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Agustina Bessa-Luís |
A importância política que uma sociedade concede aos seus escritores, artistas, sábios e mais latamente ao que se costuma designar como “intelectuais” podia ser um excelente barómetro do seu grau de democraticidade. Maior é essa importância, menor é o tónus democrático dessa sociedade. Por isso, em Inglaterra ou nos Estados Unidos, os “intelectuais” gozam, enquanto tais, de tão pouca importância política. São sociedades sem querela teológica interna, ou por coerência sócio-ideológica profunda ou por ultrapassagem histórica desse tipo de antagonismo de fundo. Emerson ou Bertrand Russell não desmentem este lugar-comum da vivência democrática anglo-saxónica e, hoje, também nórdica. Só nos países do “sul”, o intelectual continua a desempenhar o papel, real ou fictício, que o pastor protestante, por livre consenso, se atribui e lhe é atribuído como “director de consciência”, inseparavelmente religiosa e cívica. Direcção de consciência que tem pouco a ver com aquilo que assim denominávamos no nosso mundo católico, pois, no mundo protestante, o pastor é apenas uma mera “especialização” da condição pastoral de cada cristão comum. Não era em nome da política que homens como Thoreau, Emerson, Bernard Shaw ou Bertrand Russell se dirigiam ao seu público, mas como “moralistas” e sempre a título individual.
Outra é a tradição ibérica, a dos Unamuno, dos Ortega y Gasset ou de António Sérgio. Por determinação própria ou pelo contexto, as respectivas “mensagens” adquirem logo uma aura e são transcritas, sem excepção, no registo já pronto da política. O fenómeno não teria grande interesse se fosse apenas o da mera inscrição numa esfera a que, ao fim e ao cabo, nenhum acto público com algum relevo escapa. O que é interessante é verificar que essa leitura é, de algum modo, uma leitura perversa ou, pelo menos, pervertida. A opinião política do grande escritor, político ou sábio vê-se logo dotada de uma exemplaridade, de um suplemento de lucidez acerca dos negócios públicos que, em geral, pouco ou nada devem a uma reflexão séria dessa ordem e tudo à excelência ou à reputação devidas ou merecidas pelo talento ou pelo génio numa ordem de valores que nada tem a ver com a primeira.
Na realidade, trata-se menos de uma confusão de género – ninguém se deixa abusar realmente por essa amálgama entre valores diferentes – que de uma transferência de reputação do seu lugar próprio para outro indevido. Em suma, uma clássica operação de publicidade. Um signo de valor reconhecido aceita ser associado a um produto sem relação alguma com esse valor: McEnroe, por exemplo, a uma máquina de barbear. A diferença entre o uso publicitário de uma reputação desportiva e de uma reputação intelectual será apenas a dos efeitos de feed-back, dos riscos inerentes à segunda de que a primeira está imune.
A recente adesão de Agustina Bessa-Luís à candidatura de Freitas do Amaral parece ter suscitado, além da surpresa, algum escândalo. Talvez por se saber que a autora de Sibila jogara na última batalha presidencial uma carta diversa da actual. A surpresa e o escândalo mostram que não nos habituámos ainda a servir-nos do espaço de livre escolha criado pelo 25 de Abril. Numa sociedade livre, nada é mais precioso que o direito ao erro e à contradição, se é que alguém está em condições de os definir sem tocar nas bases da própria vivência democrática. É excelente que Agustina possa escolher quem ela acha com qualidades para ser Presidente, como é excelente que cada um de nós, com idêntico privilégio de escolha, opte por outro candidato.
Talvez a única coisa estranha tenha sido o seu reflexo de justificação dessa escolha. Ninguém pode e ninguém tem o direito de exigir esse género de justificação. Exigiu-o a si mesma? Tinha consciência de que esse seu gesto suscitaria estranheza ou espanto, dada a sua atitude passada? É problema seu, não nosso. Agustina tem todo o direito de usar o seu capital de celebridade como bem o entende e não é culpa dela se a nossa sociedade, ainda pouco democrática, confere ao seu gesto uma importância e um alcance políticos desmedidos. O reverso da medalha é que tal gesto, por sua vez, terá de ser apreciado e julgado como gesto político que é, e não como mera atitude “artística” que não tivesse consequências de ordem prática. Numa sociedade democrática, o “alistamento” político de um escritor não tem mais importância do que o de outro cidadão qualquer. Mas também não tem menos.
A adesão de Agustina é um acto político natural. Todavia, como ela é, cultural e sociologicamente, uma pessoa “representativa”, além de natural, esse acto é relevante e exemplar pela simples razão que suscita comentários (este, por exemplo) e, iniludivelmente, imitação e aplauso.
