sexta-feira, 10 de junho de 2011

Dia de Camões

Muitas nações se revêem com natural complacência nos seus grandes poetas, a Itália em Dante, a Inglaterra em Shakespeare, a França em Molière, ou Alemanha em Goethe, mas nenhuma delas é Dante,  Shakespeare, Molière, ou Goethe, como nós somos Camões. O que cada um desses poetas encarnou pode separar-se deles sem afectar a imagem dos povos a que pertencem. Sem dúvida, a Alemanha é a Alemanha  de Goethe como a Itália é a pátria de Dante. Mas só Camões, graças a Os Lusíadas, se converteu para nós, ao longo do tempo, na imagem mesma de Portugal, e o poema, na tão celebrada “bíblia da pátria”, alma da nossa alma. A quem escapa o que este fenómeno tem de prodigioso e que responsabilidade impõe o confrontarmo-nos todos com o mito cultural que implica com a ideia que fazemos, ou devemos fazer, da nossa missão e vocação na História, ou na simples vida colectiva?
É inegável que a osmose e a identificação entre o Poeta e o Livro, entre o Livro e a consciência nacional é não só um facto, mas o facto capital da nossa Cultura. Se o não fosse, não estávamos aqui, reunidos colectivamente em volta de Camões, refazendo neste templo de prodígios siderais, uma nova versão dos painéis de Nuno Gonçalves. Podíamos estar aqui apenas para evocar aquele que continuamos a considerar o maior Poeta da língua portuguesa e um dos grandes poetas do Ocidente. Talvez fosse mesmo a mais pura homenagem que lhe pudéssemos prestar. O sentido da nossa presença ultrapassa, contudo, os puros imperativos de uma Cultura em estado de auto-dilaceramento. De qualquer modo, Os Lusíadas, enquanto mito nacional, escapa a esses imperativos ou transcende-os. Não é a sua música eloquente, o milagre estético que representa na poesia épica moderna, a emoção que ainda hoje pode provocar, o que fundamentalmente celebramos enquanto comunidade nacional. É a imagem camoniana de nós mesmos, a nossa imagem épica, sublimada ou mesmo sublime, tal como Os Lusíadas a configuraram há quatro séculos e continuam a irradiá-la até ao presente. Como evocá-la, sem sucumbir à tentação de um narcisismo que nos perverteria a nós e diminuiria o Poema, convertendo-o em espelho deformado de um nacionalismo cego, fonte de irrealismo histórico e de esquizofrenia ideológica e cultural? O perigo não é imaginário porque essa tentação foi e é permanente. Tanto mais que Os Lusíadas, como todos os poemas de génio, não é uma obra de pura beleza intemporal, neutra, que possamos consumir na paz erudita de uma devoção de encomenda ou de uma admiração necrófila. Por ter sido e ser ainda obra viva, o Poema confere à visão do mundo um dia encarnou, à experiência humana e colectiva de que é reflexo, à ideologia datada de que é fruto maduro e exemplo incomparável, uma força que continua a trabalhar e interpelar em profundidade o nosso presente de portugueses. É o único Livro que não podemos depor na prateleira da História porque é ele mesmo História.


Excerto do discurso proferido por Eduardo Lourenço nas comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, realizadas em Leiria em 1980. O texto integral pode ser lido em “Camões ou a nossa alma”, AAVV, Camões e a Identidade Nacional, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Col. “Temas Portugueses”, 1983, pp. 99-107. Texto reimpresso em Poesia e Metafísica. Camões, Antero, Pessoa, Lisboa, Sá da Costa Editora, 1983, pp. 87-96 [Vence – Lisboa, 10 de Junho de 1980].