Ler Eduardo Lourenço arrisca dizer que, talvez tão grande como a sua paixão pela escrita, existe no ensaísta um prazer enorme em conversar. O próprio chega muitas vezes a dizer, com algum remorso, que adora o paleio. De resto, terá sido também esse gosto pela conversa que encantou aquela que veio a ser a sua mulher, Annie Salomon de Faria, que evoca o modo como o destino «levou um jovem português a cruzar o meu caminho na Universidade de Bordéus. Ele era filósofo e falava mal francês. Mas este handicap não o impedia de intervir com veemência nos debates de vários círculos culturais da cidade. Ele era fascinante. A tal ponto que um dia atrevi-me a dizer-lhe: Vous êtes un bavard sympathique. Uma frase fatal que selou o meu destino. Casei com Eduardo Lourenço em 1954» (“Cumplicidade e identidade”, Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 997, Lisboa, 17/XII/2008, p. 42).
Essa disponibilidade para a conversa é realmente permanente e infatigável. Em colóquios, nos media ou até nas Feiras do Livro, Eduardo Lourenço é um conversador nato. Por um lado, porque escuta verdadeiramente os seus interlocutores. Por outro, porque é capaz de contar as mais incríveis histórias, muitas delas em que intervem como protagonista ou pelo menos como observador directo e perplexo.
Eduardo Lourenço este ano na Feira do Livro em Lisboa, assinando um dos seus livros e à conversa com os seus leitores
(foto Ler Eduardo Lourenço)
É o caso de um episódio da sua biografia, ocorrido exactamente na década do seu casamento, e de que reproduzimos aqui duas versões (a espantosa vivacidade de Eduardo Lourenço não facilita a vida de quem quer reproduzir a sua oralidade...), admiravelmente escritas por dois grandes cronistas da literatura portuguesa contemporânea: o já citado neste blog Onésimo Teotónio de Almeida, num texto redigido para o Jornal de Letras, por ocasião dos 80 anos de Eduardo Lourenço, e o saudoso João Bénard da Costa, num memorável depoimento cinco anos depois, na Fundação Calouste Gulbenkian. É uma história (ou serão duas?) com contornos algo kafkianos, mas em que a sua tensão e a sua dureza (bem reais) aparecem como que atenuadas por um modo português de existir que lhe vai conferindo uma surpreendente e irresístível comicidade.
Eis, para começar, a versão de Onésimo Teotónio de Almeida
«Um dia o autor de O Fascismo Nunca Existiu contou-me uma das mais deliciosas narrativas que conheço da cultura portuguesa. Demoraria muito reproduzi-la. Meia hora, se bem me lembro, levou ele a contar-me com todos os saborosíssimos pormenores. Ainda uma vez tentei convencê-lo a repeti-la num programa de televisão. Lourenço não cedeu. A história começa na fronteira de Vilar Formoso, à entrada em Portugal, e a data é, creio, 1954. Lourenço assinara em França um documento com outros intelectuais e artistas (tenho notas algures mas estou escrevendo em viagem). A PIDE detém-no e leva-o para um quarto. Um funcionário aparece e oferece-se para guardar qualquer documento que ele quisesse esconder. Era um familiar. As peripécias sucedem-se entre o dramático e a desconcertante estrutura de um Portugal profundo, onde as relações humanas descosem as hierarquias e reduzem tudo à dimensão da aldeia.
Um motorista leva Eduardo Lourenço num pequeno automóvel para Lisboa. A meia viagem pára. Numa sombra. Vai ao porta-bagagem e agarra de um lençol que estende na berma da estrada. Abre a cesta do farnel e partilha-o com Lourenço.
Em Lisboa (em Caxias, terá sido?), põem-no num quarto onde o deixam esquecido noite dentro à espera de um interrogatório que não chega. Deambulando de um lado para o outro do corredor, um guarda prisional vigia-o. Passa da meia-noite sem nada acontecer para além dos passos do PIDE. Que às tantas entra, hesitante, Lourenço pressentindo a timidez.
O guarda entabula conversa:
- O sr. Doutor é professor na França?
- Sou.
- E o senhor doutor não me arranjava lá um trabalhinho?»
(“A magia de uma personalidade”, Jornal de Letras, Artes e Ideias, 14/V/2003, pp. 22-23).
E, agora, a mesma narrativa segundo João Bénard Costa: «Termino com uma história que Eduardo Lourenço me contou em Paris, quando nos encontrámos, como disse, pela primeira vez pessoalmente. Eduardo Lourenço contou-me que tinha estado no ano anterior ou dois anos antes, em Portugal, numa das suas episódicas visitas ao país, e tinha sido chamado à PIDE, para ser interrogado. Enfim, tensão habitual desses momentos, o inspector e o oficial de diligências, ou como se lhe queira chamar, que com dois dedos ia escrevendo à máquina o depoimento de Eduardo Lourenço. Interrogatório tenso, querendo saber de relações de Eduardo Lourenço, de pessoas com quem se correspondia, de cartas, de contactos que mantinha, enfim, uma situação difícil, e a certa altura o inspector por qualquer razão saiu da sala. Seguiu-se um silêncio e então o dactilógrafo levantou-se, foi à porta olhar com muita atenção para verificar que o inspector não estava por ali e dirigiu-se a Eduardo Lourenço, perguntando:
- Então o senhor vive em França? - Eduardo Lourenço respondeu-lhe que sim, naturalmente, e ele retorquiu:
- Parece que em França se ganha bem…
- Bom, depende dos casos, mas enfim ganha-se melhor do que em Portugal, isso é indiscutível.
O homem voltou à porta, voltou a olhar e depois regressou para junto de Eduardo Lourenço e disse:
- O Senhor, por acaso, não me consegue arranjar em França um lugarzito, porque isto aqui ganha-se mal?
- Isto só em Portugal podia acontecer. Ser interrogado por uma polícia que não era branda nem pêra doce, numa situação difícil, e de repente um dos agentes dessa mesma polícia a meter uma cunha para um emprego em França»
(“Testemunho”, Colóquio-Letras, nº 170, Lisboa, Gulbenkian, Janeiro de 2009, p. 386).