quinta-feira, 16 de maio de 2013

Pensar Nove Décadas de Amizade (nº 40): Adriano Lourenço de Faria*



Eduardo e Adriano Lourenço de Faria, em Vence.


 A [este] convite que muito me honra, não podia recusar-me embarcando nessa espécie de navio a que se chamou Pensar nove décadas de Amizade, em homenagem a Eduardo Lourenço, quando agora completa 90 anos de idade.

Naturalmente que, na minha condição de irmão, ressalvado o campo da análise e juízos sobre a sua obra, não podia enjeitar a ideia de que, por este facto, estaria em condições privilegiadas para poder acrescentar mais um outro testemunho àqueles que, por gosto e amizade, vêm de há muito a ser referenciados pelos seus amigos e admiradores mais próximos, sempre em abono da sua humana e singular personalidade.

Assim poderá ser, ainda que o espaço para o comentário neste domínio do circunstancial se tenha vindo naturalmente a reduzir (mas terá…?) por força do carácter confessional da escrita de Eduardo Lourenço e, sobretudo, porque é sem defesas e anteparos que sempre se tem vindo a expor, sem reservas, nas inúmeras entrevistas para as quais, de há longos anos, se tem vindo a disponibilizar.

Ainda que não de todo a este propósito, gostaria todavia e desde já salientar que, entre as virtudes que conformam o seu carácter, e que certamente não vão deixar de constar dos depoimentos aqui apresentados, aquele que mais sentidamente valorizo, como irmão, a par ou dentro do que nele é revelador de uma disponibilidade sem limites (ele não sabe dizer não, comenta-se) é a que, confessamente, é assim por ele expressa: (…) «Tenho uma enorme incapacidade de ferir os outros e, quando isso acontece entro no domínio da tragédia, tragédia que eu assumo». (…)

Tragédia que assume, testemunho eu, como exemplo, apenas e só porque, no termo dos múltiplos colóquios em que intervém, descobre não ter referenciado certas pessoas presentes no auditório, das quais não se terá dado conta ou das quais, pura e simplesmente, se esqueceu…

Vendo-o tantas vezes penalizado em situações deste tipo, já me tenho sentido obrigado (o que por vezes lhe transmito) a telefonar às pessoas em causa, sobretudo àquelas que são do nosso mútuo conhecimento.

A expressar o que julgo releva, a outro nível, de um sentimento da mesma natureza, é o que retiro de uma carta (redigida em “papel branco amarelecido” como diria o meu amigo João Nuno Alçada, que a tomou a seu cargo) endereçada a Jorge de Sena, em resposta a uma posição por ele assumida a propósito de Camões.

Depois de página e meia redigida num tom que, recordo, de ríspida discordância, tal carta é abruptamente suspensa e sem a sua assinatura.

Nunca procurei junto de meu irmão a razão destes factos mas, pelo que dele conheço, a sua esferográfica (bic, como o José Carlos Vasconcelos notou há já muitos anos) ter-se-á recusado a prosseguir para deixar na página em branco, e por inteiro, Jorge de Sena - como intelectual, como amigo e, sobretudo, como pessoa.

É assim para mim algo de comovente que, um homem de quem somos devedores das mais profundas e lúcidas reflexões sobre nós e o nosso tempo tenha podido concluir que, «talvez a única coisa verdadeiramente importante seja atravessar a vida sem magoar os outros e sem ser magoado pelos outros»(…).

Os testemunhos que aqui vou deixar são essencialmente referidos aos tempos de Coimbra já que, até aqui, a minha convivência com o meu irmão foi muito intermitente e praticamente reduzida aos períodos de férias, quando frequentava o Colégio Militar.

Foi então naturalmente em Coimbra que, a certa altura, me foi dado perceber porque é que, no meio estudantil universitário o Eduardo começou cedo a ser notado como um “rapaz muito inteligente”.

Mais do que perceber isso, o facto de, pela primeira vez, ocuparmos quartos contíguos (na casa que o nosso pai então veio adquirir, após o seu regresso de África) veio permitir, ao adolescente que eu então era, constatar que o seu quarto, bem para além de um simples lugar de estudo se oferecia já como um inequívoco lugar de exigente reflexão.

Dispenso-me dos pormenores do “modus faciendi” que então me levaram a esta constatação (dos quais, porventura, meu irmão, não sabe da missa metade…) mas foi de facto a partir daqui, por “mérito” desta já adivinhada e clandestina curiosidade, (a permitir-me alternar Gorky e Dostoievsky com Júlio Verne e os piratas de Salgari) que vim a tornar-me fã do Eduardo (se bem que a sério, a sério, só após Heterodoxia I) começando a aparecer aqui e ali, onde sabia ir intervir, normalmente no C A D C que então frequentava como católico progressista (será assim, Eduardo?).

A propósito, lembro-me bem da pergunta que um dia me fez um dos seus mais conhecidos dirigentes (figura de ulterior notoriedade, como Professor de Direito e interventor político): sabe, Faria, o que mais admiro no seu irmão e que constituiu para mim um verdadeiro espectáculo? E respondendo de imediato: vê-lo pensar!

Julgo que depois, bem mais recentemente, muitas outras pessoas, para além dos seus mais próximos amigos e admiradores, tenham podido ser testemunhas disto mesmo: vê-lo pensar. Só o José Carlos de Vasconcelos, como amigo que é de longa data do meu irmão, do qual é sem dúvida o maior arquivista das acções e gestos do quotidiano, teria aqui autoridade para resistir dizer, como imagino, qualquer coisa como isto: bem, eu também tenho muitas vezes a oportunidade de vê-lo descompensar…

E tem, de facto, como mostra, com o humor que se lhe reconhece, no texto por ele dedicado ao Eduardo Lourenço na Colóquio do Congresso Internacional, a ele consagrado quando dos seus 85 anos.

