quinta-feira, 9 de maio de 2013

Pensar Nove Décadas de Amizade (nº 24): João Heitor*



João Heitor


Tinha acabado de abrir a Librairie Lusophone no Quartier Latin, mesmo ali nas barbas da Sorbonne, quando numa tarde de sol, entrara uma menina a propor-me a venda dum pequeno livro, com uma capa bonita que se intitulava Le Labyrinthe de la Saudade. Psychologie mythique de la Saudade, tradução de Annie Faria, editado em Bruxelas pelas edições Sagres-Europa, 1988.
Nunca mais tornei a ver essa jovem, não sei se era a proprietária da editora ou se era uma dessas agentes de promoção de livros que costumavam visitar os livreiros quando saiam novidades. Belos tempos! Mesmo transbordando de trabalho, eram momentos enriquecedores ao trocarmos impressões sobre os livros.

Se perdi essa menina de vista, nunca mais esqueci o professor Eduardo Lourenço, seguia tudo o que ele escrevia e dizia. Conhecia de nome o livro Heterodoxia I e sabia que reunia uma parte da sua tese de licenciatura, mas só o pude ler e divulgá-lo a partir da sua reedição em 2005. Se o nome de Eduardo Lourenço aparecia nos colóquios que se faziam por toda a parte do mundo, os seus escritos, na altura em que abri a livraria, eram difíceis de encontrá-los.
No meu dia a dia de livreiro, aqui em Paris, verificava que muitos dos meus clientes que batiam à minha porta, andavam à procura das suas raízes. Eis a razão por que nunca “larguei” o Eduardo Lourenço. Estava ciente, embora ainda não se falasse muito dele, que era um pilar, a trave mestra para o conhecimento intrínseco do Ser Português. A Mitologia da Saudade, O Labirinto da Saudade, A Nau de Ícaro tornaram-se para os meus clientes aquilo que os Evangelhos são para um bom cristão.
Foi dentro deste contexto que publiquei mais tarde o livro L’Universel et le Singulier dans la Saudade, une Philosophie de l’interculturel do jovem português nascido em Nice e que hoje é Doutor de Filosofia pela Université Paris-I Panthéon-Sorbonne e, neste momento, Conselheiro Cultural da Embaixada de França em Bogotá. Este jovem diplomata queria a todo o custo um prefácio de Eduardo Lourenço num segundo livro que eu também editei Pessoa et l’ombre de Nietzsche – Le tournant manqué du renversement de valeurs. Esperámos dois anos para ser editado, queríamos um prefácio de Eduardo Lourenço, era uma honra para o editor e, sobretudo, para o jovem lusodescendente.
Como dizia no início, quando recebi o Labyrinthe de la Saudade, o nome da editora belga Sagres-Europa ficou logo, desde aquele momento, no meu subconsciente. Sagres fazia-me lembrar todas essas caravelas que partiram de Portugal carregadas com todos esses Fernãos Mendes Pintos pelos cinco continentes. Europa, todos esses emigrantes, a começar por mim, espalhados pela França, Alemanha, Suíça, Luxemburgo... Eduardo Lourenço era ( e é ) um dos raros intelectuais português que nos ajudava a compreender este fenómeno da emigração e , num canto da livraria, no mais escuro para ninguém me incomodar, bebia as suas palavras: «Povo emigrante antes de o ser, por vontade ou à força, adaptável, discreto no meio dos outros, sempre pronto, na aparência, a trocar a sua identidade pela dos outros, na realidade nunca abandona o seu ponto de partida. Quer dizer, a sua verdadeira pátria, a do seu sonho adormecido mas nunca extinto no fundo do seu ser. Um tal povo, tão à vontade no mundo como se estivesse em casa, na verdade não conhece fronteiras, porque não tem exterior. Como se fosse sozinho, uma ilha».

Se o próprio Eduardo Lourenço diz que o Emigrante é a saudade em pessoa, não é menos verdade que o nosso ensaísta, nos anos 90, vai abrindo novos caminhos nas relações culturais entre a França e Portugal ao dizer que uma parte da substância portuguesa começa a misturar-se e alimentar a cultura francesa, porque são cada vez mais os portugueses-franceses ou como costuma dizer os portugueses-europeus, artistas de teatro, músicos, jornalistas, realizadores e homens de televisão, escritores que participam e engrandecem a França. Eduardo Lourenço avança sempre com novas ideias, anuncia novos rumos e não tem receio em dizer que Maria Medeiros, Maria João Pires, Pomar, Emanuel Nunes, Manoel de Oliveira, Fiadeiro, Saramago, Siza Vieira e outros tantos com sucesso representam Portugal na França ou no espaço europeu, são os novos europeus-portugueses que vão alimentando a velha relação entre a cultura portuguesa e a cultura francesa.
Foi dentro deste contexto cultural que em 2008 editei um livro de ensaios Pessoa – L’intranquile proposto por Françoise Laye, tradutora para francês do Livro do Desassossego de Bernardo Soares, onde figura um ensaio desta mesma tradutora, de Patrick Quillier, Richard Zenith e, uma vez mais, um ensaio de Eduardo Lourenço intitulado Narcisse Aveugle. Quando a catedrática Maria Graciete Besse me propôs editar nas Editions Convivium Lusophone o livro Eduardo Lourenço et la Passion de l’Humain com o apoio da Universidade da Sorbonne e da Fundação Calouste Gulbenkian, senti-me honrado com tão grande privilégio. Nesse momento, passaram na minha mente, como se fora um filme, essas inúmeras viagens com sol, chuva, nevoeiro, neve, as passagens das fronteiras com o carro carregado de livros, as feiras nos lugares mais recônditos da França e da Europa, os serões, os encontros nas escolas, nas bibliotecas, nas universidades... Esta edição era o corolário dessas peripécias vividas, era uma recompensa. O meu ídolo, a minha referência, aquele que me ensinara a ser um Fernão Mendes Pinto fora de Portugal, era agora editado por mim.

Tendo descoberto Eduardo Lourenço, apesar da venda e da divulgação dos seus livros, sentia dentro de mim uma sensação de culpa. Apesar de viver no mesmo país, os Portugueses de França nunca lhe tinham prestado uma homenagem. Com o consentimento da Professora Graciete, com a ajuda da Casa de Portugal – Cité Internationale Universitaire e da Fundação Calouste Gulbenkian, no dia 9 de Abril, oriundos de todos estatutos sociais, lá estávamos a beber as palavras sábias do nosso grande Pensador. Ainda estou comovido ao recordar a imagem do mexer dos lábios do Professor Eduardo Lourenço cantando com toda a sala, aos 90 anos, a Trova do vento que passa.

*João António Rebelo Heitor é Livreiro e Editor em Paris.
Texto inédito gentilmente enviado pelo Autor para Ler Eduardo Lourenço.