua justeza e não derivada de um corpus doutrinário imposto a priori” (33). Este livro permite-nos acompanhar o papel de Eduardo Lourenço tanto na sua participação geracional ao lado dos jovens do Novo Cancioneiro quanto nas leituras coetâneas que foi fazendo do Neo-realismo, e ainda nas leituras retrospectivas que depois elaborou. Como ele mesmo defende, “o Neo-realismo é a expressão literária de qualquer coisa muito mais ambiciosa, muito mais importante” (379) do que o plano literário ou artístico, ou sequer cultural. Eduardo Lourenço recorre à palavra “galáxia”, diz que o Neo-realismo foi “o aparecimento em Portugal da galáxia marxista, da galáxia da cultura marxista”, capaz “de se determinar em relação praticamente a todos os temas da sociedade portuguesa” (379). E ao recordar o papel da colecção Novo Cancioneiro nos inícios da década de 40, pergunta: “Haveria nesse utopismo um excesso de ilusão, como o tempo o provou? Sem dúvida. Mas nos melhores, a crença num futuro menos inumano era vivida e sincera” (392).
Vemos, ao longo deste volume, que, sem evitar a polémica e a discordância, Eduardo Lourenço manteve o diálogo com essa geração que, como também disse, “deu ao povo uma atenção e através dela, uma dignidade, se não um papel, até então raramente assumidos” (392) – uma geração que é a sua e que, com todas as diferenças de ideário que nunca deixou de afirmar, ele soube entender profundamente.
*O texto que agora se publica (por muito gentil oferta da Autora) foi apresentado por Rosa Maria Martelo na Sessão de Lançamento do II Volume das Obras Completas de Eduardo Lourenço, realizada no passado dia 5 de Novembro na Casa da Escrita em Coimbra.
[1] Eduardo Lourenço, “Sou um dissidente da minha geração”, entrevista conduzida por António Guerreiro, Relâmpago - Revista de Poesia , nº 22, Lisboa, Abril de 2008: 56.
[2] Ibid.
[3] Cf. Idem, “Uma literatura desenvolta ou os filhos de Álvaro de Campos”, O Canto do Signo – Existência e Literatura (1957-1993), Lisboa, Presença, 1993: 260-261.