sábado, 4 de junho de 2011

A Amarga Fúria. Na não-morte de Jorge de Sena*

                                                                                                                                                       Só disso existirás. Que te não leiam,

                                                                                                                                                        te não entendam ou de ti não falem

                                                                                                                                                         os que de imagens e sons se vivem.
                                                                                                                                                                                                   Exorcismos




Quando todos nos esquecermos que Jorge de Sena está hoje tipograficamente “morto” em letra maiúscula, com aquela evidência de notícia que já merecia vivo, dele falaremos. É impossível suportar do além onde não está, mesmo em pensamento, aquele fabuloso desprezo que ele sabia comunicar ao que por rito existe e se perpetua. Não sei se é tempo para “viúvas” de Jorge de Sena, que o poeta superconjugal que ele foi não deve ter deixado, lhe florirem a agreste e apátrida tumba onde a sua épica violência de se sentir roubado da pátria morada não cabe, enjeitando flores, sempre para tal homem amoroso delas como alegria da terra, tardias. Tardio tudo lhe foi, mesmo o que o coroou, ou aquilo com que se coroou como o Indesejado-mor do reino que não foi, mas com alguma razão se pôde supor. Tardio, porque ele vivia em avanço, e com uma fúria de quem sabia a vida contada, um combate que não tinha outros adversários que aqueles que o seu camoniano génio de monstros a ven­cer num mar mais fundo e tenebroso que o antigo, sob cada pedra ou livro, levantava. A sua morte só uma misteriosa voz, rolando como outrora sobre as margens daquele Mediterrâneo onde no tarde deuses redivivos o premiaram, a poder ir anunciando como um eco em todo o lugar lusíada: «o grande Sena morreu».

Duro e violento foi o seu combate com uma morte que não quis deixar tempo a quem, com um humor digno de Quevedo, anunciara a intenção de a esvaziar à força de diatribes e insultos (última forma do desespero e amor) da sua nula omnipotência. Dele mesmo, como de ninguém, mas de outra maneira, a morte não levara sequer o cadáver adiado que nun­ca foi. Jorge de Sena ficou, está, ficará inteiro, com aquela espécie de nudez ofuscante dos jazentes reais da época turva dos fins do Renascimento, tão sua conhecida, numa poesia que desencoraja as glosas estéticas por lhe ter sido arma sem cessar brandida contra os céus imaginários por conta de um amor descomedido a uma vocação pânica sem igual na nossa Literaturas, se a palavra não lhe excita ainda a verve sarcástica e o verbo justiceiro até ao suicídio. Jorge de Sena a si mesmo se comentou com um despudor grandioso e para sempre estará vedado aos que no seu labirinto poético se aventurarem, passar ao lado desse olhar que no centro dele o defende e cobre com sombrio e altivo esplendor. Que mais glosa da sua morte precisa aquele que sabia que o seu (imaginariamente) sonegado cadáver futuro iria crescer e avassalar a nossa exígua cena caseira para se converter, como nas metamorfoses que tanto explorou, em qualquer ainda não conhecida constelação celeste? Que mais dilacerada que aquela que mil vezes insinuou na trama tão lusitanamente hipertrofiada e amarga da sua prodigiosa provocação poética que a ninguém se destinava senão a si mes­mo, parecendo destinar-se, com nomes e tudo, à humanidade quase inteira? Que requiem desapiedado, que música de lágrimas devolvidas à por ele negada “sensibilidade lusa”, pode superar o exorcismo de olhos abertos e alma jamais ren­dida ao inevitável com que da tentação da piedade por si se defendeu?



Pouco a pouco me esqueço e não sei nada,

Assim será a morte, e o que da morte

é sono e dor aguda que me crispa plácido

em sonhos dissolvidos sem anseio ou mágoa.



Este ficar de longe num cansaço;

o ouvir das vozes como outrora infância;

o estar-se imóvel mais, e devagar

perder, um após outro, o gosto a um gesto



mesmo pensado nesta horizontal

que alastra entre o passado e coisa alguma.

Este não ter senão a solidão

como silêncio e treva finalmente aceites.



A vida tão vivida e desejada,

o ser como o fazer, o sexo em tudo visto,

as coisas e as palavras possuídas,

tudo se não dissolve mas se afasta



alheio e sem saudade. Nem repouso

ou calmo abjurar da fúria amarga.

Apenas não sei nada, não recordo nada,

já nada quero, e aos outros deixo tudo.



Deixou tudo, deixando-se em versos que como a prosa de Montaigne de mais ninguém falaram, mas com uma incomplacência complacente que apaga no seu prodigioso desnua­mento as fronteiras imaginárias entre nós e o mundo. Ninguém calou a boca daquele que sobre esta terra andou com «os dois pés sem medo das palavras». É inútil calá-lo agora com flores póstumas, decorar-lhe



a dor de haver nascido em Portugal

sem mais remédio que trazê-lo na alma



que tudo, elogio ou evocação, saudade ou remorso, glória ou descaso, de ninguém os pode receber quem em vida os teve por lusitana antropofagia, necrofágico reflexo de recuperar na morte o mais duro ofício de admirar na vida a vida sem morte que nela ia. Ou como só ele o podia escrever:



Ó mundo pulha e pilha que de mortos vive!



