quinta-feira, 5 de maio de 2011

Repensar ou transformar Portugal? Ainda sobre o “espírito de Mateus 1978”



Ler Eduardo Lourenço  volta à Casa de Mateus e especialmente ao encontro que aí decorreu entre 7 e 9 de Julho de 1978, constatando que, em algumas coisas (nas essenciais?) Portugal, afinal, não mudou assim tanto desde então. Ora, para Eduardo Lourenço, em entrevista-balanço da reunião de Vila Real (de duas páginas e com destaque na capa!), ao Diário de Lisboa do dia 15 desse mês, «repensar Portugal, imaginar Portugal é importante. Mas mais importante ainda é transformá-lo» (p. 11).









Por exemplo, grande número dos protagonistas da vida política portuguesa não mudou, de tal modo que muitos dos intervenientes no encontro transmontano com o título “Repensar Portugal” desempenhavam então e/ou vieram depois a desempenhar um papel preponderante na vida cultural, política e económica do País. Outros aspectos há que permitem estabelecer um paralelismo entre aquele longínquo ano de 1978 e os dias de hoje. Ler Eduardo Lourenço efectuou uma revisitação daquele tempo, consultando a imprensa diária daquela época quente, e não só em termos meteorológicos... O contexto é como sempre importante, pelo que talvez se justifique um breve enquadramento histórico. À frente do destino político de Portugal encontrava-se ainda o chamado III Governo Constitucional, chefiado pelo Primeiro-Ministro Mário Soares, que tinha sido empossado em Janeiro e que haveria de terminar funções em Agosto. Tratou-se portanto de um Governo (formado por uma coligação do PS, partido maioritário no quadro parlamentar, e o CDS) que não ultrapassou os oito meses de vida e cujos últimos dias foram passados numa arrastada crise. O conceito de estabilidade governativa talvez não tivesse o significado que hoje se lhe atribuí. Ou se calhar tinha. Devido às enormes dificuldades da economia portuguesa o Estado português teve recorrer à ajuda financeira do FMI e Álvaro Cunhal declarou que, na perspectiva do PCP, essa intervenção externa iria ser devastadora para o povo português. Neste ponto muito preciso, é difícil encontrar grandes diferenças entre as duas épocas.
Por outro lado, é de realçar (aos olhos de hoje, é mesmo surpreendente...) a relevância mediática conferida à edição de 1978 de “Repensar Portugal”. Assim, pelo menos três dos jornais consultados destacaram enviados especiais para cobrir o acontecimento e lembre-se que os acessos rodoviários eram na altura bastante mais penosos. Claro que a crise nacional obrigava a imprensa a correr atrás dos políticos. E nem sempre pelas melhores razões. Um exemplo, apenas. A Capital, vespertino lisboeta dirigido por Francisco Sousa Tavares (um dos protagonistas desse fim de semana, aliás, como adiante se pode ver), dá honras de caixa ao evento na capa da edição do dia 8, encontrando o leitor o seguinte título a toda a largura da primeira página: “Repensar Portugal em Trás-os-Montes”. Logo a seguir, o jornal cita outro dos intervenientes, António Barreto, acerca da sua hipotética expulsão do PS (de que era militante na altura, antes de vir depois abandonar efectivamente este partido) e que tinha sido sugerida em supostas afirmações realizadas por ... Manuel Alegre. Dizia Barreto na primeira página de A Capital: «Se Manuel Alegre disse isso é porque não sabe o que diz». Importa referir que, nessa mesma edição, Alegre desmente ter proferido tais declarações. Só que esse desmentido quase passa despercebido, pelo que na edição seguinte o poeta expressa o seu desagrado pelo que chama «uma cabala (...) que não posso deixar de considerar parte integrante de uma manobra política que visa não tanto a minha pessoa como o partido ao qual me orgulho de pertencer» (A Capital, 10/VII/1978, p. 4). António Barreto, por seu turno, dizia-se «alvo de campanha telefónica» (Ib.). Para quem se queixa hoje da fulanização da política à portuguesa, poder-se-á dizer que esta é uma pecha já com alguma tradição.
No entanto, para além dos fait-divers político-partidários, que então (como agora...) aguçavam e alimentavam a curiosidade informativa nacional, a verdade é que os jornais desses quentes dias de Julho que Ler Eduardo Lourenço foi reler dão grande destaque ao que se discutiu na Casa de Mateus (o que não sucedeu agora, por ocasião da edição homónima de 2011: sinal dos tempos?). Disso se dá conta a seguir com uma foto, cuja fraca qualidade da reprodução se lamenta, que capta Eduardo Lourenço numa das suas intervenções na sessão aberta à Imprensa, e com alguns excertos das reportagens feitas pelos jornalistas presentes em Vila Real (com as declarações do ensaísta em itálico) e da referida entrevista ao Diário de Lisboa. É um modesto contributo para uma arqueologia da política portuguesa deste tempo e também uma revisitação do pensamento de Eduardo Lourenço na segunda metade da década de 70 do século passado.




