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José-Augusto França |
Em tempos não muito recuados, já Ler Eduardo Lourenço se referiu à interessantíssima obra de José-Augusto França Memórias para o Ano 2000 (Livros Horizonte, 2000). Conhecida como é a longa amizade entre o historiador (e crítico de arte) e Eduardo Lourenço, não custa perceber como nesse volume memorialístico (género algo raro na cultura portuguesa) sejam feitas inúmeras referências ao autor de O Espelho Imaginário. Muito recentemente, José-Augusto França decidiu dar à estampa uma espécie de sequela a que chamou simplesmente Memórias para após 2000 (Livros Horizonte, 2013). Trata-se, no fundo, de uma espécie de apêndice ao volume de há treze anos atrás pelo que não deixa de haver uma certa decepção, se fizermos uma comparação entre as duas Memórias. O livro agora editado é mais curto e, por vezes, algo redundante para quem tenha lido o anterior. Pouco importa. O segundo tomo dá ao leitor a ocasião para regressar ao primeiro e, por exemplo, revisitar a tão conturbada como fascinante época do pós-25 de Abril.
José-Augusto França relembra esse período e narra a proposta que fez ao autor de O Fascismo Nunca Existiu para criarem um partido moderadamente radical (ou seria antes radicalmente moderado?) e com programa ideológico talvez vagamente inspirado num famoso ready-made de Marcel Duchamp. No excerto que a seguir se publica, José-Augusto França evoca também um abaixo-assinado que Eduardo Lourenço promoveu nesse mesmo ano e que foi susbscrito por 58 pessoas. Dado que as Memórias não esclarecem exactamente de que texto se trata, Ler Eduardo Lourenço recupera o texto que foi publicado no Expresso e convida os seus visitantes a descobrir quem foram os subscritores que se juntaram a Eduardo Lourenço, José Augusto Seabra, Liberto Cruz, José-Augusto França, João Palma-Ferreira, Fernando Echevarria, Vergílio Ferreira e José Sasportes. E apetece mesmo perguntar: não poderia ter sido esta uma possível Comissão Política do Extremo Centro, o partido imaginário que nunca chegou a ser fundado?
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Fountain (Duchamp) |
«Em Março [de 1975], eu decidira inscrever-me no PS pedindo para isso a apresentação da praxe, a dois amigos vindos do estrangeiro por preferência significativa: Sarmento Pimentel e Eduardo Lourenço. As razões da adesão, dei-as num artigo que me pediram do jornal do partido (…). Por essa altura, em conversa incerta e displicente, já em despedida no patamar da minha porta, pelas duas da manhã, como tais coisas se fazem, ainda propus ao Lourenço a fundação de um partido de Extremo Centro único extremismo possível ou único centrismo lógico na situação utópica que se ia nacionalmente gerando. Teria como emblema apropriado, e como instrumento de trabalho, um autoclismo, purificador de fezes de meio século, e lavagem de nós próprios, bem precisa... Defendera-o muitos anos antes do 25 de Abril, ante um cordial agente da oposição católica que me veio à fala, com isso se assustando. E tanto que, depois, ele seria marcelista e depois ainda soarista, simpaticamente sempre. De qualquer modo, uma acção de bom senso para opor algo aos histerismos comunista do Sul e anti-comunista do Norte, com fronteira em Rio Maior. À sua falta, considerei-me, como sempre disse, da ala anarquista do PS – solitário, felizmente e ipso facto, nessa posição.
Logo em Junho os resultados eleitorais foram ironicamente contestados por [Álvaro] Cunhal ao explicar a um jornal italiano que «o processo eleitoral não era mais do que um complemento marginal da dinâmica revolucionária»: sempre o fantasma de 1917, mantido num atraso mental e político de sessenta anos. O oficial mais culto e crítico dos Capitães de Abril, Melo Antunes, que assinara um famoso mas improfícuo Documento dos Nove de urgentes gáspeas no MFA [Movimento das Forças Armadas], comentou sibilinamente para um jornal francês que «os comunistas (tinham sido) lógicos para si próprios»... Encontrei-o, mais tarde, desiludido e lento, contratado pela UNESCO em Paris.
(...)
Cunhal entrara em paranóia; provocou afrontamentos no 1º de Maio seguinte e no caso simbólico da tomada do jornal República (terá o filme de Ginette Lavigne sido mostrado em Portugal?), levando, por inacreditável falta táctica, a uma manifestação enorme de resposta e apoio ao PS, três dias depois, em 22 de Maio – que me passou à porta, tendo-me nela levado até S. Pedro de Alcântara, facto único na minha biografia.
Como não desejaria iludir-se Cunhal se, dias atrás, a Associação Portuguesa de Escritores, num congresso dominado pelos comunistas, ao fim aclamara Vasco Gonçalves, a pé e unânime? Não terei sido única mas sem dúvida rara excepção, ao ficar sentado, na sala sobreexcitada, à vinda ao palco do coronel primeiro-ministro que discursou qualquer coisa a propósito de tanto sucesso...
Não fui, porém, excepção, na minha própria comunicação (que publiquei no Jornal Novo), friamente recebida, como a de Sophia [Mello Breyner], voltadas ambas para uma liberdade de criação e de expressão que nos parecia ser condição necessária da revolução que muitos de nós ali presentes (embora nem sempre capazes de reivindicar a sua natureza) tínhamos ajudado a fazer. Enfim...
Pouco antes, o Eduardo Lourenço procurara-me na Universidade, com o José Augusto Seabra e um texto-proclamação contra a ditadura intelectual que se instaurava. Redigira-o ele, aumentara-o o Seabra, e devia acrescentá-lo eu, mas disso me abstive para evitar mais confusões de estilo, e apenas o subscrevi. Outras assinaturas o apoiaram depois, como a de Sophia de Mello Breyner (e de quem mais?) que apareceram na publicação da imprensa, que não encontro» (Memórias para o Ano 2000, pp. 242-243).