quarta-feira, 29 de maio de 2013

Pensar Nove Décadas de Amizade (nº 87): José Carlos Seabra Pereira*

Eduardo Lourenço e José Carlos Seabra Pereira em Badajoz  (Outubro de 2010)
             
O fascínio que nos anos de estudante liceal sobre mim começara a exercer o pensamento e a escrita de Eduardo Lourenço teria sempre de intensificar-se pela experiência posterior de leitura meditada dos seus ensaios. Mas ganhou nova tonalidade quando, nos finais dos anos 70, ensinando na Universidade de Poitiers e vivendo em Paris, fui contemplado com a graça de periódicos encontros com o próprio Eduardo Lourenço, geralmente no Centro Cultural Português que a Fundação Gulbenkian nos oferecia na Avenue d’Iéna. Muito aprendi e aprofundei ao ritmo desses momentos peregrinos de contacto com o espírito e a sabedoria de um Eduardo Lourenço, que entretanto já me penhorara com pública manifestação de apreço pelo meu Decadentismo e Simbolismo na Poesia Portuguesa.
Mas terá sido nos inícios dos anos 80 que se verificou um episódio de mais surpreendente sabor na minha relação com Eduardo Lourenço. Foi à boca da noite em Poitiers, onde ambos participávamos num congresso de lusitanistas. Acantonados durante o dia no campus universitário e alojados na sua periferia, descobrimo-nos – Eduardo Lourenço e Onésimo Teotónio de Almeida, eu e minha Mulher – movidos por idêntica ânsia de desentorpecer as pernas e saborear café aparentado à bica pátria… e creio que também desintoxicar o espírito após certa facúndia de “apuramento dos recursos epistémicos” com que nos tinham flagelado. Caminhámos, pois, e conversámos até um centro comercial, onde ainda fomos recompensados com transmissão televisiva de grande jogo de futebol internacional. Diga-se de passagem que, tendo-se proporcionado que eu me assumisse como adepto do Belenenses, Onésimo nos brindasse in continenti com a declinação do glorioso onze azul no tempo da nossa adolescência!… Claro que houve outros ressaltos mais importantes do que essa evocação de Matateu & Cª – quer para o campo do humor sociológico em que o cronista da Lusalândia já dava cartas, quer para outras pertinentes escalas de digressão, onde fomos beneficiando dos matizes despretensiosamente subtis do «tempo da conversação» lourenciano, até à diversão pascaliana, à catarse mitridática, à alusão metafísica…
Após o meu regresso a Portugal, no subsequente trajecto universitário de investigação e ensino frequentemente busquei e busco apoio no magistério de Eduardo Lourenço, sobretudo no tocante aos trabalhos em torno da mitogenia saudosista e às cadeiras de Estudos Camonianos e de Estudos Pessoanos. E, com Lisboa ou Coimbra de permeio, não faltaram outros momentos saborosos e intelectualmente estimulantes de encontro com Eduardo Lourenço, desde certos dias em Santa Barbara sob o signo de Camilo até certo painel raiano em Badajoz.
Mas não posso deixar de eleger como dia mais gratamente memorável da minha relação com Eduardo Lourenço aquele 11 de Julho de 2004 em que pude sintetizar algumas das razões da admiração pelo pensador e do diálogo com a tensão espiritual do ensaísta, ao proferir, na Sala Grande dos Actos da Universidade de Coimbra, o seu elogio académico como “padrinho” na celebração do Doutoramento Honoris Causa de Saramago.
Procedi então ao louvor de uma figura e de uma obra que têm situado os seus desígnios e à altura desta determinação declarada no «Segundo Prólogo sobre o Espírito de Heterodoxia»: «Por temperamento e por formação espiritual, a única motivação radical das recusas ou aceitações é para nós metafísica, se se entende por isso aquela que não tem em conta espécie alguma de considerações, salvo as que procedem da vivência mesma da Verdade como ideia. E esta por sua vez é de tal sorte que finalmente é como decisão de ordem “religiosa” e mesmo “mística” […] que melhor se compreenderá».
Sublinhei que, cedo dominado pela convicção de que no «plano do conhecer ou no plano do agir, na filosofia ou na política, o homem é uma realidade dividida», desde logo Eduardo Lourenço se impôs o respeito por essa condição, que seria também obediência à «obrigação de suportar a liberdade humana»; e aduzi que o aprofundamento posterior da consciência dividida no Homem moderno só veio corroborar tais postulados e reforçar as suas consequências gnoseológicas, discursivas e existenciais. Daí fiz decorrer a identificação com esse rumo de busca intelectual e de presença cívica que é o espírito de heterodoxia.
Destaquei seguidamente como, desde sempre oposto à indiferença noética e à irresponsabilidade ética coonestadas por doutrinas relativistas, tal como avesso a aportar no niilismo, Eduardo Lourenço procura salvar aquele módico de confiança na razão e de fidelidade à moral que sustente a fé na liberdade humana e no seu potencial de busca do Sentido.
Finalmente, ilustrei como, em coerência orgânica com a poética do ensaio adoptada, Eduardo Lourenço manifesta na prática da arte ensaística sedutoras características literárias, ao mesmo tempo que a literatura nela se constitui em via privilegiada de conhecimento e em mediadora insuperável no assédio ao Sentido primordial e teleológico, mas também ao sentido histórico de realidades como as nações e particularmente Portugal, através das imagens que de si mesmas foram propondo ou sugerindo através das épocas, em especial aquelas figuras que ganharam alcance mítico.

*José Carlos Seabra Pereira, Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Curador da Casa da Escrita.
Texto inédito getilmente enviado para Ler Eduardo Lourenço.