quinta-feira, 16 de junho de 2011

Le mystérieux J.Waffler

Ler Eduardo Lourenço não conhece muitos ecos críticos a Heterodoxia I, publicada em 1949. Numa altura em que se aproxima a sua reedição, integrada no primeiro volume das Obras Completas, é com certeza interessante revisitar a (escassa) repercussão pública da estreia em livro do ensaísta. Antes de mais, convém referir a página a ele dedicada por Vitorino Nemésio na sua Leitura Semanal do Diário Popular de 28 de Junho de 1950 (p. 5). Se não quiser perder muito tempo em hemerotecas cheias de pó, o leitor encontra uma versão reimpressa deste texto no volume organizado por Maria Manuel Baptista  que recebeu o título Cartografia Imaginária de Eduardo Lourenço – Dos Críticos (Col. “Cultura Portuguesa”, nº 1, Maia, Ver o Verso, 2004, pp. 95-98). De resto, Maria Manuel Baptista analisa, com algum pormenor, essa crítica de Vitorino Nemésio na sua obra Eduardo Lourenço: A Paixão de Compreender (Porto, ASA, 2003, pp. 38-40).
Menos conhecida parece ser a nota de leitura que aparece no número de 1950 do Bulletin des Êtudes Portugaises, revista que se começou a editar em 1931 (registe-se que, já na década de Setenta do século passado, passou a chamar-se Bulletin des Êtudes Portugaises et Bresilliennes) sob a tutela do Institut Français de Portugal. Durante os seus primeiros anos, o Bulletin foi saindo numa muito proveitosa colaboração com a Imprensa da Universidade de Coimbra e com uma regularidade assinalável. Os últimos tempos da revista (entretanto extinta?), que chegou a ser distribuída pela Livraria Bertrand, parecem ter sido menos fáceis (a julgar, pelo menos, por uma periodicidade muito menos constante), mas a verdade é que a qualidade do Bulletin foi sempre altíssima. Merece particular destaque, na primeira fase  sobretudo, a constante participação de Pierre Hourcade que foi um crítico atentíssimo a tudo o que então se editava no âmbito da literatura portuguesa contemporânea, nomeadamente poesia (recorde-se que Hourcade foi um dos primeiros tradutores e especialistas de Fernando Pessoa), mas também romance e ensaio.

Capa do Bulletin des Êtudes Portugaises(1940)
Pierre Hourcade (foto de mundopessoa.blogs.sapo.pt)


Ora, na secção de crítica do tomo XIV do Bulletin, aparecem quase duas páginas consagradas a Heterodoxia I que, ao contrário do que eventualmente seria de esperar, não foram redigidas por Pierre Hourcade. Dir-se-á que o conteúdo de Heterodoxia, por ser de natureza mais filosófica do que exclusivamente literária, pode ter justificado a excepção. É possível, mas, noutros números do Bulletin depara-se o leitor com recensões do crítico habitual da revista  de obras de António Sérgio ou de José Bacelar, por exemplo. Ora, quem vai então escrever sobre o primeiro livro de Eduardo Lourenço? A recensão aparece assinada por J. Waffler. Ler Eduardo Lourenço assume a sua ignorância, mas a verdade é que os dados disponíveis sobre este crítico de Heterodoxia I são escassíssimos. Começou-se a busca pelo Bulletin des Êtudes Portugaises e os resultados foram no mínimo surpreendentes. Desde o primeiro ao último número da revista com o nome original (nºs 33-34 de 1972-1973), a única participação de (ou até referência a) J.Waffler consiste, curiosamente, na recensão crítica que ele assina ao primeiro livro de Eduardo Lourenço. É verdade que, nesse mesmo nº 14 da revista, antes de Heterodoxia I aparecem, como era habitual, pequenas notas críticas dedicadas a livros de outros autores, entre os quais se salientam Urbano Tavares Rodrigues (Manuel Teixeira Gomes, 1950), Vitorino Nemésio (O Mistério do Paço do Milhafre, 1949), Sophia de Mello Breyner (Coral, 1950), António Quadros (Além da Noite, 1950), Luís Forjasz Trigueiros (Sombra do Tempo, 1950) e Jorge de Sena (Pedra Filosofal, 1950).Serão essas recensões todas da autoria de Waffler? À primeira vista,  dir-se-ia que sim, pois todas aparecem não assinadas antes do texto sobre Heterodoxia I  que acaba precisamente com a indicação do nome do crítico. Ou seja, J.Waffler teria escrito sobre  mais de uma dezena de livros nesse número de 1950. Não parece muito crível, mas enfim. Por outro lado, lendo essas recensões (e algumas delas, pela familiaridade do seu estilo, poderiam perfeitamente ter sido escritas por Pierre Hourcade, mas isto é uma mera conjectura), um outro aspecto merece destaque. É que, enquanto o crítico fala de Urbano, de Nemésio, de Sophia e de Sena de uma forma que se diria costumeira (é assim, por exemplo, que Hourcade naturalmente se refere aos autores que lê e critica), já Eduardo Lourenço vem designado como M.Lourenço o que para quem, na altura, tinha apenas vinte e seis anos parece, no mínimo, excessivo. Há um tom ceremonial neste tratamento  (que, aliás, também se encontra na recensão ao livro de Luís Forjaz Trigueiros) que nem o facto de se ter em conta que o ensaísta era assistente na Universidade de Coimbra parece justificar por completo. Que ilações tirar deste particular, pelo menos em Portugal, tratamento? Serão estas recensões de alguém pouco acostumado a lidar com as actividades literárias portuguesas, facto que ajudaria também a explicar a escassez de referências sobre Waffler que, aliás, tem um nome pouco francófono (o que significará aquele J.?), mas que, pelo vistos, sabia ler português e escrevia na língua de Molière? Será que a análise do texto ajuda a encontrar novas pistas? É o que se vai procurar descobrir, em seguida.