Então, um quadro de três pequenas histórias com Eduardo Lourenço em fundo.

Um dia, ao passar no largo em frente da Faculdade de Letras (hoje Biblioteca Geral) para me dirigir à Porta Férrea, deparei-me com um numeroso grupo de estudantes que, em círculo, gozava dois caloiros que, no seu centro, com gáudio geral, obedeciam, como era da praxe, ao que lhes era determinado. Acontece que, com a mais imperdoável inocência, me aproximei do grupo, um ou dois minutos, para ver o que no centro do círculo se passava.

Não sei porque mágicos processos (já na altura se falava da importância do cheiro na detecção de caloiros) alguém reconheceu em mim este inferior estatuto e, logo ali, começo a ser empurrado e arrastado pelos mais afoitos.

Foi quando, neste preciso momento, o Eduardo, ao sair da Faculdade e apercebendo-se de imediato do que se passava, interrompeu, num tom alto e furibundo: “O que é que estão a fazer, à força, com o meu irmão?”

A confusão que então se gerou, com empurrões e socos (e da qual o meu irmão havia de sair com os óculos partidos), só veio a serenar quando alguém o reconheceu como Assistente na Faculdade e resolve intervir para apaziguar os ânimos.

E assim teve o Eduardo a oportunidade de, ainda que com a minha colaboração, fazer prática do que sempre foi: confessadamente anti-praxista, na linha, aliás, que era da posição assumida pelos dos seus amigos neorrealistas.
E uma segunda história, agora referida ao militar Eduardo Lourenço de Faria, a frequentar o curso de milicianos no Quartel de Infantaria 12, em Coimbra. Ao que suponho (e aqui o Eduardo não me perdoará...) o seu desempenho ali não terá estado, digamos, à altura dos seus superiores pergaminhos académicos… E com estes fundamentos: um dia, na Guarda, veio-me parar às mãos uma espécie de postal do Colégio Militar (julgo eu, ilustrado pelos seus camaradas, a propósito de um qualquer momento festivo) em que aparecia representado suspenso no pescoço de um cavalo a galope… Mas é já em período de formação como oficial miliciano, que assisto, com espanto, a esta coisa extraordinária: meu irmão a sair de casa, a correr (ainda a trincar um papo-seco) e entrar na formatura, quando o pelotão de que fazia parte, passava à nossa porta a descer a rua dos Combatentes…

Mas a história acaba bem, a redimi-lo, de todo em todo, do seu supostamente menos conseguido desempenho enquanto “recruta”. A verdade é que, quando foi preciso escolher quem deveria assumir a responsabilidade de proferir o discurso na soleníssima cerimónia do juramento de bandeira foi ele o escolhido.

E diz quem viu, as lágrimas deslizaram furtivamente pelo rosto da Drª Dionísia Camões, a respeitadíssima e austera reitora do Liceu Infanta D. Maria…

E uma última e recente história do Eduardo no seu melhor (e melhor, mesmo, para mim, como irmão, como se compreenderá). Há cerca de um mês, a meio de um telefonema de Vence, disse-me: “Olha, vou mandar-te uma coisa”. Não devia perguntar, mas perguntei: “o que é?” E respondeu: “depois verás”.

E vi. Três dias depois, uma carta que tinha fechada e pronta me enviar pelo Natal de há três anos! Carta que reabriu, apenas, para acrescentar em post scriptum uma explicação de todo desnecessária…

Guardarei esta carta com o carinho que merece, renovada a esperança de que ainda um dia possam ver a luz do dia as desaparecidas páginas da Casa Perdida

A celebração dos 90 anos de Eduardo Lourenço, como todas da mesma natureza, não pode deixar de compreender-se como um acto de celebração da vida. Neste caso, no meu reconhecimento como irmão, de uma vida que tenho por exemplar, lembrado então necessariamente o lugar onde ela mergulha as primeiras e mais longínquas raízes. S. Pedro do Rio Seco, a aldeia “árida e pobre” em que nasceu e de onde guarda as mais impressivas memórias da sua infância “quando tudo era sempre nas coisas e nas almas e onde Cristo «(que toda a gente tratava por Nosso Senhor…) era dono das searas e das vinhas, pois ele mesmo era pão e vinho e sobretudo senhor da morte, reinava ainda sobre a terra».

A esta hora, também já nossa irmã, carmelita no Brasil, terá endereçado de Belém, lá dos confins do Pará, a sempre mais cara das mensagens recebidas por quem “gostava que aquilo que vem no Credo fosse verdadeiro”, a assegurar-lhe, uma vez mais Diante de Deus, um lugar no seu Paraíso…

A mim, como irmão, gostaria um dia de o poder imaginar à porta desse mesmo Paraíso a ser recebido como a Irene preta, Irene boa, também ela sempre de bom humor (como é do poema de Manuel Bandeira que ambos conhecemos de cor) pelo mesmo S. Pedro Bonachão: Entre Eduardo, você não precisa pedir licença.

O mais tarde possível, já se vê, para podermos continuar a usufruir da Felicidade de o termos connosco, como agora, neste tempo em que, com ele, festejamos, o dia dos seus anos.




*Adriano Lourenço de Faria, Professor. Irmão de Eduardo Lourenço.
Texto inédito gentilmente enviado pelo Autor para Ler Eduardo Lourenço.