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Vieira da Silva, Biblioteca em Fogo, óleo sobre tela, 1974 |
Poucas obras impõem como a de Vieira da Silva a evidência dessa temporalidade criadora e iluminante de uns quadros por outros e cada um pelo conjunto deles. Há pintores de múltipla pintura. Dir-se-á que coabitam neles vários pintores, ou antes, várias pinturas. O exemplo de Picasso acode logo mas é um mau exemplo. As “fases” ou “maneiras” de Picasso procedem, em princípio, dele mesmo ou ele as integra com um génio e uma desenvoltura únicas num mundo seu. Pintores de múltipla pintura são aqueles cujas diversas “maneiras” visivelmente têm neles uma motivação acidental e exterior. São inúmeros. São a grande coorte dos seguidores em perpétuo atraso mas hábeis em fazer crer (ou crendo eles mesmo) que as “mudanças” nasceram por intrínseca necessidade. Vieira da Silva é o oposto de tais pintores. Ela aparece, na luz desta retrospectiva, como a pintora de um quadro único, mas quadro conquistado dia a dia num combate dos seus olhos e do seu espírito, com a aparência jamais domesticada da luz e suas metamorfoses sobre a face dos céus, da terra, da água e das cidades. A pintura de Vieira da Silva é um “fazer” e um “desfazer”, um tecer e destecer perpétuos, como se cumprisse um voto de incoercível fidelidade, de devoção a um só senhor, essa realidade espacial, visível, tão fabulosamente real e visível que para a aprisionar nas malhas de uma tela é necessário tecê-la às avessas, compor a presença com a ausência, o visível com o invisível, fiar o dia na estriga da noite. Daí que tal pintura pareça a muitos como marcada por um halo de irrealidade e mesmo de fantástico ou em todo o caso de uma evanescência próxima de uma e outro. Mas esse é possivelmente o preço que a fundura de certos combates com a aparência, a fim de a salvar, tem pago sempre. Debussy foi um bom exemplo. A musical pintura de Vieira da Silva, outro. Irrealista e fantástica – não serviu ela para a evocação dos mundos imaginários da ficção científica? é a pintura de Vieira da Silva apenas aos olhos dos que não vêem a quotidiana aparência que nela é mais do que simples ponto de partida, por ser obsessão ou, se se prefere, inesgotável fonte de encantamento. A sua necessidade de visível, e mesmo de “tocável”, é tão imperiosa que ela mesma, antecipando a vivência futura dos espectadores, remete as suas imateriais e quase fantásticas tapeçarias para uma quotidianidade que as não esgota, mas à qual esse infalível baptismo confere uma realidade de arquétipo. Vieira da Silva parece ter horror do “inominado” e do “não-situado” e por isso baptiza a posteriori estruturas cuja fascinação não precisava de etiqueta. Tão próxima, quando superficialmente olhada, de certos aspectos da pintura de Klee, é uma démarche oposta que os quadros de Vieira da Silva nos mostram. A Biblioteca de Vieira da Silva não é fantástica, no sentido em que o seria um quadro com semelhante título de Klee, cuja pintura é realmente a mais fantástica que se conhece, mas apenas recriadora – em nós – do “fantástico” de uma Biblioteca, entre outros possíveis, que afinal é pouca coisa comparado à fascinação pura do espelhismo ambíguo e múltiplo do quadro, em suma, à pura música espacial que o constitui.
O que ainda se podia crer em face de um só quadro torna-se insustentável diante de uma série deles. Vieira da Silva nada tem de comum com a pintura “fantástica” ou do “imaginário”. Num sentido, que não tem, sob a nossa caneta, nada de pejorativo, Vieira da Silva é um pintor sem imaginação. Entendamo-nos: um pintor não criador de imagens, um pintor cuja imaginação se exerce sobre a própria matéria sensível. Não é esta, por excelência, a vocação pictural suprema, a de um Velasquez, de um Manet, de um Vuillard? Nos seus últimos quadros rondam, quase que com a mesma força, a tentação do lirismo abstracto puro e a sombra da abstracção descarnada e violenta, a meio caminho entre Poliakoff e De Staël, mas sente-se que o pintor está à beira do abismo e como que desamparado. De resto seria um abandono da sua pintura tal como a retrospectiva a manifesta. A preocupação única de Vieira da Silva supõe distância entre o gesto do pintor ou o seu resultado e a matéria dele, esse espaço que a sua pintura fará estilhaçar do interior, mas mantendo-o. A pintura de Vieira da Silva é assim, enquanto intenção, tradicional. O quadro supõe algo fora dele, embora, uma vez existente, seja ele mesmo uma realidade subsistente, autónoma, um duplo e até mais do que isso, uma virtualidade de espaços mais rica que o espaço real. É neste pulsar elementar da sua pintura como gesto e visão amorosa desenraizavelmente prisioneiros do visível, ou para ele nos reenviando, que nós seríamos tentados a discernir o carácter lusíada desta “portuguesa de Paris”. O inegável realismo lírico que se ultrapassa em lirismo cósmico parece-nos mais revelador e mais profundamente nosso do que a simples verificação do gosto de Vieira da Silva pelas cores suaves, a paixão pelo branco ou a obsessão temática do “quadradinho-azulejo” de lisboeta memória.