                                                                                                                       [Vence, 6 de Junho de 1978]



                                               

* Ler Eduardo Lourenço assinala hoje o trigésimo terceiro aniversário do desaparecimento físico de Jorge de Sena, escritor e amigo de Eduardo Lourenço, com a transcrição de um texto que o ensaísta escreveu dois dias após a morte do autor de As Evidências mas que só seria publicado um mês depois no  no Suplemento “Letras & Artes” de Diário Popular, Lisboa, 7/VII/1978, p. I. A seguir o leitor deste blog poderá consultar um repertório dos textos mais importantes que Eduardo Lourenço dedicou à figura e à obra de Jorge de Sena. Tal como em outras ocasiões, Ler Eduardo Lourenço agradece a colaboração da Professora Gilda Santos nesta homenagem à amizade  entre Eduardo Lourenço e Jorge de Sena e, ao mesmo tempo, remete uma vez mais para o site Ler Jorge de Sena que também ele evoca a efeméride.



ALGUNS TEXTOS DE EDUARDO LOURENÇO SOBRE JORGE DE SENA

1) “Nótula a Uma Canção de Camões de Jorge de Sena”, Suplemento Cultura e Arte de O Comércio do Porto, Porto, 5/XII/1967, p. 14.
2) “A Amarga Fúria. Na não-morte de Jorge de Sena”, Suplemento Letras & Artes de Diário Popular, Lisboa, 6/VII/1978, p. I. [Vence, 6 de Junho de 1978].
3) “Encontro com Jorge de Sena”, Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 1, Lisboa, 3/III/1981, pp. 14-16.
4) “Jorge de Sena e o demoníaco”, O Tempo e o Modo, nº 59, Lisboa, Abril de 1968, pp. 324-331. Texto reimpresso em AAVV (Org. Eugénio Lisboa), Estudos sobre Jorge de Sena, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1984, pp. 49-59 e em O Canto e o Signo. Existência e Literatura (1957-1993), Lisboa, Editorial Presença, 1994, Col. “Biblioteca de Textos Universitários. Nova Série”, nº 9, pp. 72-79.
5) “As evidências do Eros”, Colóquio-Letras, nº 67, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Maio de 1982, pp. 5-13. Texto reimpresso em nº especial “La Poésie portugaise de Fernando Pessoa à nos jours”, Março de 1998, pp. 91-100 [Vence, 27 de Março de 1982].
6) “Poesia e poética de Jorge de Sena”, AAVV (Org. de Maria Alzira Seixo), Poéticas do Século XX, Lisboa, Livros Horizonte, 1984, Col. “Horizonte Universitário”, nº 42, pp. 195-204. Texto de comunicação no Colóquio sobre a Poesia do Século XX, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 4-5/IV/1983 e reimpresso em Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 149, Lisboa, 14/V/1985, pp. 19-21 e em Quaderni Portoghesi, nº 13-14, Pisa, Giardini Editori, Primavera de 1983, pp. 23-33 [Vence, 27 de Março de 1983].
7) “Evocation de Jorge de Sena”, AAVV, Actes du Colloque, Paris, Fondation Calouste Gulbenkian, Centre Culturel Portugais, 1986, pp. 175-185. Texto de conferência em “L’enseignement et l’expansion de la Littérature Portugaise en France”, Paris, 21-23/XI/1985. Uma versão deste texto com o título “Evocação de Jorge de Sena”, tradução do francês por Teresa Cristina Cerdeira, foi publicada em Boletim do SEPESP, nº 6, Rio de Janeiro, SEPESP - Seminário Permanente de Estudos Portugueses da Faculdade de Letras UFRJ, Setembro 1995, pp. 9-22.
8) “Sinais de Fogo: a invenção de um poeta”, Arquivos do Centro Cultural Português, vol. XXV, Lisboa-Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, pp. 73-75.
9) “Cartas para Jorge de Sena”,  Mécia de Sena, Eduardo Lourenço/Jorge de Sena. Correspondência, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Col. “Biblioteca de Autores Portugueses”, 1991. Inclui cartas de e para Eduardo Lourenço e um texto de prefácio “Carta para ninguém”, pp. 9-11 [Lisboa, 25 de Julho de 1982]. Algumas cartas foram reimpressas com o título “Jorge de Sena e Eduardo Lourenço: Portugal a duas vozes” em Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 462, Lisboa, 19/III/1991, pp. 13-15.
10) “Viagem no imaginário crítico de Jorge de Sena”, AAVV (Org. de Gilda Santos), Jorge de Sena em Rotas Entrecruzadas, Lisboa, Edições Cosmos, 1999, Col. “Cosmos Literatura”, nº 45, pp. 43-50 [Rio de Janeiro, 26 de Agosto de 1998].
11) “Jorge de Sena”, Relâmpago. Revista de Poesia, nº 21, Lisboa, Outubro de 2007, Fundação Luís Miguel Nava, pp. 15-16.
12) “O regresso do (In) desejado” [Sobre Jorge de Sena], Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 1017, Lisboa, 23/IX/2009, p. 6.