quinta-feira, 16 de maio de 2013

Pensar Nove Décadas de Amizade (nº 45): Mário Dionísio*



Mário Dionísio em 1986

(foto de Inácio Ludgero)


A luta entre neo-realismo e surrealismo foi em parte um equívoco a que o nosso gueto forçosamente nos levou. Ao contrário do que aconteceu em França, o surrealismo em Portugal é posterior ao neo-realismo. Lá, muitos surrealistas, a começar por Aragon e Éluard, se tornaram comunistas e deram então à sua obra um cunho directamente social e político. Aqui, pelo contrário, foram os neo-realistas, não muitos na verdade, que se tornaram surrealistas e se afastaram duma frente de combate que não lhes oferecia o espírito de renovação estética a que aspiravam. Aqui, ao contrário do que aconteceu em França, é a poesia de carácter directamente social que adoptará métodos criativos que só o surrealismo poderia fornecer-lhes. Não foi o que eu próprio fiz n’ O Riso Dissonante, por exemplo, ou no Feu qui dort: «une pluie de taureaux est tombée sur la ville»? Dizer a verdade é bom.
Entretanto, valerá a pena ao menos insistir em que: primeiro, nunca concordei com a designação de neo-realismo, que se deve a uma infeliz inspiração de momento do Joaquim Namorado, meu grande amigo até à morte; segundo, para mim, «neo-realismo» não era nem poderia ser uma outra maneira de, por razões de censura, dizer «realismo socialista»; terceiro, para mim ainda, o neo-realismo deveria ser a expressão estética duma visão marxista do mundo e, sendo esta tão complexa como se sabe (quem o sabe), aquele movimento – nunca «escola» – teria de desdobrar-se em diversas maneiras, gostos, soluções imprevisíveis – o que efectivamente aconteceu. O seu domínio seria o do «extremamente complexo conhecimento dialéctico do homem» (Lénine). Complexo e dialéctico, façam favor de tomar nota. Seria a voz duma classe em ascensão, de um mundo (um homem) necessariamente novo, que, como tal, teria de integrar toda a herança do passado, incluindo a da classe a que se opunha. Aí estava a utopia. [Além do que pode ler-se nas linhas e entrelinhas de quase tudo o que escrevi sobre o assunto, deverei lembrar especialmente a entrevista “Que é o neo-realismo?” (O Primeiro de Janeiro, Porto, 3/1/45), o artigo “O sonho e as Mãos” (Vértice, nº124 e nº 125. Coimbra, Janeiro e Fevereiro de 1954, pp.45 e 93) ou a conferência Conflito e Unidade da Arte Contemporânea (Iniciativas Editoriais, Lisboa, 1958). Sem falar n’A Paleta e o Mundo.]
Mas que trapalhadas causou sempre a palavra «classe» introduzida no domínio estético, mesmo nos que a defendiam! Que, nos que a rejeitavam, nem falar! Escrevi uma vez um artiguinho, dando largas aliás ao meu interesse ab initio por Pessoa, de modo algum considerando-o «expoente» apenas «dum período literário (...) secundíssimo». [Mário Sacramento, Fernando Pessoa, poeta da Hora Absurda, Contraponto, Lisboa, s/d, p.14.] Pois logo o Eduardo Lourenço me veio puxar as orelhas (sem me citar o nome, bem verdade, nem isso mereceria...) noutro artigo, inequivocamente intitulado “Explicação pelo inferior ou a crítica sem classe”. [Mário Dionísio, “Alberto Caeiro, poeta de classe”, Ler, Lisboa, 8/XI/52. Eduardo Lourenço, “Explicação pelo inferior ou a crítica sem classe”. O Primeiro de Janeiro, Porto, 26/XI/52.] Não haveria mesmo classes? Ou os ar­tistas, além de superá-las, como sempre defendi, conseguiriam, por divina concessão, existir fora de­las?
Se houvesse paciência para ler tudo o que, pior ou melhor, escrevi desde o princípio (nem ao meu maior inimigo o aconselho), ver-se-ia que nunca o peso da classe na obra dum artista me fez esquecer que, apesar e através de tudo o que ela, classe, impõe, essa obra revela o que há de mais profundo e permanente em todo o homem.





*Mário Dionísio (Lisboa, 1916 - 1993). Escritor, Pintor e Professor. 
O excerto que aqui se reproduz foi publicado em Autobiografia, edições O Jornal, Lisboa, 1987, pp. 28-30.