Aos olhos de hoje, a recensão parece quase sempre correcta, embora seja algo discutível a tese de que «há, segundo M. Lourenço, uma evolução contínua do pensamento filosófico». Mas, dever-se-á reconhecer que, no parágrafo imeditamente anterior, J. Waffler faz uma síntese razoavelmente feliz de Heterodoxia I, escrevendo (a tradução é da responsabilidade de Ler Eduardo Lourenço, claro): «Um prólogo fogoso a favor da heterodoxia, um ensaio pessimista sobre a filosofia portuguesa, um requisitório contra aqueles que assassinam os mortos declarando-os inactuais e, por fim e sobretudo, o exame crítico dopensamento hegeliano: como ele foi preparado por toda a história da filosofia e como deve ser, por seu turno, superado. Ao todo, 200 páginas extremamente brilhantes de um espírito particularmente informado e vigoroso». O tom da recensão continua francamente elogioso e termina quase de modo apoteótico com uma fina ironia: «Que M.Lourenço nos ofereça depressa, nos próximos livros, a sua própria filosofia de que apenas nos deixou entrever até agora uma pequena parte. Felizes os alunos de M.Lourenço: têm o raro privilégio de conviver com um mestre ao mesmo tempo erudito e apaixonado. Não estará a filosofia portuguesa, apesar de tão maltratada neste livro, a dar, pelo contrário, um testemunho da sua vitalidade?»
Ler Eduardo Lourenço tem de reconhecer que esta análise da recensão não ajuda grandemente na identificação do misterioso crítico e confessa mesmo que chegou a admitir uma hipótese algo extravagante: será J.Waffler um pseudónimo de um recenseador que quis permanecer incógnito? Felizmente, mão diligente e muito profissional descortinou outra pista, informando acerca uma outra referência a Waffler. De facto, na Revista da Faculdade de Letras de Lisboa do ano seguinte, numa crónica sobre as actividades académicas, assinala-se a vinda de diversos professores estrangeiros à Faculdade. Entre esses visitantes conta-se, como se pode comprovar a seguir,  um tal... Prof. J. Waffler!


Revista da Faculdade de Letras, Tomo XVII, Lisboa, 1951, p. 223.


Terá o Prof. Waffler tropeçado, em alguma livraria lisboeta, na estranha serpente de Migdar da capa de Heterodoxia I, oferecendo-se para fazer a recensão crítica de uma obra representativa da jovem filosofia que então se publicava em Portugal? A ausência de outros elementos históricos sobre J. Waffler para além do que se supõe ter sido apenas uma curta estadia em Lisboa, parece justificar todos os voos de imaginação. Ainda assim, Ler Eduardo Lourenço pede aos seus visitantes que, caso disponham de mais informações acerca deste inesperado crítico do ensaísta heterodoxo,  não deixem de contactar o blog que, de imediato, as partilhará com os seus leitores. Talvez desse modo se possa desfazer o que para Ler Eduardo Lourenço continua a ser o enigma-Waffler.