sexta-feira, 10 de maio de 2013

Pensar Nove Décadas de Amizade (nº 27): Daniel Lacerda*



Comecei a ler com mais atenção Eduardo Lourenço no pós 25 de Abril, deparando com diversos títulos reunindo estudos e comentários relativos à situação sócio-política do país desse período, numa fundamentação que havia por fundo a cultura literária, sobretudo da Geração de 70. O contacto pessoal é superficial mas – como na última sessão de 10 de Abril no Centro C.C. Gulbenkian de Paris – a sua personalidade parece confirmar a visão que se pode tirar de leituras não sistemáticas.

E.L. repetiu uma afirmação remota: considerar o ficcionista, como o verdadeiro criador, que ele gostaria de ser, enquanto [que] o comentador, o ensaísta, não passa dum escrevinhador de inépcias. Remete assim estranhamente para um plano inferior, Montaigne – que adora – e deixa no esquecimento os pensadores, os filósofos, nessa reafirmação, que finalmente revela um traço da sua personalidade, senão da natureza do seu empenho de literato e de pensador – a modéstia, a análise subtil, moderada. Esta afigura-se uma herança das noções de temperança e de equidade que Baltazar Gracían prescreve nos seus tratados de vida cortesã, social.

Supomos que o percurso de Lourenço se distingue do de António Sérgio ou de António-José Saraiva, e se aproxima mais dum José Régio ou mesmo de Jorge de Sena ou Alfredo Margarido, pela predominância da estética literária, enquanto alicerce da sua reflexão. Sérgio parte das grandes obras portuguesas, com predominância nas crónicas, estudos económico-sociológicos e da história para elaborar teorias explicativas do movimento social. A sua personalidade adequa-se a um estilo límpido, vigoroso, vernáculo. Saraiva, inspirando-se na análise marxista e de tipo sociológico, os seus estudos literários iluminam-se pelas referências à ordem social, revelando-nos novas facetas dum Camões, Gil Vicente ou Mendes Pinto; e atacou-se à instuição da Inquisição que afectou drasticamente não só a evolução das ideias como o desenvolvimento social da maior parte das vilas e de Portugal por séculos inteiros.

O percurso ensaístico de E. Lourenço, que inicialmente passou pela revista Vértice, orientou-se para a heterodoxia, distanciando-se do engajamento inerente à criação neo-realista. Sem cultivar o nombrilismo atribuido a Régio, traçou uma linha intermédia, que no Labirinto da Saudade, ventilado por conceitos adaptados de Freud e certamente duma assimilação de Nietzsche, reexamina a mitologia tradicional portuguesa, temperada pela suspeição (contradição), que se encontra nos seus estudos posteriores. Bom leitor de Pessoa, utiliza proficuamente o gosto pelos oxímoros, relevando assim facetas obscuras, escondidas, num jogo de espelhos aportado pelo psicologismo actual, com que interpreta o indidualismo e a sociedade contemporânea, tanto na compreensão da obra do poeta, como na visão do espaço europeu. O pensamento de EL articula uma forma original de dialéctica em que da antítese ou contradição não chega a pronunciar-se uma nova afirmação, levando o leitor a deduzi-la por si. Este terceiro elo que lhe falta tem a ver com o apagamento do que é proposto, uma espécie de ausência de virilidade, de afirmação. Enquanto atitude, é moderna: o analista descarna, desfibra, ilumina e deixa o leitor concluir.

Sempre me interroguei sobre o modo (e o tempo) que utilizou para assimilar, pensar as grandes figuras da cultura portuguesa, com predominância pelos literatos, que se tornaram o fundamento da sua criatividade na confrontação com a realidade presente. Vindo de S. Pedro de Rio Seco, na raia, para Coimbra estudar, passou depois pelo no Brasil, fixando-se mais tarde definitivamente em França, sobretudo numa vila da Côte d’Azur. Distante de Lisboa, Porto ou de Paris onde os intelectuais enfrentam publicamente as questões sociais. No pós-25 de Abril, estando muito presente em Portugal, sobretudo pelo pensamento, as suas reflexões acharam-se então associadas às tomadas de decisão e estamos certos que influenciaram alguns decidores políticos. Supomos que rejeitou um posto ministerial. O Fascismo nunca Existiu, Os Militares e o Poder, O Complexo de Marx são obras – recolha de artigos e estudos – surgidas no fogo da luta de ideias e das opções da política nacional. No embriagamento então aflorado, elas comportam um exemplo de moderação, ou de inadaptação de certos ao exercício do poder estatal – um alerta ou travão à ubris de risco indescortinável.

Esse trajecto acorda-se com o distanciamento do social que a sua obra manifesta, centrada no fenómeno criativo e na personalidade cultural dos autores, na linha dos modernistas. A sua figura, a sua gestual inserem-se numa via intimista, controlada, aproximando-se do moralismo camusiano, esteticamente sedutora, mas consciente de não incluir o pathos, pela envolvência circunscrita ao espaço individual. O seu elogio da preguiça – que é negado pela extensão dos seus escritos – associamo-lo à ideia de autocontrole, precavendo o cometimento de passos em falso ou de paixões incontroláveis.

Tanto em Portugal, como inclusivamente em França, diversos factores internacionais, quando o universo socialista cedeu perante o liberalismo, propiciaram a dominância do individualismo estético pelo que o papel social da obra literária, – o seu enraizamento na sociedade do seu tempo – foi relegado dando lugar à vaga do best-seller. Imposta pelos novos meios de comunicação e de publicidade, transformou-se num vulgar produto rentabilizável, obscurecendo o conteúdo biográfico, psicológico, social e estético inerente à verdadeira obra literária. Tal emergência estaria fora dos cálculos, mas surge socialmente como um risco a rejeitar pelo ensaísta de velha e verdadeira cepa.

No exercício da sua dialéctica, E.L. contrapõe a vida, embora frágil, aos escritos, aquela sendo o verdadeiro real, enquanto de letras pode-se passar. Ora, ora, quem deixa hoje de valorizar a sua vida com o acesso às formas várias que a escrita a assume? O pensador mostra-se insignificante, mas a sua imensa obra escrita aí está como um marco da cultura que os portugueses, de hoje como de amanhã, não podem ignorar, por inserir-se no âmago da sua herança cultural.
 

*Daniel Lacerda
Director da revista Latitudes. Cahiers Lusophones
Texto inédito gentilmente enviado pelo Autor para Ler Eduardo Lourenço