Não sendo a obra romanesca de Agustina uma obra de incidências ou preocupações “políticas” de imediata relevância, uma opção tão clara dessa ordem pode de facto surpreender. Alguns esperariam, dada a sua visão desencantada da História ou o olhar cruel que costuma pousar sobre a comédia social, privada e pública, que Agustina tivesse preferido o papel mais seguro ou mais cómodo de “espectadora” dos conflitos do nosso baixo mundo. Creio que seria uma má transcrição da tonalidade geral da sua obra, do seu profundo gosto de autoridade e ordem, sob formas ou arquétipos ancestrais, bem presentes na sociedade nortenha, de que é a Xerazade incansável. A escolha política de Agustina parece-me certa com o sentido e o tom da sua ficção. Não é que esta se resuma naquela – seria impensável –, mas não há contradição entre ambos. Como Faulkner, ideologicamente, a grande Agustina é uma “sulista”, o aedo de um Portugal profundo, que não corre a foguetes, senhorial e plebeu, desdenhosa do “democratismo” apressado e urbano que domina a cena política, capaz de sarcasmos e ironia em relação ao seu próprio meio e mundo, mas vivendo dele e nele pela imaginação e fruição de cada instante. Não é por acaso que Agustina se reporta a um enraizamento comum dela e do seu candidato no mesmo húmus arcaizante, na mesma memória familiar, em sentido próprio, no mesmo “meio”.
Decididamente, Agustina está agora no seu sítio certo. Aquele onde nunca deixou de estar, antes e depois do 25 de Abril. Talvez o que não estivesse certo era outros quererem-na, ou supô-la, num lugar que não era o dela. Não há, pois, escândalo nem contradição séria na actual tomada de posição política de Agustina, por mais espectacular que tenha parecido. Ninguém tem culpa que os outros se enganem sobre nós. Nem na sua obra nem nas suas declarações conhecidas ou actos públicos bem lidos houve alguma vez conceitos ou gestos que a situassem no que se chama, por convenção útil, a esquerda portuguesa. A inscrição de Agustina no espaço da direita é-lhe conatural, senão consubstancial, por mais que custe a muitos dos seus admiradores ou revolte outros. Talvez já seja tempo de acabar com uma certa mitologia crítica cultural que, desde o romantismo e, sobretudo, desde a geração de 70 para cá, nos consola das nossas decepções históricas de esquerda, fazendo-nos crer que os “grandes nomes” do nosso panteão literário são todos dessa exaltante família... Não são. As coisas da vida – mesmo da literária – são sempre mais complexas. Também Pessoa não é dessa consoladora estirpe, evidência que, aliás, não encantará Agustina.
O que há de realmente significativo na adesão de Agustina à candidatura do homem que não aprovou a Constituição é a sua conformidade, a sua sintonia íntima com o “tempo português”, tal como dez anos de experimentação democrática o foram modelando. Agustina é “sibila” de ouvido colado à terra, senhora de contas certas mais que de contos, e não costuma embarcar em galeras sem esperança de porto seguro. As aventuras, deixa-as para os seus aventureiros.
É um imenso cansaço que se lê na sua adesão “genealógica” a Freitas do Amaral, aquele que, nos dias que correm, mais se assemelha ao fantasma insepulto de Salazar. Só por vergonha, muito boa e conhecida gente desencantada de Abril e suas pompas não embarca com Agustina na mesma barca doirada. Com Freitas, é todo um mundo que se sabe de novo ou adivinha para onde vai. Ou melhor, onde regressa. Não se trata de programa político (programa político, santo Deus), não se trata de programa social, não se trata de nada. Trata-se só, como Ulisses, de regressar a uma Ítaca pouco governável por excesso de pretendentes, que bastará meter na ordem (estamos em democracia) para gozar de novo as delícias do lar abandonado.
Deste regresso, Agustina nunca desesperou. Ela conhece Ítaca e a sua longa espera. Não fosse ela a mais ilustre Penélope das nossas letras.
* Em Semana de Agustina, sobretudo com a realização do Colóquio Internacional Ética e Política na Obra de Agustina Bessa-Luís, hoje e amanhã na Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa, Ler Eduardo Lourenço recupera “A escolha de Agustina”, um texto magnífico do ensaísta que, recorde-se, foi um dos primeiros exegetas da obra da autora de Sibila. Ao contrário dos primeiros ensaios dedicados a Agustina, centrados sobretudo em livros da escritora (é o caso de “Agustina Bessa-Luís ou o neo-romantismo”, Colóquio. Revista de Artes e Letras, nº 26, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Dezembro de 1963, pp. 43-52 e de “Desconcertante Agustina. A propósito de Os Quatro Rios”, O Tempo e o Modo, nº 22, Lisboa, Dezembro de 1964, pp. 110-117, ambos recolhidos no volume O Canto do Signo), este texto de Eduardo Lourenço foi redigido na sequência do apoio de Agustina à candidatura presidencial de Diogo Freitas do Amaral em 1985 e foi publicado em Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 159, 23/VI/1985, p. 21. Não é, contudo, um mero texto de análise política, como aliás sucede quase sempre quando se trata de Eduardo Lourenço, de quem se aguarda com natural expectativa a conferência de encerramento do Colóquio, amanhã, pelas 16h30m, podendo essa e todas outras sessões plenárias serem seguidas através de transmissão em directo no site http://www.gulbenkian.pt.