Sílvio Lima
Numa semana em que o recém-criado Grupo de História e Desporto organiza, com o apoio do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa e do CEIS20 da Universidade de Coimbra, o I Congresso de História do Desporto, é com certeza oportuno evocar a figura de Sílvio Lima. Com efeito o autor de Ensaio sobre a Essência do Ensaio, que para muitos é o primeiro filósofo do desporto português, foi sem dúvida quem iniciou, de modo academicamente fundamentado, o estudo da temática desportiva de um ponto de vista inserido no que hoje se chama as ciências sociais e humanas, ao publicar, nos finais dos anos Trinta do século passado, três livros de ensaios que, através das suas teses polémicas, como era timbre de Sílvio Lima, ainda hoje são de muito proveitosa leitura. O desporto era, na altura, um objecto científico bastante mais exótico do que é hoje, sobretudo aos olhos de uma Universidade pouco atenta às mutações vertiginosas da sociedade. Por isso, a audácia de Sílvio Lima em pensar o desporto é ainda mais surpreendente e digna de admiração.Como já aqui se disse, Sílvio Lima foi, juntamente com Joaquim de Carvalho, um dos Professores que decisivamente marcou a passagem de Eduardo Lourenço por Coimbra. Ora, se, sobre Joaquim de Carvalho, existem vários textos do antigo discípulo (cf. Heterodoxias, o primeiro volume das Obras Completas), já em relação a Sílvio Lima as referências são mais escassas e sobretudo dispersas. É por isso do maior interesse recuperar dois excertos de uma entrevista realizada por Paulo Archer a Eduardo Lourenço e que, embora parcialmente, vem reproduzida em Sílvio Lima: um místico da razão crítica (Da incondicionalidade do amor intellectualis), uma volumosa e muito documentada Dissertação de Doutoramento em História, defendida em 2009, na Universidade de Coimbra e cuja publicação em livro já tarda. O primeiro dos excertos que, com a devida vénia, Ler Eduardo Lourenço hoje apresenta diz respeito a Sílvio Lima como pedagogo, designadamente através de uma comparação com Joaquim de Carvalho.
«Joaquim de Carvalho era um Mestre austero, um universitário e académico de tipo clássico, embora afável e por vezes acessível, transportava para as aulas um mundo de conhecimentos. Era um peso pesado de erudição. Solidamente alicerçadas no cartesianismo as suas aulas de Filosofia, sobretudo as de teoria do conhecimento, eram o espelho lógico dum pensamento racionalista e crítico, do qual ele próprio dava modelo exemplar, quer na inventariação dogmática quer na exposição metódica e equilibrada dos diversos passos. Era um professor clássico, repito, que impunha respeito pela sua presença e capacidade de saber. Mas era pessoalmente acessível. Talvez certa aura de inacessibilidade tenha a ver com a toca familiar. Joaquim de Carvalho vivia num primeiro andar, em sua casa, e aí se isolava daquela familota toda, daqueles filhos todos, que viviam por baixo, no rés-do-chão, num mundo à parte, do qual se distanciava.
Sílvio Lima apenas foi meu professor de Psicologia (penso que durante o meu tempo de estudante universitário apenas estava confinado à leccionação de Psicologia), pelo que é mais difícil fazer um cotejo sob a estrita perspectiva crítico-filosófica. No entanto, é claro que as suas aulas eram de uma abertura e elasticidade surpreendentes, os temas, as áreas de conhecimento abriam-se umas às outras, as exposições eram empolgantes e o diálogo era procurado, estimulado e mantido. Sílvio Lima era um professor brilhante, mas de um raro brilhantismo que deslumbrava pela sua capacidade de interrelacionamento, fascinando o auditório com uma comunicação penetrante e um poder de argumentação muito lúcido. Com uns olhos muito vivos e inquietos que espreitavam assuntos e inquietações, Sílvio Lima seduzia-se por Renan, por Guyau, sobretudo por Guyau, que citava e comentava muito. Nas suas aulas procedíamos a leituras críticas de textos, discutiam-se obras e autores com a maior amplitude, eram aulas diferentes, não se confinava aos codicilos da Psicologia ou da Psicologia Experimental, ao domínio científico restrito. De resto, a Faculdade no contexto da Universidade, mantinha uma certa imagem de escola. Repare que mesmo Miranda Barbosa, que era um tomista ou um neotomista, com quem me iniciei na leitura de Kant (não foi possível com Joaquim de Carvalho porque estava confinado então à teoria do conhecimento, lamento porque era um neokantiano clássico na linha de Cohen e Natorp), não só permitia como estimulava o contraditório, a opinião contrária. De certa maneira, Kant fez parte do itinerário da minha
autoformação, foi um trabalho de autoaprendizagem. Mas pela agilidade intelectual e pelo virtuosimo prático da comunicação pedagógica, Sílvio Lima sobressaía do conjunto dos meus mestres e professores».
O segundo excerto aqui repescado reporta-se ao livro
O Amor Místico, obra polémica e apreendida devido ao seu carácter ousado ou até, aos olhos dos espíritos mais sensíveis (ou menos, conforme a perspectiva que se pretenda adoptar...), escandaloso. Eis como Eduardo Lourenço se refere ao tema:
«O livro não existiu, por assim dizer, não chegou a existir, era um projecto do qual apenas conhecemos uma parte e mesmo essa foi proibida e penso que a edição foi apreendida. No meu tempo de escolar universitário, na primeira metade dos anos Quarenta, as duas obras de Sílvio Lima, aquelas Notas Críticas ao livro do Cardeal Cerejeira e o Amor Místico, apareciam por vezes na papelaria do Cunha das Valsas (assim chamada porque se especializara na venda de colecções partituras e libretos), na Rua Ferreira Borges, perto já do Largo da Portagem, onde as procurávamos, imagine, entre outros livros escondidos de alfarrábio. Por isso, aqueles livros de Sílvio Lima não tinham existência oficial. Mas foi, na época, uma aventura, uma estranha aventura escrever esses textos. Parece que a ninguém, à época, interessava o tema, mesmo as prioridades intelectuais da Esquerda em oposição declarada ao regime não se encaminhavam nesse sentido. Foi uma perigosa aventura destemida e Sílvio Lima agiu e colocou-se numa arriscada posição solitária, fragilizando-se.
Como era possível escrever livros daqueles, naquele tempo? Parece absurda a posição em que se estava a situar Sílvio Lima, mas era um claro acto de coragem. Cerejeira, manteve-se em silêncio, durante toda a polémica, mas Trindade Salgueiro, não sei se por indicação de Cerejeira, talvez nem fosse preciso, talvez nem tenha existido, para mostrar serviço e para mostrar que sabia fazer esse serviço, executou o trabalho de condenação pública do culposo.»