«Num certo sentido só falamos de nós. Contudo, as nossas palavras essenciais falam sózinhas. Nós pronunciamo-las para nos falar. A plenitude frágil dessa autonomia uma palavra que é menos nossa do que nós somos dela guarda como o diamante a luz do ser que nos é acessível. Como o diamante ela é o resultado da mais rara das vitórias sobre a noite, opacidade nossa e do mundo, vitória sempre precária pois sob a transparência é fácil descobrir o carvão transfigurado. Essa palavra que é suprema nomeação sem a poder ser totalmente, que pede e suporta a metamorfose permanente que a tira da morte para a vida é um dos nomes da Poesia».
De quem são as palavras deste texto? A imagem que Ler Eduardo Lourenço a seguir reproduz basta, com certeza, para identificar tanto o autor como a data e o local da publicação.
António Ramos Rosa em foto de Nuno Calvet (nunocalvet.com)
Imagem retirada de livropelacapa.blogspot.com
Contudo, este mesmo texto (mas será o mesmo?) irá servir de base, quase cinco anos depois, para o ensaio com o mesmo título que prefacia a famosa antologia de António Ramos Rosa Não posso adiar o coração (Lisboa, Plátano Editora, 1974, Colecção Sagitário, nº 3, pp. 9-16) sendo nesse mesmo ano incluído na primeira edição de Tempo e Poesia (Porto, Editorial Inova, 1974, Colecção Civilização Portuguesa). Refira-se que, nesta reformulação do ensaio, Eduardo Lourenço não só aumenta consideravelmente a extensão do texto inicialmente publicado no Suplemento Literário do Diário de Lisboa (analisando entretanto e em pormenor muitos poemas de Ramos Rosa) como modifica o seu início, suprimindo a frase que hoje aqui se reproduziu. Daí a pergunta? De quem são aquelas palavras? Por que motivo terá o seu autor as suprimido na segunda versão deste texto (e no qual vem a seguinte indicação de data: «Calvi, Abril de 1968 – Nice, Novembro de 1972»)?
A referência a Nice e ao mês de Novembro de 1972 é igualmente importante pois permite ao leitor identificar uma larga fatia deste ensaio com um segundo texto, que ostenta quase o mesmo título “Poética e Poesia de António Ramos Rosa ou o excesso de real” e que, por seu turno, tinha aparecido meses antes no número 15 da revista Colóquio-Letras (Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Setembro de 1973, pp. 34-42). Em suma, o Prefácio a Não posso adiar o coração (tal como o capítulo de Tempo e Poesia) corresponde, grosso modo, à reunião dos artigos do Diário de Lisboa e da Colóquio-Letras. A diferença mais relevante é, afinal, a supressão quase integral do primeiro parágrafo publicado apenas em 1969.
Ler Eduardo Lourenço não ousa discutir esta ou qualquer outra revisão do Autor, como é evidente. Mas nem por isso deixa de reconhecer que o excerto eliminado talvez merecesse ser conhecido. E por isso hoje o recupera, deixando, como sempre, ao critério dos visitantes deste blog uma eventual apreciação acerca desta forma de desleitura que aqui, mais uma vez, se pratica.