Fotografia tirada por José Macário e publicada na página 8 da edição de 11 de Julho de 1978 de O Comércio do Porto,
com a seguinte citação do ensaísta:«Lamento que o diálogo nacional não esteja aqui representado (...)
neste encontro informal e não conclusivo (...) da classe política que tem uma certa conotação».


«O seminário “Repensar Portugal” que ontem terminou na Casa de Mateus, em Vila Real, vai constituir, certamente, uma vertiginosa rampa de lançamento de novas ideias no futuro a curto prazo deste País.
A contra-classe política agita-se e, de repente, Vila Real mais parece a “Colombey-les-deux-Eglises” portuguesa. Ausentes, com explicação, o CDS e sem explicação, o PCP e outras forças à esquerda do PS. O breve debate final, principalmente com a intervenção de Eduardo Lourenço, foi já o lamiré das ressonâncias nacionais do espírito de Mateus», O Comércio do Porto, 10/VII/1978, p.8.
«(...) Foi particularmente evidente a especial atenção com que o enviado especial de O Diário seguia intervenção no debate do dr. Eduardo Lourenço (UEDS), e muito mais quando ele afirmou que a palavra dos comunistas representada neste País em igualmente o direito ao diálogo e deve ser combatida e discutida frente a frente (...)», Silva Tavares, O Comércio do Porto, 11/VII/1978, p.8.

«(...) Apesar de repetidamente afirmado ao longo do encontro que ele se destinava apenas a permitir um encontro informal de personalidades de quadrantes diferentes e não se apresentariam conclusões, o relatório final de Sousa Tavares, cuja leitura demorou cerca de 45 minutos, surgiu com uma articulação e um peso que não escaparam aos presentes.
Eduardo Lourenço insurgir-se-ia contra o tom do referido relatório e lamentaria que o colóquio fosse o encontro de uma nova classe política.
«Este colóquio, disse, lembra-me a escola em que nos ensinavam os três estados: gasoso, líquido e sólido. Aqui também foi assim. A cultura foi o estado gasoso, a estrutura do Estado foi o estado líquido e o grupo político foi o estado sólido. Todos se devem dar conta de que o que aqui se disse foi muito grave e muito sério (...)», Diário de Notícias, 10/VII/1978, p. 2.
«(...) Um dos participantes da sessão pública, Eduardo Lourenço, denunciou a ausência de elementos de uma certa esquerda nomeadamente do PC, dos ex-GIS e de alguns socialistas. (...) Aliás, no que respeita à Constituição foi defendida, com coragem, no período do diálogo, por Eduardo Lourenço (...)», Orlando Inocentes, Jornal de Notícias, 10/VII/1978, p. 4.

«(...) No grupo “Cultura e Estado”, participaram, entre outros, António Reis, secretário de Estado da Cultura, Carlos Lellis, Eduardo Lourenço, José Sebastião da Silva Dias e Vasco Graça Moura. A descentralização cultural, os aspectos globais da política educativa do Governo, o levantamento dos obstáculos que se opõem a uma renovação cultural do País, foram os temas focados neste grupo (...)», Mário Alexandre, A Capital, 10/VII/1978, p. 2.