Pintura ao rés-dos-olhos e ao rés-das-mãos, quase artesanal e paciente modelar da luz e seus jogos, mas mediada por um espírito perfeitamente ao par da situação pictural e das exigências que a atravessam nos anos decisivos da sua formação. Vieira da Silva não é uma “primitiva”, mas uma muito consciente pintora travando por sua conta e em limites precisos um geral combate da pintura consigo mesmo que nela se vencerá sem catástrofe, mas não sem inquietude. As suas arquitecturas imaginárias – e mais imateriais não há nenhumas na pintura contemporânea – são sempre encantamento do real, mas de um real colhido ao nível da sua estrutura mais ténue, no limite em que a visão pende para a ilusão ou a ilusão mesma se reestrutura em visão. Esta referência “ao real” é tanto mais significativa quanto é certo que, objectivamente considerada, a maioria dessa pintura já a nada reenvia senão a si mesma e é concebida mesmo como um “fazer” autónomo, uma aventura sem outra dimensão, nem necessidade, que a de se constituir como realidade pictural. Mas não há contradição alguma entre esta “abstracção” estrutural e o não-consentimento ou o abandono de toda a significação capaz de estabelecer o quadro nessa definitiva abstracção que a pintura de Vieira da Silva até hoje recusou. O tema único do espaço basta para que a pintura de Vieira da Silva permaneça no horizonte “realista”. Mas esse tema igualmente basta para explicar a ambiguidade e a fascinação dessa pintura que é jogo com o que a experiência sensível oferece aos homens de mais presente (pois nele tudo está) e de mais ausente (ele em nada está).
Se é exacto que a estrutura mais autêntica da nossa sensibilidade é a nostalgia – amor celeste a um visível sempre corroído pelo tempo, um tocar sem tocar, uma posse despossuída, como a poesia de Camões, Pascoaes ou Pessoa no-lo mostram – pintura alguma nos exprimiu jamais melhor do que esta, sob aparências cosmopolitas. Nela se dá na verdade um mundo cuja presença maravilhante nos é sensível pela alusão e pela ausência. Se a pura memória das coisas pintasse – e ela só – nós teríamos estes espaços que são espelho de outros espaços e todos em conjunto como que a sensível ausência de um mágico e fabuloso Espaço, porventura o nosso, mas que está diante de nós como um paraíso fulgurante e impercorrível. O “fantástico” da pintura de Maria Helena Vieira da Silva situa-se, nasce, no interior desta nostalgia visual que misteriosamente repercute, símbolo ou paráfrase, a nostalgia do espírito, próximo e separado de si mesmo. Se jamais o Espaço foi fonte de Poesia aqui o foi. A história que conta o inteiro percurso da pintura de Vieira da Silva é a de uma luta e de uma libertação. Luta e libertação de antemão perdidas, pois é do Espaço que se trata, irredutível presença, mas ganha, tanto quanto o pode ser, na sua pintura. O lugar de todas as viagens, aquele de que Kant só concebia o percurso em linha recta, na pintura de Vieira da Silva o viajamos em todos os sentidos. Basta sentarmo-nos diante de um dos seus quadros e deixar esse Espaço meter-nos dentro dele.
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Arpad Szenes e Maria Helena Vieira da Silva (imagem FAVS) | |
*A correspondência, sobretudo gráfica e alguma inédita, trocada entre
Maria Helena Vieira da Silva e o marido, Arpad Szenes, vai ser
apresentada numa exposição que é inaugurada amanhã, dia 6 de
Fevereiro, pelas 18h30, em Lisboa. A exposição intitula-se Escrita íntima e reúne, em torno da
correspondência trocada por Arpad e Maria Helena, uma selecção de obras
de ambos.Na maioria são desenhos, testemunhos e retratos um do outro e da sua
intimidade, segundo um texto da Fundação sobre esta mostra de obras
pouco conhecidas, algumas inéditas.A exposição “Escrita Íntima” fica patente na Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva (FASVS) até 19 de Abril. Na sessão com que abre a exposição participarão, entre outros, a vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Lisboa, Catarina Vaz Pinto e Eduardo Lourenço. Antecipando o evento, Ler Eduardo Lourenço recupera um excerto do artigo “O itinerário de Vieira da Silva ou da poesia como espaço. A propósito da exposição retrospectiva de Grenoble 1964”, O Tempo e o Modo, nº 24, Lisboa, Fevereiro de 1965, pp. 199-209, mais tarde reimpresso no livro O Espelho Imaginário, Pintura, anti-pintura, não-pintura, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1981.