O leitor desprevenido ficará com certeza intrigado com uma breve alusão feita por Eduardo Lourenço em
Vida Partilhada, o seu último livro, saído recentemente com a chancela da Âncora Editora. De facto, no capítulo designado “Eu ensaísta me confesso”, Eduardo Lourenço, discorrendo sobre as diferenças entre a filosofia e o ensaio, deixa escapar uma pequena confissão. «Há um autor espanhol, da primeira metade do século XX, chamado Azori, que tem um livro delicioso e sempre invejei muito o título desse livrinho chamado
El pequeño filósofo. À falta de ser um grande filósofo posso consentir ser apelido de “el pequeño filósofo”, como dizia um crítico jovem piedoso, implacável, há uns anos atrás, que eu era um filósofo de província. Aceito a designação ... sou gostosamente, um filósofo de província, outra versão do que é um ensaísta» (p. 82).
Deixando para outra altura a referência a Azorin, importa centrar a atenção no aparentemente enigmático “crítico jovem piedoso, implacável”. Convém dizer, entretanto, que o texto “Eu ensaísta me confesso” é a transcrição de uma intervenção oral, realizada por Eduardo Lourenço na Guarda, no dia 23 de Maio de 2008.
Ler Eduardo Lourenço desconhece se essa transcrição foi objecto de uma prévia revisão por parte do Autor, quer para a edição de
Vida Partilhada, quer para uma primeira publicação do texto, ocorrida logo em 2008, na revista
Iberografias (Centro de Estudos Ibéricos, nº 4, Guarda, pp. 50-52). Mas, ao mesmo tempo,
Ler Eduardo Lourenço tem de admitir que estava nessa mesma tarde no Salão Nobre da Câmara Municipal da Guarda e que se recorda perfeitamente de ter associado a inesperada alusão a um jovem crítico e a um texto muito concretos. Sem efectuar uma confrontação com o registo gravado da comunicação oral, não é possível apresentar certezas absolutas, mas
Ler Eduardo Lourenço julga mesmo que dos três adjectivos usados para caracterizar o crítico, é possível que tenha havido um lapso na audição e/ou transcrição de um deles. Terá dito Eduardo Lourenço piedoso ou impiedoso? A dúvida talvez venha a subsistir
ad eternum. A proverbial ironia de Eduardo Lourenço autoriza, de resto, qualquer uma das duas hipóteses. O mesmo já não sucede em relação aos adjectivos jovem e implacável, clara e distintamente ouvidos pelo menos por um dos presentes.
Mas, impiedoso ou não, de que jovem e implacável crítico se trata? Nesta como em muitas outras ocasiões, é difícil chegar a conclusões categóricas e definitivas. É preciso reconhecer que uma das dificuldades que a escrita de Eduardo Lourenço suscita tem a ver com o facto de o ensaísta muitas vezes não ser absolutamente claro quanto às fontes de que se serve. Mesmo assim,
Ler Eduardo Lourenço aceita correr o risco de defender a tese de que o texto que está na origem da alusão feita por Eduardo Lourenço é o artigo que, em 25 de Janeiro de 2002, João Pereira Coutinho escreveu nas páginas do semanário
O Independente: trata-se da crónica “Animais, porteiros & provocadores” e que em baixo se reproduz.
Vida Independente era uma espécie de diário que o jovem cronista mantinha nas páginas do jornal, concebido por Miguel Esteves Cardoso e Paulo Portas, e que talvez vivesse nessa época um período de algum declínio. O que diz, nesse dia, João Pereira Coutinho? Enquanto jantava com um colega, o jovem crítico terá ficado a saber que Eduardo Lourenço tinha sido escolhido por uma universidade portuguesa para receber um doutoramento
honoris causa. Pouco importa agora saber de que instituição se tratava (o cronista não o diz e os dois doutoramentos
honoris causa atribuídos em Portugal a Eduardo Lourenço foram concedidos em 1996 e 1998!) e a que outra personalidade essa distinção terá supostamente sido recusada. Interessa, isso sim, atentar na reacção do jovem implacável: «Ouvi esta história encantadora e nem o vinho conseguiu aliviar o pasmo que sinto. Não vou comentar as virtudes filosóficas do pensador Lourenço, um provinciano que ganhou estatuto de iluminado entre os selvagens». E mais à frente remata: «Eduardo Lourenço (...) publicou meia dúzia de banalidades» (
O Independente, 25/I/2002, p. 28).
Será excessiva falta de rigor insinuar que a notoriedade de João Pereira Coutinho não conhece hoje, algo perdido nas páginas do
Correio da Manhã, os seus melhores dias? É possível, mas a verdade é que, em 2002, o jovem autor era já um escritor premiado, pois
Jaime e Outros Bichos (Lisboa, Difel, 1997) recebera, seis anos antes, o Prémio Nacional de Literatura Juvenil Ferreira de Castro. Consagração precoce? Nem por isso, especialmente se se atender ao que vem escrito na bandana desse mesmo
Jaime sobre o contista, na altura quase a deixar de ser
teenager: «Jornalista desde os dezasseis anos. acumulou até aos dezanove duas centenas de crónicas, dezenas de reportagens, entrevistas, um livro e dois processos por abuso de liberdade de imprensa». Reconheça-se que se trata de um currículo pelo menos intimidante.
Posteriormente,
O Independente recolheu numerosas crónicas de João Pereira Coutinho no volume, duplamente prefaciado por Miguel Esteves Cardoso e Alberto Gonçalves,
Vida Independente 1998-2003 (Lisboa, 2004), mas nele não incluiu “Animais, porteiros & provocadores”. O visitante deste
blog poderá, sem dúvida, interrogar-se se João Pereira Coutinho é mesmo o crítico jovem piedoso (ou impedioso?) e implacável de que fala Eduardo Lourenço em
Vida Partilhada. A interrogação é legítima, sobretudo porque o autor de
Heterodoxias não reproduz
ipsis verbis a violenta frase do cronista em
O Independente. Será uma imprecisão decorrente do facto de se tratar de uma citação de memória num breve improviso oral? Ou, pelo contrário, havia ainda um outro adversário, tão implacável como desconhecido, do nosso
philosophe de la Provence?