«(...) A intervenção de Eduardo Lourenço no colóquio final centrou-se na exposição dos trabalhos daquele terceiro grupo (o Estado) muito embora ele tivesse participado no grupo que se debruçou sobre a Cultura e a Educação. Comparando as três exposições dos relatores aos três estados da natureza. Eduardo Lourenço diria que o grupo cultural foi «gasoso» («en­tramos numa espécie de nebu­losa, tudo muito vago»), o grupo do desenvolvimento foi «líquido» («problemas apresentados por uma certa fluidez») e que no terceiro grupo houve o estado «sólido» com uma exposição «o mais articulada possível e séria». Efectivamente, enquanto nos outros grupos se referiram as questões abordadas e os diversos pontos de vista, no da questão do Estado fizeram-se afirmações e ataques muito claros de tal modo que Eduardo Lourenço diria que se estava no fim: «mas agora é efectivamente o princípio, porque aquilo que foi apre­sentado formalmente como ati­tudes de que denotam um certo pluralismo em relação a concepção do Estado, tinha afinal uma grande coerência interna» que interessava começar a discutir para haver então o diálogo. Eduardo Lourenço salientou que contrariamente à representativi­dade verificada nos outros gru­pos, no do Estado, «a Esquerda portuguesa ou uma parte da Es­querda portuguesa não estava representada» assistindo-se a uma formulação da ideia de Es­lado e de projecto nacional que era feita apenas «com uma classe política que tem uma certa conotação».
(...) Eduardo Lourenço referiu-se depois à maneira como a Constituição da República havia sido encarada, tenha os defeitos de estrutura ou de conteúdo que ti­ver, acrescentando não conce­ber «que ela seja objecto de uma espécie de destruição anteci­pada», pois a sua possível revisão «não é um objectivo da classe política mas da nação inteira que se representa pelo voto, que elegerá os seus depu­tados e que a modificará ou não».
Depois do eng. Fernando Al­buquerque [principal organizador do encontro] ter referido que mui­tos outros convidados não compareceram (citou Miguel Galvão Teles e João Martins Pereira, além de figuras do CDS) Sousa Tavares discordou da posição de Eduardo Lourenço dizendo que a Constituição «não é uma Bíblia, um documento tabu». Eduardo Lourenço ripostou que não se insurgia contra a discussão teórica da Constituição e o que estra­nhava era «uma espécie de impaciência em querer modificá-la antes do prazo que nela própria está escrito», e que ela fosse considerada um factor de divisão entre os portugueses. À afirmação de Sousa Tavares, Eduardo Lourenço respondeu «Penso que essa frase, essa afirmação, é igualmente um factor de divisão entre os portugueses», Diário de Lisboa, 10/VII/1978, p. 9.

