Ler Eduardo Lourenço gosta de insistir na ideia seguinte: uma das melhores formas de tentar ser merecedor dos nossos grandes escritores é realizar um coerente e rigoroso programa de traduções e edições dos seus textos em outras línguas. Caso contrário, a divulgação das suas obras ficará irremediavelmente confinada aos leitores que conhecem português. Claro que, mesmo no amplíssimo universo da lusofonia, é possível e até exigível que a circulação dos autores portugueses seja realizada de modo mais efectivo e articulado – mas isso é conversa para outra ocasião.
Eduardo Lourenço não é porventura dos ensaístas portugueses que terá maior razão de queixa quanto à tradução dos seus escritos para outras línguas. No entanto, essas traduções devem-se quase sempre aos esforços individuais de admiradores da sua obra, destacando-se entre eles o trabalho de sua Mulher, Annie Faria, falecida há cerca de um ano, pela tradução de quase todas as versões em francês dos ensaios do marido. Ainda assim, talvez continue a faltar uma verdadeira e sistemática política de tradução dos livros mais relevantes do autor de O Labirinto da Saudade.
Se, por um lado, é digna de nota a (inesperada?) edição em sérvio de Razočarana Evropa: prilozi za jednu evropsku mitologiju, tarefa extremamente meritória levada a cabo por Anamarija Marinovič (Mediterran Publishing, 2011), por outro, é difícil de compreender que em inglês não haja, tanto quanto Ler Eduardo Lourenço possa afiançar, mais do que duas edições realizadas nos Estados Unidos: Chaos and Splendor and Other Essays (University of Massachusetts Dartmouth, 2002) e This little lusitanian house: essays on portuguese culture (Brown, 2003).
Se se atentar, por exemplo, na repercussão que a obra de Fernando Pessoa tem no mundo anglófono, não deixa de ser surpreendente e lamentável que ainda não existam disponíveis em tradução inglesa frases tão memoráveis como estas:
«De duas uma: ou essa leitura não o subtrai à tranquilidade morna da sua existência, inscrevendo-se apenas nela como uma “informação” suplementar, ressentida acaso como uma banalidade; ou essa leitura arranca o espírito da sua claridade habitual, entenebrece-o, destilando um pavor feliz na falsa infinitude da sua consciência sonâmbula. Só neste último caso o poema existe, abrindo em nós avenidas para nenhum jardim, inundando de luz nenhum espaço que possa ser nomeado mas de tal modo que claramente percebemos que devimos outro, quer dizer, o mesmo, mas como iluminado por dentro e sem fim. É a “joy for ever” de Keats, a existência do poema em nós e nós nele», Pessoa Revisitado – Leitura Estruturante do Drama em Gente, Porto, Editorial Inova, 1978, p. 16.
Relembre-se o contexto. Eduardo Lourenço acabara de citar dois poemas de Fernando Pessoa, respectivamente “Não meu, não meu é quanto escrevo” e o soneto “Súbita mão de algum fantasma oculto”, e partilha, com o leitor da sua obra Pessoa Revisitado, o testemunho da sua experiência face ao génio do poeta.
Ora, deste excerto do capítulo “Considerações pouco ou nada intempestivas”, são já felizmente conhecidas versões em espanhol (por Ana Márquez), em francês (por Annie de Faria) e até em italiano (por Daniela Stegagno que, assinale-se, é a autora da primeira tese de doutoramento dedicada à obra do ensaísta). Em homenagem ao trabalho silencioso e imprescindível dos tradutores (neste caso, das tradutoras), Ler Eduardo Lourenço recupera o modo como estas luminosas palavras de Pessoa Revisitado parecem ganhar novo fôlego noutras línguas, alargando assim o raio de influência do pensamento do ensaísta:
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Foto Ler Eduardo Lourenço |
I
«Una de dos: o bien esta lectura no impide al lector proseguir tranquilamente su cómoda existencia, incorporando aquélla solamente como una “información” complementaria, sentida al fondo como una banalidade; o bien esa lectura despoja al espíritu de su claridad habitual, entenebreciéndolo, destilando un pavor feliz en el falso infinito de su conciencia sonámbula. Sólo en este último caso existe el poema, abriendo dentro de nosotros avenidas que no conducen a ningún jardín, inundando de luz ningún espacio que podamos nombrar, pero haciéndolo de tal manera que advertimos claramente que nos hemos transformado en otro, es decir, el mismo, pero infinito y como iluminado por dentro. Es la “joy for ever” de Keats, la existencia del poema en nosotros y de nosotros en él», Pessoa Revisitado – Lectura estructurante del “drama en gente”, Valencia, Pre-textos, 2006, traducción de Ana Márquez, p. 13.
II
«De deux choses l’une: ou cette lecture nous soustrait à la tiède tranquillité de notre existence, s’inscrivant seulement en elle comme “information” supplémentaire, ressentie peut-être comme une banalité; ou cette lecture arrache notre esprit à son clarté habituelle, l’obscurcit, distillant un effroi heureux dans la fausse infinitude de sa conscience de somnambule. Dans ce dernier cas seulement, le poème existe, ouvrant en nous des avenues qui ne mènent à aucun jardin, inondant de lumière un espace qui n’a pas de nom, mais de telle manière que nous sentons clairement que nous devenons autre, c'est-à-dire, la même, mais comme éclairé au-dedans et à jamais. C'est la joy for ever de Keats, l'existence du poème en nous, et de nous en lui», Pessoa l’étranger absolu – Essai, Paris, éditions Métaillé, 1990, traduit du portugais par Annie de Faria, p. 9.
III
«Una delle due: o questa lettura non sottrae lo spirito alla tiepida tranquillità della sua esistenza e vi si iscrive solo come una “informazione” supplementare, considerata quasi una banalità; oppure lo strappa dalla sua chiarezza abituale e lo offusca, infondendo un felice timore nella falsa infinitezza della sua coscienza sonnambula. Solo in quest’ultimo caso la poesia esiste, apre in noi viali per nessun giardino, inonda di luce nessuno spazio che possa essere nominato, ma in modo che noi percepiamo chiaramente che devimos altro, vale a dire, lo stesso, ma in modo tale che percepiamo chiaramente che divientiamo altro, ossia, lo stesso, ma come illuminato dall’interno e senza fine . È la “joy for ever” di Keats, l'esistenza della poesia in noi e di noi in essa», Fernando Re Della Nostra Baviera – Dieci saggi su Fernando Pessoa, Roma, edizione Empirìa, 1997, a cura di Daniela Stegagno, p. 13.
Registe-se
para terminar que, no caso da edição francesa de Pessoa Revisitado, houve
apenas uma alteração no título, ao contrário da versão espanhola que traduziu
literalmente o nome do livro que, curiosamente, também sofrera ligeiras
alterações nas várias edições portuguesas. Já Daniela Stegagno decidiu traduzir
o capítulo “Considerazioni poco o affatto intempestive”, juntamente com quatro
ensaios anteriormente aparecidos em Poesia e Metafísica (“Fernando Pessoa o lo
straniero assoluto”, “Pessoa o la realtà como finzione”, “Considerazioni sul
Proto-Pessoa” e “L’infinito Pessoa”) para incluir no seu Fernando Re Della
Nostra Baviera que contém apenas cinco capítulos da edição portuguesa com o
título homónimo.