«(...) Afinal este colóquio lembra-me a escola em que nos falava de 3 estados: o gasoso, o líquido e o sólido. Aqui também foi assim. O gasoso foi a cultura, que foi algo nebuloso, genérico, flutuante. O líquido foi o económico - e nem outra coisa era de esperar em assunto tão fluído como o desenvolvimento. O sólido foi o grupo político - esse foi sólido e sério. A ninguém escapou certamente a gravidade e a seriedade do que aqui acaba de ser dito».
Assim saltou Eduardo Lourenço sobre Sousa Tavares quando este acabou o seu magistral truque de prestidigitação política, tirando do chapéu do colóquio que (quase) todos julgavam vazio um coelho branco sob a forma de um inocente discurso final que “apenas pretendia completar o relato que se acabou de ouvir”.
Tinham-se passado na Casa de Mateus dois dias de debate à porta fechada sobre o tema “Repensar Portugal” e domingo era o terceiro dia em que estava prevista a leitura de resumos dos trabalhos de cada grupo, “a título meramente informativo e sem nenhum carácter conclusivo” como pressurosamente se repetiria a todos desde o início.
Eram quarenta e tal políticos (no activo e na reserva aparente) e homens da cultura (das letras, das ciências e da informação) os que, de longe, acorreram (de Lisboa, do Porto, de Coimbra, mas também da Madeira, dos Açores e da França) ao convite de Fernando Albuquerque. Ia-se repensar Portugal em descomprometida cavaqueira, que abarcaria interlocutores de todos os quadrantes, do CDS ao PCP.
Apenas aconteceu que o CDS – talvez por ser dia de decisivo conselho nacional – não se fez representar, o PCP também não, e o colóquio de Mateus acabou por converter-se, com uma evidência que os próprios que o idearam não previram, num medir de forças entre o poder actual e a sua possível alternativa futura. (...) «A Universidade está em crise em toda a parte» diria Eduardo Lourenço. «Repensar o país é necessariamente repensar a universidade.» E, a propósito de elitismos, diria «a cultura é um fenómeno elitista por definição. E a ciência o que é, senão um elitismo continuado?». Afirmando não ver razões para má-consciência, disse: «não gosto de cuspir na sopa que eu próprio como».
(...) Quando o público quer a Crónica [Feminina, que, com os seus 600 mil exemplares foi apontada como exemplo da cultura massificada] ou a Escrava Isaura ou pornografia deve-se dar-lhe isso? interrogaram-se as pessoas. Não proibir mas dificultar o acesso, era a posição de António Reis, enquanto Eduardo Lourenço e Graça Moura entendiam ser difícil precisar o que é e não é objecto cultural.
(...) Sophia [de Mello Breyner] diria que a noção de cultura de direita é a noção de “cultura para alguns”, ao que Eduardo Lourenço, com o seu eterno de anjo vingador, responderia que «cultura de direita é muito simplesmente aquela que serve uma sociedade de direita».
(...) «Temo que a europeização apareça ainda sob as espécies de uma alternativa colonial, agora ao contrário» ouvi a Silva Dias. E Eduardo Lourenço: «Uma das falências do antigo regime foi não ter dito o discurso cul­tural que lhe correspondesse.» (...) Passo no jardim setecentista, com buchos bem tratados e uma japoneira de sombra convidativa. Debaixo dela, está a começar um debate para a televisão moderado por Eduardo Lourenço. Oiço nacos. «Toda a sá­bia convivência é cultura» diz [Gonçalo] Ribeiro Telles. «A dignidade humana é que marca... uma campanha de alfabetização pode ser um perigo...» e, de Horácio Menano, chega-me a ideia de que há rupturas irreversíveis: «agora há uma expectativa, dantes não havia». Eduardo Lourenço diz: «Um novo espaço de autodeterminação dos indivíduos e dos gru­pos, isso é que é o facto democrático».
Vejo entrar e sair gente perante as certa­mente atónitas câmaras de televisão, tão habituadinhas a estar quietas. Entra um profes­sor, sai um político, atravessa um jornalista com a família. Senta-se um ex-ministro no chão, mergulha um ministro na piscina... E Alfredo Tropa, que começara a filmar como sempre filmou, de repente parece que se dei­xa tomar daquela vertigem de ver formigar tantos VIPS. Uma conversa entre Vítor Constâncio, António Reis e Eduardo Lou­renço é já filmada de dentro da piscina, nu­ma girândola que chego a temer seja final.
Discute-se a Psicanálise mítica do desti­no português que Lourenço acaba de publi­car, interpelam-no o homem da cultura e o tecnocrata. O Poder e o escritor enfrentam­-se em fato de banho», Helena Vaz da Silva, Opção, nº 116, 13/VII/1978, pp. 23-25.

«Quando eu disse que o que se estava ali a passar era “sério” e “grave”, queria dizer que era grave por estar ali ser posto em causa o estatuto em que a nossa vida política está a ser vivida, e que era sério porque por exem­plo as proposições de um Medei­ros Ferreira são interessantes. Posso não as partilhar, e de facto não partilho muitos dos pontos de vista que exprimiu. Ainda menos partilharia o espírito que a Imprensa atribuiu ao encontro, o de uma neodireita, ou de um desvio claramente direitista de membros conhecidos do PS.
(…) Discordei do espírito que presidia em geral ao discurso, e que foi apresentado pelo dr. Sousa Tavares: da ideia de que a Constituição é desestabilizadora e de que o Conselho da Revolução tem uma função nefasta. Disse que me pareci m tais ideias tão ou mais desestabiliza­doras do que o texto constitucio­nal.
Pareceu-me que o que estava em causa, e se desejava modifi­car, era o espírito mesmo da Constituição, em pontos funda­mentais, o que representaria efectivamente uma ruptura política com o espírito do 25 de Abril.
(...) Embora eu saiba que a Constituição sofreu o condicionamento do período histórico em que foi concebida, há certos pontos que me parecem capitais, particularmente à sua clara vocação socialista. Ora a verdade é que no relato que nos foi feito a pala­vra socialismo nunca aparece mencionada.
(…)Não acredito que haja qualquer Constituição, seja de que natureza for, que não tenha um conteúdo ideológico. Pretende-se é um conteúdo ideológico diferente ao do ac­tual.», entrevista ao Diário de Lisboa, 15/VII/1978, pp. 10-11.


A piscina da Casa de Mateus (Vila Real)